
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Mil e uma diatribes e um sopro de vida
Crítica à Democracia Liberal
O óbvio é sempre mais radical do que aquilo que se pensa. Um simples episódio com um final anedótico pode abrir um clarim nas trevas. Uma popular colunista brasileira 2 publicou uma execração sobre Bolsonaro na Folha de São Paulo. Consistia numa lista de cerca de duas centenas de termos lexicais, escritos em catadupa para adjectivar o actual presidente do Brasil, desde “pulha” a “facínora” passando por “broxável” até “cu de boi”. Na caixa de comentários, um leitor, não sem ironia, acrescentou um mui sucinto comentário: “Eleito”. Ao lado daqueles duzentos insultos, era afinal um termo sintético, extremamente sintético. E, ao mesmo tempo, factual, radicalmente factual. Na era da pós-verdade, presume-se que a simplicidade e a factualidade tenham o dom de indispor os (e)leitores. É que a discussão terminou por ali. Ou por outra, o chorrilho de injúrias dirigido ao frugal leitor aumentou quantitativamente! Uma história que tem o condão de servir de temperatura à Democracia. Ou melhor, de pôr em guarda quem se atreve a criticá-la. Sinal dos tempos…!
A magia negativa do liberalismo
Criticar a democracia (liberal) é um exercício de heresia. O sistema político, da esquerda à direita, não perde a oportunidade de reagir em uníssono e profetizar os perigos de um questionamento do regime liberal, parlamentar e representativo. Tal como a respeito do fetichismo da mercadoria, a classe política e a “media” consideram a ordem política liberal intocável, revogando do debate a expressão acabada do controlo político das sociedades, a democracia liberal. Um regime sequestrado por uma estrutura económica (e cultural) hegemónica, cujo modelo de desenvolvimento acarreta a degradação contínua de todos os recursos, humanos e energéticos, e que nos alicia com a superficial liberalidade de podermos escolher quotidianamente entre uma miríade de mercadorias. Obrigados a reflectir sobre as consequências do actual colapso ecossistémico, o planeta doente, simbolizado em pleno pelo imaginário grotesco desencadeado pela sindemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, mudamos de assunto. Dispostos que parecemos estar a aceitar a absoluta marginalização social, política e económica, presente e futura, em razão da própria sobrevivência do sistema que nos conduziu ao abismo. Uma ordem refém de uma formalidade política que negoceia o essencial da nossa vida social através de uma peregrinação a cada quatro anos e que culmina numa indolor cruz num papelete. Uma terra prometida, liberal e democrática, que nos territórios de acumulação alimenta a toxicodependência diária de objectos e fantasias irrealizáveis de uma escassa parte do Mercado. Uma proposta que para se estabilizar solicita no centro a atenção da nossa passividade, a consumofilia e os destroços da imaginação, e impõe na periferia a mão invisível que violenta a nudez dos corpos, providencia a miséria, espalha a poluição e reproduz o saque. Um altar à escala planetária que predica o culto de uma (falsa) abundância económica irreconciliável com a natureza e conciliada politicamente com a devastação e a exclusão da esmagadora maioria da população. Nem a classe política nem o eleitor parecem encontrar aqui contradições. Ou as mascarem para seguirem “com a cabeça entre as orelhas”.
Refutar a crítica libertária à democracia liberal – ou diabolizá-la – é uma coisa; negar o debate é outra história e constitui por si só (mais) um argumento para pôr em causa a ordem democrática actual, já que a fé que provém da produção do seu discurso de legitimação se parece em demasia com a fabricação de um pensamento único, um poderoso expediente de absolutização da verdade. Esse unanimismo que exclui qualquer dissensão quanto à forma de organização política, que da esquerda à direita interiorizou o fim da política, não merece a nossa indulgência. Um consenso que explica a estigmatização e repressão de movimentos sociais e populares, emancipatórios e progressistas, que denunciam com a sua praxis o que se categoriza por “crise de representatividade” e que encarnam formas directas de longa tradição histórica de exercer a democracia (como recentemente os Gilet Jaunes, em França). Não obstante, debaixo do circo mediático, assistimos ao número exótico de certos malabaristas que a partir de dentro do sistema de poder parlamentar falam de “crise de representatividade” sem jamais se confrontarem com uma crítica radical às instituições da governamentalidade, o Parlamento e o sistema de partidos. Estimamos que não fazem mais do que perpetuar a selfie-representação do cinismo… Tagarelar sobre a crise de representatividade sem pôr em causa o sistema partidário e parlamentar é tão absurdo como criticar o excesso de burocracia do aparelho Estatal. Ou criticar a medicalização da indústria farmacêutica, ou a insuficiente sustentabilidade ecológico da transição do capitalismo verde, ou taxar o capitalismo financeiro para estabilizar a lógica dos mercados…
Blasfemar a “democracia” ganha contornos mais obscuros quando enfrenta o imobilismo acrítico e a falta de imaginação da Imprensa em Portugal. Ao relegar qualquer crítica à democracia liberal ao silêncio, a “media” convencional estabelece uma cumplicidade acrítica que contribui de modo superlativo para a absolutização das visões do mundo – censurando o alcance de horizontes alternativos, tão necessários à esperança e à formação de convicções diversas –, absolvendo de modo rasteiro as políticas da ideologia liberal das consequências sociais, ecológicas e éticas sentidas no quotidiano e invisibilizando a potência e a arkhé da democracia.
