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Lendo: As prisōes são um vírus

As prisōes são um vírus

As prisōes são um vírus


Da vaga de mortes na população idosa, o alarme soa agora sobre as prisões portuguesas. Se o Covid-19 entrar em força nas cadeias será a catástrofe. Como noutros países, como França ou Espanha, o Estado Português terá, nestes dias, de avançar com medidas imediatas para a libertação de presos/as. A população prisional já avisou que não vai esperar mais tempo e várias declarações gravadas por presos a partir dos estabelecimentos portugueses têm vindo a apelar a que, perante a falta de respostas, as prisões ardam e os motins a que se tem assistido na Europa e no mundo cheguem a Portugal.

Protestos nas prisões da Europa (Itália, Espanha, França entre outros países).

Face ao apelo diário para que façamos escolhas e tenhamos comportamentos que salvaguardem a vida humana, ecoa ainda na sociedade portuguesa a indiferença em relação a quem não tem como fazer essa escolha. Confinados a espaços sobrelotados onde a profusão de doenças infectocontagiosas é uma marca, resta aos presos/as a única forma de comportamento digno da defesa da vida humana: o protesto contra as prisões e o sistema prisional.

Testemunho de homens presos no EP de Coimbra de 29 de Março.

Testemunho de homens presos no EP de Custóias de 28 de Março.

Há atualmente em Portugal cerca de 13000 pessoas sob custódia, às quais se somam alguns milhares de profissionais e dezenas de crianças em 49 estabelecimentos prisionais (EP’s). As prisões, na sua máxima lotação ou para lá dela, não garantem o isolamento das pessoas presas, num meio onde a precaridade dos cuidados de saúde tem sido amplamente denunciada. Entre a população prisional há um número significativo de pessoas idosas e de presos declaradamente em situação de risco, doentes crónicos (oncológicos, diabéticos, cardíacos etc.) e infectocontagiosos (HIV, hepatites B e C), mulheres grávidas e crianças, já para não mencionar o quadro de problemas de saúde mental que irão aumentar com a atual situação.

Desde o dia 16 de março, estão suspensas as visitas em todos os EP’s. Durante algum tempo, estiveram também suspensas as entregas de sacos de comida e de roupa pelos familiares, mas, após as orientações da Direção Geral da Saúde (DGS), estas voltaram a ser permitidas. A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) procedeu, somente no dia 17, à transferência de 40 inimputáveis de Santa Cruz do Bispo para o Hospital Magalhães Lemos. A ala psiquiátrica dessa prisão encontrava-se sobrelotada e com condições desumanas, conforme era já manifesto na queixa da Ordem dos Enfermeiros em julho de 2019.

Nesse mesmo dia 17 de março, a Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) enviou uma carta aberta, publicada nas redes sociais, à Presidência da República e aos grupos parlamentares, a alertar para a situação e a pedir «a libertação a título provisório e ainda que sob obrigação de permanência na habitação, dos reclusos que se encontrem em comprimento de penas de duração inferior a dois anos de prisão (crimes de pequena gravidade e natureza não violenta) bem como daqueles em que o tempo remanescente de pena seja inferior a dois anos (sempre que razões de segurança a tal não se oponham) (…) alguns reclusos acamados (alguns em estado muito grave), por falta de espaço no Hospital Prisional, alguns idosos absolutamente inofensivos e mulheres grávidas ou com filhos pequenos sem terem a quem os entregar.»

Durante as últimas semanas de março, foi lançada uma petição pública, por familiares de presos, intitulada «Reclusos não são apenas um número! São pessoas e correm perigo devido ao Covid-19!», que apela à situação em que se encontram as pessoas presas e as suas famílias, pedindo igualmente prisão domiciliária para todas. Uma outra petição pública – «Covid-19 – Prisões – Redução do número de reclusos nas prisões» – foi criada por pessoas presas que, fazendo uso dos mecanismos já previstos na Constituição da República Portuguesa (nos artigos 134º alínea F e 161 alínea F), apela à redução do número de pessoas nas prisões através da libertação imediata; antecipação de liberdade condicional ou cumprimento de penas no domicílio para maiores de 65 anos, pessoas de grupos de risco, mulheres mães com crianças na prisão; a libertação de todas as pessoas que já tenham cumprido mais de metade da pena; o cumprimento da pena em regime de prisão domiciliária para todos/as que estejam a 1 ano ou menos de completar a metade da sua pena (conforme previsto na lei) e o perdão genérico de 2 meses por cada ano de pena para todos/as as/os reclusos/as para que as medidas possam ser mais abrangentes.

