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Lendo: Massacre de Melilla: as fronteiras são actos de violência

Massacre de Melilla: as fronteiras são actos de violência

Massacre de Melilla: as fronteiras são actos de violência


A 24 de Junho, cerca de 2,000 pessoas tentaram saltar a vedação entre Marrocos e Melilla. A repressão foi brutal e resultou em 40 mortos, de longe o maior número de vítimas numa só tentativa de cruzar esta fronteira. Um resultado que sublinha a natureza mortífera das políticas fronteiriças da UE.

Concertinas

Melilla é uma das duas cidades espanholas autónomas localizadas em continente africano, ou seja, um dos dois únicos pontos de entrada terrestre na UE a partir de África, fazendo fronteira com Marrocos através de uma barreira de seis metros de altura e 11,5 Km de extensão. Toda a cidade é, aliás, uma espécie de prisão invertida, salpicada de fossos, torres de vigia, cães de guarda, patrulhamentos constantes. A BBC Brasil chama-lhe «a fronteira mais fortificada da Europa». Essa barreira é constituída por altos muros encimados por concertinas, onde se concentram e se mutilam, quando não se extinguem, sonhos e ansiedades. As concertinas, apesar do nome alegremente musical, são, na verdade, um tipo de arame farpado – estruturas tubulares de aço, rígidas, com acabamentos de lâminas afiadas.

Os relatos das tentativas de salto raramente têm finais felizes. Mesmo quando conseguem passar, as pessoas nunca o fazem sem consequências graves, que vão de tíbias partidas a cortes em tendões. Os panos, mesmo os mais grossos, não são suficientes para evitar as lâminas das concertinas. Para quem não consegue atravessar, o destino é quase certo: espancamento, detenção e envio forçado para a fronteira sul de Marrocos.

Perto de Melilla, na serra de Nador, milhares de pessoas vivem à espera de ver chegar o dia em que consigam transpor o muro, rumo à Europa prometida. De tempos a tempos, a polícia marroquina faz incursões, as mais das vezes violentas, com recurso a força bruta, intimidações e destruição das barracas onde sobrevivem.

Esses migrantes utilizam a chamada rota ocidental, uma das rotas mediterrânicas habituais usadas pelos africanos subsaarianianos para chegar à Europa. Um número cada vez maior tem escolhido esta via, dado o aumento do risco da rota oriental, via Turquia, e da central, via Líbia, depois dos acordos de «gestão de fluxos fronteiriços» que a UE firmou com estes dois Estados. Do mesmo modo, a rota que atravessa Marrocos tem-se tornado cada vez mais mortal e pela mesma razão: a UE paga a Estados não membros para sujarem as mãos por ela. No caso, Marrocos, conforme demos nota aqui.

O salto para a morte

Na manhã de 24 de Junho, cerca de 2.000 pessoas desceram de Nador, aproximaram-se da fronteira e começaram a saltar a vedação. Foram violentamente reprimidas por forças conjuntas marroquinas e espanholas. De acordo com um balanço das autoridades locais, o número de mortos é de pelo menos 18, enquanto várias ONG afirmam que as vítimas são na realidade muitas mais: pelo menos 37 (um número posteriormente actualizado para 40), de acordo com a conhecida activista espanhola Helena Maleno, porta-voz de Caminando Fronteras. A ONG Walking Borders confirmou esses números e informou ainda que havia 35 internados em estado grave.

As tentativas de salto são praticamente diárias. Muitas vezes efectuadas em grupos pequenos. De quando em quando, há uma destas «avalanches», que servem, não só como tentativa real de transpor a fronteira, mas também como visibilização da brutalidade com que são tratadas diariamente. Um grupo tão impressionante de pessoas torna impossível que as autoridades consigam abafar os acontecimentos. E, na verdade, no próprio dia, já circulavam imagens de um jovem de 20 anos que permanecia pendurado no alto da cerca, apesar do arame farpado e do sistema de electrificação. Em baixo, do lado marroquino, dois agentes tentavam fazer com que caísse, atirando-lhe pedras. Quando finalmente desceu da cerca, foi empurrado para um amontoado de pessoas, cerca de 500 migrantes deitados no chão, alguns aparentemente já mortos, sob a vigilância violenta dos guardas marroquinos. As imagens divulgadas no Twitter da Associação Marroquina dos Direitos Humanos (AMDH) mostram essa cena que tem tanto de habitual como de distópica.