Para completar o libelo que nos trata como ímpios, a risível cultura politicamente correcta que se instalou é bem capaz de apedrejar esta tentativa de ensaio como irresponsável a partir de um certo moralismo baseado no puré ideológico do liberalismo e dos chamados direitos individuais. Moralismo que dá rédea solta àqueles que lançam avisos à navegação de que o tempo não está para brincadeiras (revoltas) e assim confessam capciosamente e de antemão o tipo de sociedade em que preferem bracejar… Subsumidas à magia negativa da ideologia de Stuart Mill, a teoria liberal do direito pressupõe que a liberdade de cada um choca com as dos demais com quem tropeçamos ao longo da vida. O célebre lugar-comum de “a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro” não é mais do que um decalque negativo que provém de uma mistificação individualista. Uma noção androcêntrica e redutora que idealiza um sujeito autónomo e individual desprovido de dependências. A tese de uma pretensa individualidade naturalista projectada no campo de forças sócio-económicas, além de ser uma romantização antropológica, é uma falácia inverificável que perpassa estruturalmente na obra dos mais diversos pensadores do liberalismo (Locke, Adam Smith, David Ricardo, Hayek…), também presente no Romantismo, particularmente na filosofia de Rousseau. Ao direito liberal subjaz a noção de que as liberdades são concorrenciais e não compartidas, ainda que harmonizáveis sob determinados pressupostos. Foucault argumentou que esse mito com pouco mais de duzentos anos encontra o seu fundamento na acepção renascentista do indivíduo, o “Homem”, mistificado como um sujeito independente da Natureza e da Sociedade. Uma concepção que está na origem filosófica e política de outras mitologias, como o viés de classe, género e “raça”, ou não tivesse a episteme eurocêntrica nascido na mente dos Iluminados, uma metanarrativa que excluiu historicamente o povo, a mulher, o não-branco. Pese embora, nas tropelias dessa “aculturação primitiva”, também o não-branco, a mulher e o povo, enquanto personas e entidades políticas, assimilassem grosso modo o traço fundacional e entranhado do liberalismo: o antropocentrismo. Valor supremo que no contexto económico do industrialismo e das posteriores sub-fases fordista/consumista passou a justificar em pleno o dogma sagrado e neo-liberal de que a economia é um sistema independente da biosfera e não um sub-sistema desta, como desmistificou o economista Herman Daly. Tradição moral que inculcou o mantra da posse, o transe da aquisição e o puro negócio da obliteração do ser humano. Para esse efeito, fabricou a crença de que para garantir o direito à existência, num mundo que nos fazem crer que acabará catastroficamente sempre daqui a escassos segundos, é inexorável estar submetido a formas políticas e económicas que nos coagem a competir com a existência dos demais 3. Se preciso for, a custo da própria vida.
Não é por isso estranho que a trindade classe política, “media” e o cidadão bem-pensante, se disponha a espalhar a confusão, rotulando a crítica radical à democracia como suspeita de defender ditaduras e neo-fascismos, porventura de sermos amigos dos governos da Venezuela ou de Cuba, ou de outros regimes autocráticos, ou, mais em moda, de lobrigarem forças ocultas e conspiracionistas por detrás da crítica à democracia liberal. E que ninguém se meta com o espírito santo dos liberais-democratas… Nada é mais errado do que pretendemos nutrir qualquer confusão quanto a esse respeito: ao contrário da classe profissional do hemiciclo não precisamos de defender o conceito de democracia contra porque preferimos projectá-la a partir da sua arkhé positiva. Afinal, quem pode estar interessado em justificar formas de poder político ainda mais repressivas e autocráticas que o regime liberal? Suspeitamos que quem o faz terá razões para isso: falta de imaginação e de conhecimento histórico por um lado; e o rabinho entalado entre as pernas por outro, de quem precisa de salvar o pêlo comparando-se com torcionários e regimes inquisitoriais.
Um sistema que esfola a terra, intoxica o ar, envenena o mar e os rios em nome do Progresso e da Felicidade, impondo uma técnica e ética de vida – o capitaloceno – responsável pela mais do que plausível sexta extinção em massa do complexo organismo Terra.
Mas se a democracia moderna alimenta tão ambicioso projecto – o de distinguir-se da tirania –, procuremos ser pragmáticos (ou utilitaristas!) e conceder-lhe por bem o benefício da dúvida. É que não havendo fumo sem fogo talvez seja saudável traçar-lhe correlações possíveis. Por alguma razão, em Da democracia na América, Toqueville considerava que o grande mérito da democracia liberal é nivelar-se até se confundir com “a ditadura da maioria”. Outros intelectuais, com queda para o pensamento reaccionário e, por essa razão, insuspeitos e nos antípodas da nossa linha de orientação, reservam-lhe epítomes semelhantes: “ditadura do número” (Edmund Burke), “hiperdemocracia e rebelião das massas” (Ortega y Gasset), “um erro de estatística” (Borges), “festival de mediocridades” (Cioran)… Se o poder parlamentar, os partidos e as eleições, reivindicam para si a totalização da experiência política e constituem o eixo central dessa democracia representativa, onde haveríamos nós de buscar as causas das assimetrias de poder (real), da despolitização da vida social e da crise da democracia liberal?
Todos esses democratas (não conhecemos excepções) tratam a democracia liberal como uma obra acabada das formas de organização política da sociedade. Uma classe que placidamente se acomoda à máxima posição a que o cidadão comum eleva esse modelo de organização política: um mal menor. Para o efeito, arrumando a questão de quatro em quatro anos para que tudo fique na mesma. Embora convenha aduzir que são precisamente esses regimes de mal menor que amparam e incentivam um modelo económico que continua a matar à fome e a deixar na miséria milhões de seres humanos em todo o mundo à medida que se expande fisicamente para Marte e evolui espiritualmente para o transhumanismo… Um sistema que esfola a terra, intoxica o ar, envenena o mar e os rios em nome do Progresso e da Felicidade, impondo uma técnica e ética de vida – o capitaloceno – responsável pela mais do que plausível sexta extinção em massa do complexo organismo Terra. Um modelo de extorsão que especula com a habitação e degrada as condições de vida, nas cidades e no trabalho, em nome do benefício empresarial. Uma ordem bélica disposta a fabricar guerras e a matar para reproduzir a sua lógica. Enfim, tudo méritos que as democracias nos fazem suportar sem que nos facilite a tarefa de distingui-la nesses capítulos dos regimes mais insanos e despóticos. É com argumentos deste calibre que nos querem convencer a dar uma passa naquela sabidola baforada de Churchill e admitir (cof! cof!…) que a democracia é o pior sistema, à excepção de todos os outros. Claro, tudo em nome da tal propalada liberdade… Desconfiamos, no final das contas, que esses democratas (liberais), charuto SG Gentil no canto da lábia, nos obriguem a agradecer-lhes por podermos dirigir-lhes um punhado de críticas sem que o seu regime repressivo (português suave… à excepção de todos os outros) nos mande para o Tarrafal! Desenterremos de vez a lógica de dominação da democracia liberal.