Desde o início de março, vários momentos de tensão e de protestos têm decorrido nas cadeias portuguesas, sem ser possível obter, até à data, uma relação confirmada e exaustiva dos episódios de revolta que se vivem. A 8 e 9 de março, os presos recusaram o almoço nos EP’s da Polícia Judiciaria do Porto e de Braga, tendo no primeiro caso sido reprimidos e encerrados nas celas. Há relatos por confirmar de presos que pegaram fogo à cela, como no EP de Leiria. Há vozes individuais e em grupo que gritam de dentro das prisões, algumas delas difundidas em pequenos vídeos que revelam o barril de pólvora que lá se vive. Os familiares desesperam. Protestam em breves concentrações à porta das prisões, como poderá ter ocorrido a 15 de março em Paços de Ferreira e noutros locais, e manifestam, como nunca, a importância de uma associação de famílias dos reclusos.

Testemunho de familiar de um homem preso no EP de Custóias de 30 de Março.

Impasse e indiferença

O governo e o Ministério da Justiça, reunido por estes dias para avaliar a tomada de medidas direcionadas à população reclusa, no final da última semana de março apenas suspendera as férias dos guardas prisionais, tendo o número de guardas por turno sido reduzido para metade. O Plano de Contingência da DGRSP ainda não veio a público, sendo apenas públicas e com data de 23 de março as orientações da DGS sobre os EP’s e centros educativos (prisões de menores). Estas parecem estabelecer o que seria um plano de contingência para estes espaços, se efetivamente tal fosse possível. Orientações desatualizadas no calendário, considerando que a pandemia já está ativa no país desde o início do mês, pelo que, se realmente fosse possível aplicá-las, já deveriam estar ativadas.

Entre as várias orientações que visam sobretudo a articulação entre ambas as entidades, a DGRSP e a DGS, e as medidas de prevenção e combate do Covid-19 no interior da prisão, destacam-se a distribuição de informação sobre medidas de higiene para a população prisional; disponibilização de pontos de água e sabão nas zonas prisionais; definição de áreas de isolamento para pessoas com sintomas ou com suspeitas de sintomas; comunicação imediata às autoridades de saúde de casos suspeitos ou confirmados; orientações para o tratamento das pessoas presas doentes com Covid-19 dentro dos EP’s; e indicações sobre os sacos (roupa e comida não perecível) que as pessoas presas podem receber de fora, que só deverão ser entregues 48-72 horas após a receção. Acresce ainda serem suspensas as transferências de pessoas presas entre EP’s, exceto por motivos de saúde ou de segurança.

Este elenco de medidas da DGS denuncia um evidente desfasamento da realidade e das efetivas condições sanitárias, dos recursos médicos e de saúde, bem como dos problemas que afetam as populações prisionais. O que é certo é que às autoridades chegou a recomendação que a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos fez, para a libertação de pessoas vulneráveis de espaços de detenção, pelo que em cima da mesa estarão precisamente medidas para o desencarceramento das pessoas doentes crónicas, idosas, doentes de risco e mulheres mães, mulheres grávidas e crianças, e seguindo o que já tem sido aplicado noutros países, na definição de que tipologias de presos e condenações associadas serão abrangidos pela libertação que se impõe.

No tempo que escasseia e nas semanas em que decorre esse impasse, sindicatos dos guardas continuam a afirmar que não há material de proteção suficiente para os profissionais na prisão, ainda que a DGRSP tenha recomendado que não o usassem para não causar pânico… Entretanto, a 24 de março, a DGRSP ordena o isolamento de pessoas presas com mais de 65 anos (750 homens e cerca de 50 mulheres), de acordo com as condições dos edifícios prisionais, recomendando o uso das alas de segurança e das celas de castigo, zonas que já estão a ser usadas para presos/as que estavam em regime aberto, para as novas admissões, ou presos/as que regressaram de saídas precárias e estão em quarentena. É, como tal, difícil haver espaço nestas áreas para o isolamento de pessoas idosas.