Omar Naji, activista da AMDH, foi uma das poucas testemunhas no local. Numa entrevista publicada no ENASS, um meio de comunicação digital marroquino independente, afirmou que os migrantes, do Sudão e de outros lugares da África subsaariana, foram atirados ao chão, muitos deles feridos e deixados sem tratamento médico durante várias horas. Um morador de Nador, Tareq (nome fictício), contava à jornalista do El País no local: «Era tudo sangue, tudo sangue… sangue na cabeça, pele rasgada, pés partidos, mãos partidas», acrescentando que «os que não tinham morrido acabaram por morrer, bateram-lhes muito».

Algumas ONGs conseguiram obter informações em hospitais, esquadras e através dos próprios migrantes e relataram que a maioria das mortes se deu ao cair da cerca da fronteira ou por asfixia ou esmagamento junto à vala, na debandada. Os maus-tratos policiais, com bastonadas constantes no amontoado de gente, também foram denunciados, assim como o facto de, durante as primeiras horas da crise, os migrantes gravemente feridos não terem recebido atendimento médico. Ainda nas palavras de Helena Maleno: «Estiveram lá todos desde o meio-dia, ali, atirados ao chão, ao sol, a sangrar». «As vítimas agonizaram durante horas sob os olhares cruéis dos que deviam socorrê-los e não o fizeram».

A EuroMed Rights, uma rede de 80 organizações de direitos humanos na Europa e na região do Mediterrâneo, divulgou uma declaração assinada por 45 grupos marroquinos e europeus de direitos humanos onde afirma que este acontecimento era previsível, dado o histórico de prisões em massa, buscas em campos de refugiados e transferências à força de refugiados para o sul de Marrocos. A EuroMed Rights disse ainda: «No último ano e meio, os refugiados em Nador foram privados de medicamentos e cuidados de saúde. Os seus acampamentos são queimados e os seus bens são levados embora e a já escassa comida é destruída, ao mesmo tempo que qualquer água potável que eles tenham é confiscada».

Estes 40 mortos são o «símbolo trágico das políticas da União Europeia e da externalização das suas fronteiras», escrevem, num comunicado, cinco organizações não-governamentais espanholas e marroquinas. «A morte destes jovens africanos nas fronteiras da “fortaleza europeia” sublinha a natureza mortífera da cooperação securitária em matéria de migração entre Marrocos e Espanha», lê-se ainda no texto. Ou, nas palavras bem mais abrangentes da Assembleia Anti-Fascista de Londres, este massacre, que, «longe de ser um incidente isolado, se está a transformar na norma por toda a Europa», não nasce do comportamento de determinado governo, é antes o «resultado directo da lógica das fronteiras e dos Estados-Nação, que divide, desumaniza e mata pessoas com base em linhas arbitrárias num mapa». Uma lógica que não se implementa apenas nas fronteiras físicas dum país, mas «em muitos níveis da sociedade, com acesso desigual a saúde, habitação, educação e emprego, com criminalização e perseguição pelas autoridades e com a disseminação duma retórica anti-imigração que transforma toda a gente num guarda fronteiriço».

O migrante como invasor violento

O massacre de Melilla aconteceu cinco dias antes da cimeira da NATO em Madrid, que acabou por definir um novo conceito estratégico para a organização. Os meios de comunicação, na sua simplificação habitual, informaram-nos que se tratou de apontar a Rússia e a China como os inimigos principais. Do lado de fora das notícias, ficou o facto de, da agenda política da NATO, fazer igualmente parte a imigração enquanto ameaça à segurança do «ocidente», numa abordagem armada aos fluxos migratórios que se desenha desde a cimeira que a Aliança realizou em 2010, em Lisboa.