Por um lado, na simbiose do poder entre Estado e Democracia (Liberal), o fundamento militar-armado – ou seja, a tradição patriarcal e autoritária – permanece oculto e dissimulado nas trevas da democracia, mas sempre à espreita nas sombras como um instrumento de coacção. Por outro, na simbiose ideológica entre Liberalismo e Democracia, o fascismo explícito recua mas permanece como um espantalho, uma espécie totémica da classe dominante que reaparece à medida que o lodo da classe dominante agita as suas águas profundas. Só não vê quem não quer. Quando à superfície aparecem os resíduos opressivos ocultos na demagogia liberal (ver Parte I, Jornal Mapa ed. nº 30), dá-se a polarização que tem como objectivo político principal excluir outros espectros – o espéculo do dissenso, a potência da discórdia, a praxis autónoma do autogoverno –, legitimar o status quo e fazer dos liberais os salvadores da democracia. É quando os liberais estripam o fascismo, não para o enterrarem de vez mas para se enrolarem nas suas vísceras. Dispostos a enrolar o seu próprio pescoço nas tripas do fascismo para que “o projecto de uma sociedade em que todos os cidadãos têm uma igual possibilidade efectiva de participar na legislação, no governo, na jurisdição, e, por fim, na instituição da sociedade” 4 caia mais uma vez por terra. Então, quando o poder armado e/ou o (neo)fascismo recuam, cumprido que foi o seu papel instrumental e estratégico outorgado pelo regime liberal de amansar a população, a democracia ressurge ex-nihilo, tirada a limpo, removendo da história as nódoas de sangue e as lágrimas que escorreram. Um passe de mágica, banho lustral a seco: baralha e torna a dar, uma nova rodada vai começar. À mostra, não é demais repetir, fica o ovo da serpente do discurso liberal e parlamentar: é de falsas alternativas que vive o poder! Enquanto acreditarmos que em política não há mais do que escolher entre a democracia parlamentar liberal e a ditadura não vamos sair do lugar onde estamos. É que não há política onde não há grandeza no adversário. Há apenas a sua corrupção. E o cinismo liberal. É nesta aporia que reside a ilusória igualdade liberal, pedra de toque do neo-liberalismo para perpetuar, sem tensão e conflito, sem superação e utopia, a base estrutural de um poder intocável.
A publicidade liberal não sustenta a liberdade mas justifica a dominação
Os ideólogos ou publicitários contemporâneos da ideologia liberal jamais sustentam a liberdade política com argumentos. Como demonstra a filósofa Monserrat Galcerán em Deseo (y) Libertad não é a soberania política que procuram defender e justificar, mas justo o seu contrário: a dominação. “O uso ideológico do termo [liberdade] transmite o espelhismo de que nas chamadas “sociedades livres” não existe dominação alguma e que todas as suas dependências são voluntárias e livremente adquiridas. (…) Mais proveitoso seria partir do ponto inverso e analisar as múltiplas dependências e as capacidades que todos e todas temos para traçar estratégias políticas que gerem laços equitativos de reciprocidade (…) ao invés, querem-nos fazer crer que somos livres num mundo de dominação, o que implica interiorizar a sujeição como única possibilidade de vida, ainda que isso pressuponha pôr em causa o nosso desejo de viver e atente contra a nossa própria sobrevivência” 5.
Esta sujeição implícita à subjectivação liberal da democracia forneceu a argamassa (mono)cultural para a entronização absoluta da moral capitalista. O capitalismo não se reduz ao reino do mercado e da transacção, mas efectivou-se como uma instituição social – como cultura, formas jurídicas e discursos de verdade que produzem subjectividades tecno-capitalísticas –, cujo significado imaginário central é a expansão ilimitada do domínio racional (ou pseudo-racional…). Autores como Horkheimer, Marcuse, Munford, Castoriadis… falam da aplicação absoluta do ideal cartesiano que estabelece como supremo fim humano o alienante controlo e posse da natureza. O que inclui de resto a natureza humana, uma vez que o ser humano não se encontra dela separado e não é invulnerável nem à manipulação da posse nem à escravização… Projecção da modernidade à escala planetária e sobre a história global, em menos de três séculos a lógica do Capitalismo e a ideologia liberal delapidaram até à exaustão as reservas naturais. Mas mais do que isso, o projecto “da nulidade ética do Ocidente”, como declara a voz do Comité Invisível, sustentou-se e sustenta-se na delapidação das reservas antropológicas, constituídas ao longo dos milénios. O colonialismo, a escravização e o extermínio, são as tácticas políticas mais extremas – “centro estratégico da acumulação primitiva”, segundo Silvia Federici – para atingir essa miserável meta de instituir um ideal de felicidade…
Se o Ocidente vive há mais de dois séculos num regime relativamente liberal, não foi por causa desse fetiche do indivíduo autónomo (liberal ou anarco-individualista), da meritocracia ou da substância divina do “povo soberano” ter encarnado na classe regente – por mais que a classe da governação reivindique hipocritamente esta mistificação. Não foi também por causa das ideias expressas por um punhado de filósofos, por mais que a filosofia das Luzes tenha sido “a expressão de certas partes de um novo imaginário”, como sublinha o historiador Cornelius Castoriadis. De modo diverso, prossegue o historiador e filósofo grego, “surgiu na vida efectiva da sociedade com as explosões da Revolução Americana, a Revolução Francesa, o movimento operário inglês a partir de 1800” 6. Surgiu das lutas operárias e populares. Porque houve quem não parasse de lutar por um ideal de justiça social e equidade de poder. Porque milhares deram a vida ao longo da história do mercantilismo moderno. Porque milhares de seres anónimos – não filósofos – acreditavam que a liberdade era o nobre fim da política, em oposição ao conceito liberal que postula que o objectivo da política é a felicidade. Este falso dilema da tradição liberal, plasmado na retórica de pensadores como Popper ou Rorty, é de acordo com Castoriadis uma “ideia muito perigosa”. E justapõe: “Se com efeito o fim da política fosse tornar as pessoas felizes, bastaria votar algumas leis que decretassem a felicidade universal, através, não sabemos bem, da música de Cage, da leitura obstinada dos Upanishad” 7, de vouchers para a Disneyland ou da milagrosa Soma Huxleyiana. O historiador e animador da revista Socialisme ou Barbarie, remata com um exemplo ilustrativo e histórico: “Os dirigentes dos países comunistas estavam dispostos a fazer a felicidade das pessoas ainda que contra elas” 8.
Qual a melhor forma de governo é a questão a que a filosofia tenta dar resposta desde Platão. Maquiavel, ao que parece maquiavelicamente injustiçado, deu-nos a lição de que o poder governativo não se esgota nem numa concepção autoritária nem idealista, mas que a primeira necessidade do poder é a de que “o governo perdure”. Cada vez mais diluída num conjunto de instituições (parlamento, partidos e eleições) a democracia foi perdendo o que a define em substância: a dissolução social de toda a forma de poder de sujeição política, a igualdade radical na participação política e o reconhecimento do poder constituinte como a raiz da democracia. O projecto da autonomia política, individual e social não advém de uma interpretação filosófica mas está vinculado à história. “Vem de longe, das cidades democráticas da Grécia Antiga, e ressurgiu sob múltiplas formas na Europa Ocidental moderna. Os elementos democráticos que subsistem nas sociedades ocidentais ricas de hoje não são produto do capitalismo, mas resíduos das lutas democráticas dos povos, e muito particularmente do movimento operário” 9, sustenta Castoriadis. A tradição parlamentar representativa não é a única, nem a definitiva, nem sequer a noção central da democracia. A concepção de uma democracia que se reduz ao confronto dos partidos que visam apoderar-se da direcção do Estado, “não é apenas uma concepção restritiva”, mas de acordo com o autor de La Société bureaucratique “uma concepção burocrática da política” 10. Nem a propósito, o filósofo e militante Mario Tronti, comprometido até ao tutano com o marxismo operaista, concluiu: “A tragédia protagonizada pelo movimento operário (…) consistiu em ter tido necessidade de um partido político proletário” 11.