A 29 de março, um dos comentários na «Proteção ao recluso», perfil de Facebook, lia-se «diretamente do estabelecimento prisional de Izeda! comunico que não existem mais de 20 celas individuais. (…). Numa população de 330 reclusos 310 estão confinados em camaratas entre 6 a 8 pessoas num espaço de 2m por 3m, partilham a mesma sanita e o mesmo chuveiro. Refiro-me a uns 150 reclusos. O restante esta numa outra ala onde o chuveiro e comunitário (…) o Dr. Rómulo [Diretor-geral da DGRSP] veio comunicar a população portuguesa que 35 mil euros foram já investidos e distribuídos. Fake news!! camas em Custóias e Caxias preparadas para a contenção. Somos 13mil reclusos de que servem 40 ou 50 camas?? (…) Este Estabelecimento Prisional é uma bomba relógio…». Três dias antes, um outro comentário informava que no EP do Porto «foram separados reclusos mais idosos com idades a partir dos 60 anos e também reclusos com problemas pulmonares e respiratórios, agora se formos a ver as coisas por outras perspectivas os idosos e as pessoas com problemas pulmonares e respiratórios são os mais prováveis a ser contagiados e a morrer com este vírus. Esses mesmo foram transferidos para um pavilhão onde estão alojados até 20 pessoas por camarata, onde basta que 1 fique infectado os restantes ficaram infectados também, e aí sim, irá começar o imaginável, esses mesmo todos os dias têm contacto com os restantes reclusos dos outros pavilhões no refeitório do estabelecimento prisional. Alguma medida tem que ser tomada, e não é isolar os reclusos uns dos outros que vai servir de alguma coisa, porque quando o vírus entrar dentro dos estabelecimentos prisionais ficarão todos infectados e aí será o verdadeiro caos».

Perante a situação, o Ministério da Administração Interna e as Forças Armadas apoiam a DGRSP com a montagem de tendas da Proteção Civil (260 camas de campanha) em cinco estabelecimentos prisionais: o Hospital prisão de Caxias, Linhó, Coimbra, Custóias e Paços de Ferreira, para isolar, testar e tratar presos doentes ou com suspeitas de infeção de Covid-19.

Em finais de março, no dia 28, foram confirmados oficialmente 3 casos de Covid-19 nas prisões: uma mulher recém detida, uma auxiliar médica do Hospital de Caxias e um guarda prisional. Não sem deixarem de ser acompanhadas, algumas das notícias referentes a estes casos, de um teor xenófobo e discriminatório, como aquela que reportava o caso de uma mulher de nacionalidade estrangeira detida por ser suspeita de crime, culpando-a de colocar 16 elementos da GNR e mais alguns guardas de quarentena.

Finalmente, o Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Rómulo Mateus, em reportagem da SIC no Jornal da Noite, defendeu a libertação de presos em regime de precária (cerca de 1500) e a prisão domiciliária para pessoas idosas, enquanto medidas profiláticas e de proteção de saúde de guardas, de outros funcionários e da comunidade envolvente. Na mesma reportagem, o ex-ministro da justiça, Vera Jardim, e o Bastonário dos Advogados, Luís Menezes Leitão, apoiam estas medidas de desencarceramento, mas com restrições e sem se sobreporem à lei penal. No dia seguinte, 29 de março, a Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, em entrevista à SIC Notícias, confirmou que está a avaliar a possibilidade de libertar presos/as vulneráveis das prisões, pessoas idosas ou com comorbidade, afirmando que estas já estão isoladas nos estabelecimentos prisionais e que está a ser distribuído material de proteção pelos diversos estabelecimentos prisionais. É de referir que uma empresa com produção no EP de Santa Cruz do Bispo feminino, segundo declarações da Ministra nesse mesmo dia, converteu a sua produção para material de proteção, como máscaras, mangas descartáveis, batas e fatos, para ser distribuído nas prisões e nos diversos serviços da DGRSP. São mulheres presas nesta prisão que estão a trabalhar há vários dias na produção de material de proteção, no entanto, não sabemos em que condições, já que os habituais “salários” nas prisões são irrisórios (2-3€ por dia). O que, contudo, seguramente alivia a sua sobrevivência em meio prisional, permitindo-lhes obter dinheiro, por exemplo, para as chamadas telefónicas, produtos alimentares e outros produtos. Ainda sobre a questão do trabalho prisional, familiares denunciam que em algumas prisões continuam pessoas presas a trabalhar em alguns serviços, contudo, sem proteção e, em alguns casos, em contacto com pessoas do exterior.