Pedro Sánchez, chefe do executivo de Madrid, em reacção ao sucedido, afirmou que se tratara dum «ataque violento e organizado», um «ataque à integridade territorial» de Espanha, por detrás do qual haveria «máfias que traficam seres humanos». Um argumento também partilhado pelo governo marroquino. Referindo-se à resposta policial, o presidente do governo espanhol assegurou que tudo «foi bem resolvido», colocando o adjectivo «violento» do lado dos migrantes. Tais comentários entendem-se melhor à luz do facto de este massacre ter acontecido três meses depois da cedência de Sánchez às pretensões do rei Mohamed VI sobre o plano de autonomia do Saara Ocidental em troca duma mão de ferro marroquina no controlo dos migrantes. 1

A este propósito, o comunicado da Plataforma das Associações e Comunidades Subsaarianas em Marrocos, da Caminando Fronteras, ATTAC, AMSV e AMDH é lapidar: «O reatar da cooperação securitária na área das migrações entre Marrocos e Espanha, em Março, resultou na multiplicação das acções coordenadas entre os dois lados, medidas marcadas por violações dos direitos humanos das pessoas em migração».

Nos dias seguintes, as autoridades marroquinas iniciaram o habitual envio forçado e selvagem de migrantes para outros locais do país, mais longe da fronteira com a UE, nomeadamente Khouribga (Juribga), Beni Mellal, Fqih Bensaleh (Beni Amir), Errachidia e Tarudante. No final de Junho, isso acontecera já a cerca de 1.300 pessoas, algumas delas gravemente feridas. «Forçado», dizemos, porque nada é perguntado a quem é metido em camionetas e enviado para essas localizações, e «selvagem», porque apenas aparentemente baseado na lei 02-03 (de 2018), que permite estes expedientes mas obriga a que tenham algum tipo de controlo judiciário, coisa que raramente acontece.

Para além disso, houve ainda um grupo de refugiados, todos sudaneses, que ficaram em prisão preventiva. As acusações: insultos e violência sobre agentes da autoridade e forças da ordem no exercício das suas funções; desobediência; destruição de bens públicos; posse de armas brancas; atentado à ordem pública e a pessoas e bens; assalto e agressão com arma; facilitação e organização da saída de um grupo de estrangeiros do território nacional de forma clandestina; entrada e saída de território nacional de forma clandestina. Uma lista longa de alegados delitos, 36 arguidos, repartidos entre dois grupos, onde existe um refugiado menor – eis os componentes deste processo.

Os advogados dos migrantes (arranjados por organizações de defesa dos direitos humanos) exigiram, na primeira audiência, a 4 de Julho, um relatório das autoridades, de forma a poderem preparar a defesa. Exigiram ainda a libertação provisória dos arguidos mas esta exigência caiu em saco roto e foi recusada pelo tribunal. Uma audiência posterior, de 19 de Julho, deu o veredicto: 33 pessoas condenadas a 11 meses de prisão efectiva. Omar Naji, da AMDH Nador, exprimiu o seu descontentamento com esta decisão: «este julgamento foi muito severo, eles trataram os dossiers de todos os refugiados da mesma forma, sem ter em conta a situação de cada um e, nesse sentido, a próxima etapa é dirigirmo-nos ao Tribunal da Relação (Cour d’appel) para defender os direitos destes refugiados», que, no dia anterior, tinham declarado a sua inocência.

Não se fala mais nisso

Várias ONG, assim como as Nações Unidas ou a EuroMed Rights, já pediram uma investigação profunda e independente ao massacre de Melilla, de forma a determinar responsabilidades, assim como para identificação das vítimas e entrega dos seus corpos às famílias. Naji disse que foram contactados por famílias de jovens do Sudão que se acredita estarem entre as vítimas, mas não tiveram permissão para ver os corpos ou as dezenas de migrantes feridos.

Entretanto, de acordo com o jornal The Guardian, há activistas que acusam Marrocos de tentar encobrir a violência de Melilla, enterrando os mortos sem investigação ou autópsia, e sem fazer qualquer tipo de esforço para identificar os corpos, preservá-los de maneira digna e permitir determinar a causa das mortes.