«Os elementos democráticos que subsistem nas sociedades ocidentais ricas de hoje não são produto do capitalismo, mas resíduos das lutas democráticas dos povos, e muito particularmente do movimento operário».
A História contra o Parlamento
Historicamente, a instituição que constitui a origem da democracia moderna, o parlamento, não tem nenhuma origem democrática nem constituinte. Os parlamentos, as cortes, eram as instituições estatutárias das ordens medievais enquanto poderes de interlocução com o monarca. O seu aparato estatutário enquadrava as três grandes castas das sociedades europeias desde a Baixa Idade Média, a nobreza, o clero e o terceiro estado, a nascente burguesia. A revolução inglesa do século XVII (e a francesa de 1789) recupera esta câmara de representação destes três poderes separados do resto da população. Em rigor, nessa época que define o enquadramento político da democracia moderna, o poder monárquico e absoluto cede aos interesses da burguesia emergente para lhes atribuir formalidade e legitimidade política através da instituição do parlamento. Legitimidade que vem estreitar os laços que as uniam: estas classes consideravam-se não só as únicas capazes de reger os destinos da nação como também de representar a soberania nacional. Mais, julgavam-se donas do próprio Estado.
A democratização, entre aspas, desta instituição “pseudo-democrática”, o Parlamento, que teve uma origem elitista e antidemocrática, dá-se precisamente quando na transição e dealbar do século XX um processo de lutas sociais e operárias 12 na Europa e nos EUA veio a desembocar na ampliação do sufrágio ao voto universal masculino e, posteriormente, das mulheres. Um longo trajecto de lutas populares e operárias – e dos primeiros movimentos feministas sufragistas – que carregavam, com os seus equívocos e ilusões, uma visão radical das formas de organizar o poder em sociedade, um modo de entender a democracia que fazia jus à horizontalidade dos poderes, à decisão colectiva e universal.
Porém, seria impreciso historicamente considerar a reivindicação do sufrágio universal como o objectivo orientador do movimento popular e operário. De um modo generalizado, até à segunda década do século XX, a cultura operária continha no seu âmago uma dissensão política e económica radical, no seio da qual a reivindicação do sufrágio constituía apenas um marco processual. Razão bastante – as formas políticas e económicas de ruptura – para que as forças dominantes – o capital e o poder político – se vissem forçadas a incorporar uma representação das classes populares no parlamento para obviar o cisma social, a guerra civil, a latência de processos revolucionários. É arguível que mais de um século de lutas, entre 1789 e 1917, manteve unidas revolução e democracia. “De 1789 à Comuna de 1793, das revoluções de 1830 e 1848 à Comuna de Paris, cada episódio revolucionário pareceu radicalizar o pressuposto do anterior” 13 , deduz o historiador espanhol Emmanuel Rodríguez. Nessa longa Noite dos Proletários, as liberdades civis e políticos foram-se acrescentando umas às outras porque “provinham de um espectro social que havia irrompido na esfera política (…), esse fantasma não era mais que a revolução enquanto passo necessário (…) de instituir a república capaz de incluir a voz de todos aqueles que até aí não a haviam tido” 14, conclui o autor de Hipótesis Democracia. Recordemos que as máximas inspirações teóricas destas correntes multiformes e destas lutas populares que incluíram a reivindicação do sufrágio nas suas lutas, Proudhon 15, Bakunin e Marx, consideravam que essa “representação” parlamentar não passava de uma forma de justificar e legitimar o governo autocrático da “burguesia”.
De modo diferente do governo do povo que a raiz da palavra democracia subentende, o representante eleito na democracia liberal é muito mais do que um mero representante dos seus votantes. Representa algo mais abstracto, tão abstracto (e absoluto) cuja apreensão se foi esbatendo com o passar do tempo, sobretudo com a hegemonia monolítica do discurso liberal, até se ocultar em projecções fantasmagóricas como “soberania nacional”, “soberania democrática”, “Estado de Direito”… Este poderoso fetichismo taxonómico reivindicado para justificar a democracia liberal é de acordo com toda a tradição liberal até aos nossos dias uma instância transcendente herdeira dos poderes do monarca 16.
A soberania política que devia residir em cada ser humano e em cada um deles é entendida como uma categoria de poder transcendente, uma alquimia que a torna numa categoria única e indivisível, omnicompreensiva, qual vontade geral (Rousseau) que vem a encarnar em exclusivo na boca da elite que governa, desse modo entronizada como os únicos e legítimos porta-vozes (e porta-fogos) dessa vontade geral – vontade geral que passa a confundir-se com os interesses gerais, por sua vez também os únicos e legítimos do Estado. A soberania política é assim não apenas mediada (representada), mas o seu poder é transferido (extorquido) em absoluto de cada ser para uma classe regente. Fiéis depositários da tradição liberal da classe regente (e, por sua vez, do poder de suserania), a actual classe profissional governativa e parlamentar, sem excepções, passa a estar investida do uso de um poder soberano que não corresponde nem à dignidade nem à soberania de cada ser humano, nem à arkhé política que este carrega, aquela que em teoria está no fundamento da soberania democrática.
Historicamente, a instituição que constitui a origem da democracia moderna, o parlamento, não tem nenhuma origem democrática nem constituinte.
Democracia directa, uma tradição herética
A esta falsificação histórica da Democracia opõe-se a tradição da democracia directa. Nesta visão, a palavra autogoverno e, com não menos motivo, soberania, são redundantes entre si. Na democracia directa não é necessário invocar leis transcendentes por de cima do corpo social. Uma tradição de dissenso com o poder dominante que era expressão de um poder político directo e auto-empoderado, não de uma representação deste. “O que se traduziu”, sempre Castoriadis, “por aquilo a que devemos chamar formas de criação social – e não de experimentação –, como a constituição dos primeiros sindicatos, das associações mutualistas, das cooperativas”. Isto é, uma classe que “não poderia ser apenas um movimento de contestação da ordem estabelecida (…) mas um movimento de auto-organização, uma auto-instituição positiva” 17. Experiências históricas que se estenderam da Comuna de Paris, aos sovietes de 1905-1917, aos conselhos revolucionários de 1919-21 na Alemanha, à autogestão da Revolução Social Espanhola em 1936 ao comunitarismo e experiências de autogoverno da Revolução dos Cravos 18. Tudo criações humanas, historicizadas a custo da auto-determinação e da coragem, da imaginação e da cooperação. Uma ética política, herética e antiburocrática, que não vingou no tempo não por defeito próprio mas por ter enfrentado a lei da bala, da bomba e da traição.