O discurso público que impera apresenta estas medidas sobretudo desde a perspetiva da proteção de guardas, de outros profissionais e da comunidade em geral, sob o perigo de as prisões se transformarem em focos de infeção. O tratamento da informação não aborda a questão desde a perspetiva dos direitos, da saúde e da dignidade das pessoas presas. Rapidamente a discussão pretende focar-se, por parte da Associação Sindical de Juízes, nas alterações legislativas necessárias para que se possa proceder ao desencarceramento. O que contrasta com a discussão, sempre omitida, relativamente ao número enorme de processos criminais errados, às pessoas que já cumpriram mais de metade da pena, às pessoas com graves problemas de saúde física e mental, mulheres mães, crianças e mulheres grávidas, entre outras, que dentro das regras do jogo da justiça do Estado nem deveriam estar presas. Sobre esta questão, o presidente desta associação, o juiz Manuel Soares, vem afirmar que alguns presos, que caracteriza como indisciplinados, não deveriam ser libertos, mesmo que integrem as condições que estão a ser propostas pelo diretor da DGRSP e pela Ministra da Justiça, por considerar que possam ser perigosos e reincidentes. O que revela mais uma vez o duro braço penal em Portugal, reproduzido por juízes que aplicam excessivamente penas de prisão, situação já sinalizada pelo Conselho da Europa, e um contexto prisional que perpetua o encarceramento, ao castigar quem não se adapta ao sistema carcerário e punitivo com o prolongamento das penas, a não concessão do regime de precárias, de liberdade condicional e de prisão domiciliária. Já o procurador da República Rui Cardoso segue a mesma linha, defendendo que agressores sexuais e pessoas em perigo de fuga (cidadãos de nacionalidade estrangeira) também não devem ser colocados em liberdade, fazendo passar duas ideias: a discriminação de nacionalidade e o populismo irresponsável, que sugere que as prisões estão cheias de violadores e pedófilos.

O alerta sobre o que se passa nas prisões é, no quadro geral da pandemia do coronavírus, inexplicavelmente tardio. E isso não é de “agora”. As condições de vida nas prisões são por regra silenciadas e deliberadamente ignoradas pela sociedade portuguesa, que mais rapidamente apela ao endurecimento musculado do castigo, do que avalia os limites e a prática da justiça punitiva relativamente aos direitos humanos.

As prisões nunca foram eficazes na suposta função ressocializadora nem tão pouco são resposta para a construção de sistemas de justiça social efetivos. A realidade quotidiana habitual nas prisões em Portugal sempre foi de risco. Portanto, mais do que tornar as nossas sociedades mais justas e sãs, as prisões são uma epidemia com cerca de 200 anos e que, ao longo do século XX, principalmente a partir da década 80, atingiu proporções pandémicas, quando se verificou o crescimento exponencial das populações prisionais no mundo.

Portugal é dos países da Europa com maiores taxas de encarceramento e de mortes nas prisões. Estas mortes são silenciadas, muitas delas resultantes de suicídios ou de negligência, por parte das instituições, no tratamento médico ou na indiferença aos apelos de presos/as fechados/as nas celas, e algumas ocorrem em situações mais sinistras, obscurecidas pelo segredo institucional e do Estado.

É importante perceber o que são realmente as prisões para que se entenda de uma vez por todas que não funcionam e que, mesmo com melhores condições, a privação da liberdade não é medida eficaz nem para a responsabilização de danos cometidos nem para o ressarcimento das vítimas. Quando olhamos para os dados referentes a estes quase dois séculos de existência da prisão, percebemos que quem engrossa as prisões são sempre as mesmas pessoas. As taxas de reincidência nos diversos sistemas prisionais pelo mundo são de 75% ou mais. Em Portugal, foi possível apurar, pelo Observatório Europeu das Prisões, que cerca de 80% das pessoas presas já foram institucionalizadas, algumas desde crianças, em instituições de acolhimento de crianças, casas-abrigo para vítimas de violência doméstica, casas de inserção da Segurança Social, hospitais psiquiátricos; e ainda que cerca de metade das pessoas presas são filhas de presos. Este contingente de pessoas serve os interesses do Estado na manutenção do status quo, da corrupção das elites, da desigualdade, da exploração laboral e da violência da justiça racista, patriarcal e capitalista, instigando sentimentos de vingança entre as populações que, ao invés de os direcionarem para o Estado e as elites, os direcionam para as pessoas mais vulnerabilizadas e violentadas pelas sociedades.

A realidade que hoje vivemos, ao romper com a normalidade do quotidiano, deixa claro que chegou o momento de: ou assumimos uma humanidade solidária com todos/as, onde não faltem os/as presos/as, ou assumimos que queremos que uns morram e outros vivam. Esta última opção é a escolha definitiva do confinamento social: ao transpormos voluntariamente as prisões para os mais diversos aspetos do nosso quotidiano. Securitário e militarizado. Mas podemos ter outra escolha. A primeira opção, a da solidariedade, é a escolha do fim das prisões e de um novo modo de vida que precisamos de construir no dia em que o coronavírus se diluir e acordemos lado a lado com o/a preso/a que voltou a casa.

Texto de Vera Silva [vinesima@gmail.com] e Filipe Nunes [filipenunes@jornalmapa.pt]


Written by

Filipe Nunes

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