No final de mais de 2 semanas após o massacre e com dezenas de migrantes que continuavam (e continuam) desaparecidos, perante o silêncio das autoridades marroquinas e a complacência e o apoio da UE, e perante a falta de seguimento dada ao assunto, a AMDH tentou contactar o hospital de Nador para «verificar algumas imagens que recebemos de migrantes que suspeitamos estarem mortos. Recusaram-se a colaborar, dizendo que essa informação diz respeito ao ministério do interior».

A 20 de Julho, a AMDH apresentava publicamente a sua versão dos incidentes de Melilla num relatório de 21 páginas a que chamou “A tragédia no posto fronteiriço de Bario Chino: um crime desprezível das políticas migratórias europeias, espanholas e marroquinas”. De acordo com esta ONG, há 64 pessoas desaparecidas, «dezenas de feridos e de expulsões devido a uma repressão sem precedentes por parte das autoridades marroquinas com a cumplicidade dos seus homólogos espanhóis». O número de pessoas desaparecidas foi obtido graças a uma recolha de testemunhos e informações directamente junto das famílias dos desaparecidos, principalmente sudaneses. «Continuamos a receber mensagens, com fotografias da identidade de pessoas que podem ter desaparecido, que verificamos e publicamos nas nossas redes sociais», diz a AMDH Nador. A associação foi à morgue com fotografias das pessoas desaparecidas para identificar os corpos, mas foi-lhe recusada a entrada.

Migrantes: peões num jogo racista

A grande e recente empatia com os migrantes ucranianos, já se sabia, não existe quando se está perante pessoas não brancas. Nem nos governos de direita do leste europeu nem nos «progressistas» do extremo ocidental. Pelo que é preciso dizer que estas mortes são deliberadas: um produto directo e esperado da falta de vias legais de migração e da subcontratação de gestão de migrantes que a UE faz em territórios onde sabe que as autoridades têm mais margem de manobra. Uma margem que – também é sabido pelos líderes europeus, ainda que constantemente retirado do foco das suas opiniões públicas – não tem grandes limites. E, se pensarmos mais profundamente, não se pode apontar o dedo exclusivamente aos governantes.

A Europa-Fortaleza consegue, assim, mais uma vitória na arte de intimidação de migrantes e requerentes de asilo, ao mesmo tempo que os pinta, a todos, como invasores violentos. Uma política, uma atitude e um discurso que vão ao encontro da agenda das forças de extrema-direita que prosperam um pouco por todo o território europeu. Esta reto-alimentação entre fascistas e Estados ditos democráticos é uma das linhas da espiral negativa em direcção a uma cada vez maior e mais brutal violência fronteiriça etno-nacionalista.

Como sempre, as fronteiras existem apenas em função do grau de pobreza e de melanina na epiderme e estes migrantes são menos do que meros peões num jogo político, são pessoas descartáveis e não desejadas. No caso do massacre do passado dia 24 de Junho, assim como no da situação na fronteira entre a UE e a Bielorrússia, de que demos conta aqui e aqui, sem esquecer o muito bem conhecido caso da fronteira turco-grega ou o menos relatado inferno da «rota dos Balcãs», já não se pode falar apenas em «deixar morrer». Na verdade, o que se passa é, basicamente, um assassinato, uma vez que se impedem as pessoas de atravessar uma fronteira com um risco muito concreto e muito elevado para as suas vidas. Não é negligência. É, no mínimo, dolo. As negociações entre a UE e os Estados a quem entrega o seu policiamento fronteiriço são levadas a cabo à custa de vidas humanas.

 

Notas:

  1. As relações entre Espanha e Marrocos deterioraram-se em 2021, quando Espanha permitiu que o líder da Frente Polisário, Brahim Ghali, recebesse tratamento de saúde no seu território, sem informar o governo marroquino. Em resposta, Marrocos fez vista grossa a 8.000 migrantes, incluindo 1.500 menores, que entraram em Ceuta durante dois dias. Em Março, Marrocos e Espanha chegaram a um acordo de cooperação para restabelecer as relações, principalmente sobre o território do Saara Ocidental, uma ex-colónia espanhola que Marrocos anexou. O acordo de Março reforçou a cooperação conjunta para reduzir a migração com destino à Europa.

Written by

Teófilo Fagundes

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