Uma cultura emancipatória e progressista que foi subjugada pela violência e a coação organizadas politicamente pelas forças do capital e pelas classes hegemónicas liberais, mas também neutralizada pela burocratização das lutas levada a cabo pelas vanguardas marxistas, esquerdistas e anarquistas.
Há outra questão raramente problematizada. No seio destas lutas populares pulsava ainda uma visão ética da vida social inspirada numa cosmovisão absolutamente heterónoma aos valores da classe do poder. Ao analisarmos a pujança da cultura popular durante a Revolução Espanhola ou a Revolução dos Cravos, percebemos que os valores presentes nestas lutas eram irredutíveis aos ideais de vida da classe hegemónica, materialistas e individualistas, de matriz hierarquizante, propensos à escala relacional não-humana e anti-ecológica, produtivista e de cariz providencialista-consumista. Ao fim ao cabo, populações que não apenas lutavam por um ideal secular de comunalidade, de auto-suficiência económica e de reciprocidade, que valorizavam os bens imateriais e espirituais, que transformavam a acumulação na partilha colectiva, na festa e no folclore, mas que no caso particular da Ibéria, alimentaram (até hoje) uma concepção do usufruto colectivo dos bens e dos recursos, relutando por preservar uma sólida herança de deliberação e decisão soberanas, reflectida no duradouro costume das assembleias de compartes ou na instituição do conselho aberto. Enfim, populações, tantas vezes vilipendiadas pela própria vanguarda militante, mas que pareciam incólumes à miséria das promessas do capitalismo cognitivo… 19 Uma perspectiva histórica e uma lição de soberania das sociedades ibéricas ao nível político, económico e ético, que nos parece crucial para superar a promessa capitalista e traçar cosmopolíticas em devir-esperança. A teoria militante, toda ela, não está isenta de responsabilidades na invisibilização desta verdadeira cultura soberana e autónoma. O imaginário militante, tanto marxista como anarquista, colonizado pela ideologia do Progresso, foi enviesado pela narrativa de um paraíso terrestre de abundância material, pelo culto da racionalidade instrumental e por uma concepção antagonista do poder. Cantos de sereia que concorreram para a conformação de um paradigma de existência afim à subjectividade alienante, materialista, dependente, providenciada e estupidificante do capitalismo terminal, que quase elidiram das sociedades uma herança heterogénea, auto-determinada e comunalista, com milénios de história, onde liberdade política e autonomia económica constituíam marcos matriciais.
É por tudo isto que somos levados a concluir que a democracia (liberal) é um campo de tréguas depois que aqueles que almejavam revolucioná-la foram derrotados. Castoriadis: “Se hoje vivemos sob um regime liberal, não é porque esse regime foi outorgado pelas classes dominantes. Os elementos liberais presentes nas instituições contemporâneas são os sedimentos das lutas populares no Ocidente desde há séculos, lutas que começam com os combates travados desde o século X pelas comunas visando obter um relativo auto-governo. Se hoje constatamos uma atrofia das lutas, ninguém pode dizer que se trate do estado definitivo da sociedade. Não há nem haverá jamais estado definitivo da sociedade” 20. A assunção desta inverdade “do estado definitivo da sociedade” é aliás um poderoso elemento – quiçá o mais profundo e determinante – de legitimação do regime democrático liberal, contribuindo para espalhar o conformismo e a descrença ao render-se à trama dominante dos coveiros da criação histórica humana e ao divinizar a democracia liberal como um absoluto inultrapassável. Com “a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir” (Chico Buarque). O caricato é que encontremos nessa equação, que semeia a resignação e a incredulidade face à forma liberal da política, uma variável improvável: a classe política da esquerda.
A ficção do povo suplementar
É neste ponto que a discussão à esquerda termina de imediato, como aconteceu àquele leitor que com uma só palavra desferiu uma crítica radical ao sistema liberal que, presume-se, elege “cus de boi”. Embora com argumentos distintos, na prática os defensores do socialismo de Estado e os democratas liberais têm algo em comum para lá do monopólio de um exército e da violência do Estado. Ambos acreditam que têm a ciência e a legitimidade de decretar o que é bom para o resto da sociedade. Os primeiros sem sofismas e através do totalitarismo ostensivo; os segundos fazendo crer que quando falam e agem em nome do “povo soberano”, fazem-no pelo povo. Mais uma vez, ambos entendem a política não como uma acção que visa a liberdade política de todos e de cada um, mas a felicidade do outro e da sociedade como um todo. Pese embora, prossegue o filósofo grego, “nós nunca teremos a ciência do que é bom para a humanidade. (…) Se houvesse uma, não seria a democracia que deveríamos procurar, mas antes a tirania daquele que possuísse essa ciência” 21.
Uma vez mais, a ficção do povo soberano incarnada pela intocável classe política, profissional e separada, é a substância etérea que legitima a entidade representativa do Parlamentarismo, transe que canaliza o nirvana da forma absoluta do “estado definitivo da sociedade” (política). Um traço de união entre a lógica governamental liberal e as práticas políticas (regime parlamentar, partidos e eleições) que são sempre uma prática de divisão do povo, consumando-se na constituição e entronização dum povo suplementar, representado pelos parlamentares e incarnado pelo Estado. Como salientam autores como Castoriadis, Lordon ou Rancière, o reino da formalidade liberal resume-se a uma pretensa igualdade de direitos, éden da nunca realizada efectivação da promessa do liberalismo. A democracia formal não só é nua na sua relação com o poder do capital como não é garantida por nenhuma forma institucional. Ela só se confia à constância dos seus próprios actos, à efectivação da “excepção soberana” das populações. Em sentido inverso à “excepção soberana”, Jacques Rancière relembra que “a vitalidade dos nossos parlamentos é alimentada e apoiada pelos partidos dos trabalhadores quando ontem estes denunciavam a mentira da representação” 22. Para embaraço da esquerda partidária, a crítica ao regime parlamentarista e partidário tem um resoluto e insuspeito defensor: Marx.
Para embaraço da esquerda partidária, a crítica ao regime parlamentarista e partidário tem um resoluto e insuspeito defensor: Marx.
A crítica de Marx ao parlamentarismo foi completamente esquecida pela herança do marxismo dominante. Uma amnésia que tem mais de um século! Em 1920, Amadeo Bordiga era já o último a convocar esse Marx politicamente revolucionário ao elaborar “Sobre a ilusão democrática”: “Para a Europa ocidental, o problema revolucionário impõe antes de mais toda a necessidade de sair dos limites da democracia burguesa [liberal], de demonstrar que a afirmação burguesa de que toda a luta política há-de desenvolver-se no mecanismo parlamentar, é um embuste e que a luta deve ser levada sobre um novo terreno: o da acção directa, revolucionária, pela conquista do poder” 23. A virtude do teórico italiano recordar Marx ganha relevo histórico (e sincera candura) quando o fez em Moscovo, no Segundo Congresso da Internacional Comunista, sob a égide de Lenine. Quando o marxismo-leninismo esquecia em definitivo o poder da auto-organização (e dos sovietes…) e se acomodava à funcionalidade liberal do poder, o histórico comunista italiano fica isolado ao não subscrever as “21 condições da táctica parlamentarista sindicalista”, propugnadas por Lenine.
Pese embora a lucidez de Bordiga, é necessário notar que, na passagem acima citada, não há apenas a denúncia do embuste da democracia (liberal), mas a armadilha em que caiu a herança marxista (Bordiga incluído): “a conquista do poder”… Uma preposição que diante do naufrágio capitalista não questiona a direcção do barco nem os fundamentos hierarquizados em que assenta o casco do poder, pois assume que o fundamental é tomar o poder de navegação de assalto e mudar a tripulação. Neste panorama, a esquerda sublima o modo de produção e a técnica do capitalismo, porque para ela o problema político reside num modelo de mareação que “serve unicamente os capitalistas, em lugar de servir a humanidade inteira”, como resume Castoriadis. Acomodando-se à maré neo-liberal, este paradigma ético-político reivindicado pela esquerda herdeira de Marx consolidou-se em definitivo desde os anos 80 do século passado. A sua aventura náutica acaba à deriva: é a esquerda ou a direita que devem gerir o capitalismo? Beco sem saída: já não é a barbárie da técnica capitalista que importa questionar, mas saber quem deve geri-la. É o historicismo místico do pensamento de Marx (na Crítica a Feuerbach), as inexoráveis leis do materialismo dialéctico, à procura da sua classe gestora…
Tal como o capitalismo afectivo dispõe dos seus coachers (mas em regime freelancer…) para que todo o espectro possível da vida do assalariado seja integrada na totalidade empresarial, valorizando (rentabilizando…) aptidões e conhecimentos pessoais desenvolvidos nas horas de lazer, incorporando o yoga a meio da manhã para abrir os shakras produtivos, prodigalizando a meditação às quartas para diluir tensões hierárquicas, encomendando o sushi à sexta à tarde para fortalecer o espírito de missão da empresa, oferecendo retiros espirituais com neo-shamãs regados a cacau puro para em surto hipnótico fomentar a rendição dos explorados e quiçá cotizá-los como accionistas nos activos da empresa e, principalmente, rentabilizando e monetarizando qualquer ideia, aspiração ou fantasia do assalariado – que serão vistas como um activo pelo CEO, pronto a investir se o gestor de projectos lobrigar cifrões e potencial lucrativo… –, também a democracia-liberal têm ao seu dispor uma inesperada vanguarda de coaching. Por mais irónico que possa parecer, a crítica assestada contra o regime liberal da democracia faz soar os alarmes não à direita do hemiciclo mas à sua esquerda. Efectivamente, são os partidos fundados sobre matrizes ideológicas revolucionárias, os tais que “ontem denunciavam a mentira da representação”, os únicos a assumirem a solo o papel de guardiões da inamovível e conservadora democracia liberal, vestindo a pele de personal trainers para domesticarem a “excepção soberana” e vituperarem a horda de críticos, recalcitrantes, inadaptados, abstencionistas, acratas e “analfabetos políticos”… O regime de dominação do capital e do poder democrático agradecem e seria justo reconhecerem-nos como representantes da tal docilidade ortopédica de que falava Foucault, tão necessária à servidão voluntária. E assim se poupa o poder de arreganhar os dentes… a não ser, precisamente, quando a população (a excepção soberana) escapa ao controlo da esquerda institucional.
Não é por isso de estranhar que, em vésperas de eleições, simpatizantes e militantes do PCP e do BE pareçam preocupados em morder os calcanhares aos abstencionistas, capazes de lembrarem o que custou a ganhar a democracia e a liberdade (a liberal e vinculada ao individualismo). Por um lado, parecem pouco preocupados com o uso aterradoramente pobre, conformista e inconsequente que tanto eles quanto os seus súbditos fazem da constituição e dessas liberdades teóricas. Por outro, cerram portas a formas extra-parlamentares e não-burocráticas de fazer política. E é o medo desta «excepção soberana» que inquietará sempre os partidos de esquerda, que se assumem como depositários da “vontade do povo”. Há que impedir que «a política» saia do quadro institucional no qual vivem e que os faz viver, que ela seja ultrapassada pela iniciativa directa, a imaginação concreta da auto-organização da vida, formas políticas que foram fulcrais no passado para instituir o sufrágio universal – à excepção das crianças… que continuam a mostrar a valente careta do Ferdydurke… –, esteio de legitimação da democracia liberal.
Voto nosso que estais no boletim, venha a nós a nossa derrota, assim na terra como no céu
Quem se vangloria de uma virtude tão ingénua como o voto, num tempo pernicioso e desencantado como o actual, ignora que “nem o partido mais justo”, dizia Montaigne, “nem por isso deixa de ser um membro de um corpo carcomido e bichoso”. A ingenuidade de solicitar a quem tem poder a solicitude de mudar o poder, deixa de ser ingénua quando se casa com a mais retorcida auto-suficiência: “O analfabeto político ignora que votar em branco, ou abster-se, é sempre, sempre votar em alguém. O vencedor, secretamente, agradece” (João Pedro Mésseder). Estamos em crer que a esse caricaturado analfabeto político não deve faltar um palmo de testa para perceber algo tão simples para que o ignore. É sempre fácil estigmatizar a inteligência do abstencionista em abstracto. De modo diverso, assemelha-se bastante mais difícil interrogar milhões deles. Nessa impossibilidade – e no logro da impotência gerada pelo regime liberal –, reside aliás o feitiço da legitimidade das estruturas separadas de soberania, a metafísica do poder representativo. Dando de barato que a tese de Mésseder não questiona “o éden da promessa liberal” nem atinge o fetiche da legitimidade estratosférica do “povo suplementar” que acabámos de desconstruir, quiçá apavorado pelos fantasmas da “excepção soberana”, admitamos que a sua premissa está correcta. Descontando o contexto que ignoramos, o autor parte da presunção de que o abstencionista (ou o “branquista” saído do Ensaio sobre a Lucidez) se passasse a votar votaria sempre no perdedor que o autor, presume-se, gostaria que não fosse derrotado. É o primeiro equívoco, o dito uíí-xefule-fin-king. Mas o autor ignora o mais simples: é que o vencedor agradece sempre à democracia. E parece ignorar ainda que o vencedor não o faz secretamente, mas com um sorriso cínico a ele dirigido – a si, votante em geral que exerce em pleno os seus direitos. Daí que quiçá seja mais consequente e demonstrável que o analfabeto político não é tanto aquele “que ignora que votar em branco, ou abster-se, é sempre, sempre votar em alguém” mas precisamente aquele que ignora que votar é sempre uma vitória de facto para a democracia liberal, a que temos. É muito provável também que o abstencionista, vá que não vá, conserve alguma ilusão intuitiva de que o liberalismo é uma falsificação da democracia. Bem vistas as coisas, afinal o analfabeto político é bem capaz de ser aquele que ignora que votar foi a reparação de uma derrota histórica infligida a populações que queriam transformar a vida política, social e económica, que queriam ir à raiz da democracia. É trigo limpo supor que o analfabeto político continue a acreditar que qualquer veleidade revolucionária – essa ética política que logrou o sufrágio universal – foi derrotada pelo sistema económico capitalista, jamais se perguntando se terá sido afinal a democracia (liberal) a causa maior da sua derrota… O problema da assunção de Mésseder é evitar qualquer deslizamento histórico, impedir as brechas que instigam a pensar a sociedade sem a divisão entre dominantes e dominados.
Tal como estamos em crer que a maioria dos abstencionistas não vota por razões de dissenso ideológico, mas por não reconhecer no sistema político capacidade ou vontade (ou ambas) para resolver desde problemas de lana caprina a problemas graves – iniquidade no acesso ao poder, injustiça social, desigualdade económica ou problemas de amplitude global como a guerra, a fome e o colapso do ecossistema… –, também partimos do pressuposto que uma boa parte dos que votam não o fazem por identificação ideológica. O que aliás não se afigura tarefa simples em vista do panorama esquizofrénico geral, vá se lá saber o que tem o PSD de social-democrata se essa sigla é a cara do BE, ou do que é que o PCP está à espera para apelar aos trabalhadores para tomarem os meios de produção e iniciarem a colectivização da economia… talvez não o faça em virtude do inexcedível socialismo do PS. Pelo que parece um inexorável processo de degeneração e esquizofrenia, como aliás sucedeu um pouco por toda a Europa. O que em seguida nos leva a suspeitar que esta desnaturação política do espectro partidocrático não é casual, mas resulta de razões que podemos e devemos rastrear para lá dos totalitarismos históricos que atingiram o seu auge no século XX (sobretudo o nazismo e o estalinismo) e que por si não chegam para explicar, ou legitimar, a cristalização, o cinismo e o embuste da democracia liberal. Não descuremos a hipótese de que as famosas liberdades democráticas estavam feitas justamente para falsificar a política: para que toda a gente faça o que lhe mandam fazer voluntariamente, com a plena convicção de não estar a obedecer a nenhum mandamento coactivo e fabricado, mas ao seu próprio arbítrio, ou não estivéssemos nós perante o cidadão liberal e independente, esse ilustre senhor de si e do seu nariz. Em todo o caso, se não estavam feitas para isso, conduziram efectivamente a esse beco sem saída.
Por tudo isto, confessamos que não morremos de amores pelo actual estado das coisas e não admira que reneguemos a política liberal de entender e interiorizar o mundo e o outro, regime que se ritualiza e promove uma parte não dispecienda da sua legitimação nos processos eleitorais. Uns não gostam, outros engolem, outros ainda, nos dias de voto, preferem fazer como a mais bela Tigresa e “dançar no frenetic dancing days”.
Quem quer que concorde com esta suma crítica à democracia liberal e ainda assim se decida por bem a votar, ressalvamos que não partilhamos o assomo do puritanismo dos anarquistas de sangue puro, lestos a babarem a sua moralina. É que no fim das contas sabemos bem que votar por mal menor não é mais nem menos comprometedor que não mexer uma palha. Por mais que as posições politicamente correctas anarco-individualistas se indisponham, o antagonismo não quer libertar-se da dialéctica que ficou em círculo vicioso (e categórico) na labiríntica de Hegel. É que de contradições está o nosso inferno cheio. Além disso, outro problema mais real e menos teórico se coloca: sendo legítima a abstenção eleitoral, por acaso, é razão para nos encher de satisfação, se esses abstencionistas não fizerem um caracol pelo colectivo? Se não procuram formas mais justas de colaboração ou/e se não combatem a iniquidade no seu dia a dia? É que esse regozijo com a abstenção, que no fundo se assemelha ao regalo dos tecnocratas e dos partidos do arco do poder, é deveras estulto se não coloca a hipótese de que, bem vistas as coisas, esse abstencionista se parece muito com o cidadão votante… conformado, desinteressado, apolítico. Tanto um como o outro, confortavelmente instalados fora da história. Ou melhor, instalados na história oficial, nesse presente perpétuo, inamovível, estagnado. “A indiferença é o peso morto da história”, dizia o comunista Gramsci. Embora a declaração de ódio aos indiferentes do marxista italiano nos pareça exagerada, a consigna do historiador norte-americano Howard Zinn nada tem de desmedida: “Num comboio em movimento não é possível ser neutral”.
Todos esses democratas (não conhecemos excepções) tratam a democracia liberal como uma obra acabada das formas de organização política da sociedade.
O Estado: marco da produção da subjectividade capitalista
Mancheia de razões para voltarmos a colocar uma questão simples: afinal, esta democracia, o “governo do povo” como radica na sua raiz, é ou não uma mentira? Pergunta essencial que suspeitamos não andará longe da mente do cidadão mais distraído. Desmontar este embuste permite-nos resgatar o questionamento de La Boétie, esquecido e negligenciado por toda a cultura de esquerda, quando explicava que a verdadeira obediência consistia não em fazer o que nos mandam fazer, mas precisamente em assumir como sua a vontade de quem manda.
Se argumentámos até à exaustão que filosófica e historicamente o parlamentarismo e a democracia representativa são uma mistificação, que resulta numa inescusável separação entre classes e na falsificação da potência do conceito democrático, o mundo contemporâneo encarregou-se de aprofundar essa linha de continuidade histórica da falsificação da democracia. As democracias contemporâneas de governo do povo não têm mais do que o nome. Votando ou não, os cidadãos da república têm pouca ou nenhuma influência sobre as decisões dos governantes ou dos representantes eleitos. Muito menos, dispõem os eleitores de qualquer influência sobre os aparatos burocráticos estatais e transnacionais, nem sobre as estruturas económicas e financeiras que regulam o mundo do trabalho e do mercado.
Vários autores têm-se debruçado sobre este “sequestro da actividade política”, como descreve Monserrat Galcéran, por uma casta de políticos profissionais, gestores, administradores e lobbys empresariais e financeiros. Numa reflexão sobre a UE, Etienne Balibar identifica um lobby empresarial com estreitas ligações às hierarquias de Bruxelas, composto por executivos ou seus mandatários de grandes corporações transnacionais ou grupos de pressão que se instalaram à volta (quando não dentro) dos edifícios comunitários. Uma classe não eleita de altos executivos semi-públicos e semi-privados que discutem, propõem, influenciam e, por fim, determinam a tomada de decisões por de cima do comum dos mortais (apesar do seu endeusado instrumento democrático, o voto). Immanuel Wallertsein aponta mesmo o dedo a “uma classe dominante mundial”, uma nova classe de gestores a nível global que denomina de “agentes da acumulação” e que incluem altos executivos, investidores, políticos e gestores que de facto têm ao seu dispor organismos transnacionais/globais de tomada de decisão política, tais como a OCDE, o G8, a OMC, o Banco Mundial e o FMI. A filósofa catalã acrescenta que este processo de compactação de uma elite dominante saiu favorecido por condicionantes não directamente políticas, ligadas à conformidade ideológica, à globalização das estratégias neo-liberais de extracção social, à homogeneidade curricular e educativa dessa elite, à desmesurada acumulação de meios, e à flagrante convergência de interesses concretos da gestão capitalista e da tecnocracia política dos aparatos estatais, quando não o fenómeno recorrente e crescente de revezamento em placa giratória entre cargos directivos e políticos, uma flutuação pendular, qual bolsa de valores, que concorre para esse processo de homogeneização dessa esfera do poder político, económico e financeiro a nível mundial, coorte que decide o destino do mundo, não é de mais lembrar, sem que o votante (ou o abstencionista) seja tido nem achado.
Antes de abordar outros pontos cardeais indispensáveis a uma crítica sistémica, caberia perguntar se esta caracterização histórica, filosófica e da factualidade contemporânea, não basta para a pessoa mais sensata e interessada pelo seu destino e os destinares do mundo se propor no mínimo a uma mudança radical da democracia liberal. Não seria apontar a um futuro político menos iníquo e injusto, imaginar, no mínimo, uma progressiva mas consistente substituição desta oligarquia electiva e seus mega-aparatos separados dos cidadãos a que se dá o nome de democracia liberal? Uma instituição que é incompatível histórico-politicamente com o exercício soberano e directo da população sobre o seu próprio destino.
A esta falsificação histórica da Democracia opõe-se a tradição da democracia directa.
Marco civilizacional e elemento histórico da divisão social entre classe dominante e populações dominadas, o Estado cumpre um papel fundamental na produção da subjectividade capitalista e liberal. O termo Estado-providência revela a sua origem de catadura patriarcal e manifesta às claras que todas as dinâmicas sociais que passam no crivo do aparelho estatal estão sujeitas a uma relação de dependência que produz uma subjectividade paternalista e autoritária. Inerente a esta conceituação simbólica de valores, a subjectividade estatolátrica conduz por sua vez ao seu reverso, “uma subjectivação infantilizada”, como assinala Félix Guattari. Essa função integral do Estado moderno, que vai muito além do poder administrativo, financeiro, militar e policial, realiza-se através de um regime assistencialista de salários indirectos, compensando as incapacidades da economia liberal, um sistema de subvenções que determinam a regulação e autoregulação de camadas excluídas da sociedade, um dispositivo que busca disciplinar e conduzir à autodisciplinização a população que foi segregada pelo sistema económico. A forma procedimental do Estado colmatar as insuficiências e exclusões do mercado é mais uma vez patriarcal: essas camadas da população passam por um filtro de avaliação, controlo, fiscalização e hierarquização, tarefas de domesticação e integração social da era do capitaloceno, que futuramente serão amparadas em escala pela Inteligência Artificial e a ditadura do algoritmo. Em complemento à perspectiva althusseriana dos “aparatos ideológicos do Estado”, Guattari considera que “não se trata apenas de equipamentos visíveis, encarnados na sociedade. O Estado também funciona a um nível invisível de integração” 24.
Mais visível, a reprodução de um mega-aparato burocrático transnacional cresceu de tal maneira na era neo-liberal que veio a constituir-se num factor determinante para o grau de impotência sentido pelas populações. Mesmo as camadas sociais mais cientes das mistificações históricas, políticas e da fabricação de consensos do regime liberal, enfrentam o sentimento de impotência como o factor mais desgastante e incapacitante para encarar a mudança e acreditar na efectivação soberana e autónoma da política. Reprodutibilidade maquinal das estruturas do tardo-capitalismo que de uma assentada põe a nu a incoerência e a hipocrisia do discurso anti-estatista neo-liberal, o trauma nunca atingido da independência dos mercados ou da meritocracia de qualquer empório económico, e o cínico sonho molhado do Global Governance, propalado pela fina-flor liberal. Por sua vez, inerente à megalomania estatista, o grau de eficácia do expansionismo capitalista e do exercício do seu domínio (na produção, no controlo social, bem como na repressão) é indissociável do grau de avanço tecnológico. É um equívoco não pensar nesta inextricabilidade. Contudo, esta osmose, não justifica a concepção catastrofista de uma intrínseca malignidade de toda a tecnologia contemporânea. Catastrófica é a organização capitalista do poder, da economia e do saber.
“Como é possível que a maioria obedeça a um só, não só obedeça mas que o sirva, e não apenas que o sirva, mas que queira servi-lo?”. Embora contextualizada pelo absolutismo monárquico da época, a crítica do Discurso da Servidão Voluntária, sintetizada nestes termos por Pierre Clastres, comporta um sentido transhistórico. Se a inquietação intemporal de La Boétie conserva hoje a sua potência é porque ela remete para a lógica do seu contrário: enquanto houver um punhado de seres abismados de que a servidão democrática voluntária é um denominador comum das sociedades é porque alguém imagina a sua contrapartida: uma democracia sem servidão voluntária.
Além da crítica à promessa capitalista e às estruturas separadas de poder, é indispensável o regresso de uma crítica à promessa liberal. Não ficar submetido à lógica liberal do poder e da sua dialéctica é abandonar a noção de que a política é a arte de governar e do domínio. Não são leis naturais ou divinas, nem “as inextricáveis leis do materialismo dialéctico” marxista, nem mesmo como objecta Castoriadis “a falsa asserção de que os homens foram criados iguais” que podem justificar a igualdade política porque “a igualdade é uma criação dos homens ao agirem politicamente” 25. Dos homens e das mulheres e de todos os seres que entrem na luta pela liberdade política, dispostos a agirem politicamente na história, pensando, construindo e preservando o comum numa base horizontal e igualitária de decidir.
Ilustraçōes de Käthe Kollwitz
Notas:
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