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Lendo: Queremos trabalho, não queremos dinheiro? Cultura, negócio e trabalho gratuito.

Queremos trabalho, não queremos dinheiro? Cultura, negócio e trabalho gratuito.

Queremos trabalho, não queremos dinheiro? Cultura, negócio e trabalho gratuito.


O voluntariado tornou-se num esquema que visa garantir trabalho a custo nenhum. A partir de um anúncio realizado pelo festival de cinema DocLisboa ’17, ZNM analisa os meandros desta estratégia e como esta se insere num quadro mais lato de governo neoliberal da vida.

À primeira vista a proposta parece interessante: «O DocLisboa’17 procura pessoas responsáveis e motivadas». Porém, cedo as expectativas acabam por ser frustradas, uma vez que a proposta é «para integrar a sua equipa de voluntários». Esta, segundo o formulário de inscrição a que se pode aceder a partir do website do DocLisboa, poderá dinamizar várias responsabilidades inerentes à organização do festival de cinema documental, como o Guest Office e a Welcome Desk, a produção, a comunicação e imprensa, a gestão de salas, as bilheteiras, o catering e o bar ou ainda o acompanhamento de convidados e júris. O tipo de recrutamento pouco destoa da norma, questionando-se o candidato acerca das suas habilitações literárias, do conhecimento de idiomas e de experiência prévia de voluntariado no DocLisboa, e requisitando-se o envio do CV.

No conjunto de argumentos em prol do recurso a trabalho voluntário, a especificidade do setor em questão é, talvez, a que detém um maior peso. As atividades na área da cultura tendem assim a ser retratadas menos como um trabalho, sujeito a devida remuneração, e mais como a expressão de um desejo de participação em algo superior, envolto numa aura específica, cujo teor, aparentemente, é estranho a uma lógica comercial. A possibilidade de se tratar de obras com um elevado teor político, como acontece no caso do DocLisboa, contribui para a legitimação desta estratégia. Os voluntários, segundo a retórica utilizada, acabam por fazer parte de um projeto comum, envolto na reflexão e denúncia do estado do mundo, e, neste sentido, em nada distinto de um ativismo político. Face ao parco investimento na cultura, inferior a 1% do orçamento de estado, o trabalho prestado de forma gratuita chega mesmo a ser classificado como um ato de resistência.

Ao mesmo tempo, destaca-se a própria experiência de conhecimento proporcionada: os filmes que se vêem, as pessoas que se conhecem, as conversas que se têm, até à alteração das posições ou dos regimes estéticos. Estes fatores são, sem dúvida, importantes, traduzindo uma porta de entrada em círculos mais restritos. No entanto, todos eles são inteiramente compatíveis com o pagamento de um salário, como se poderá comprovar pela existência de pessoas que, trabalhando nestes festivais, são sujeitas a remuneração. Mesmo que se trate de uma organização sem fins lucrativos, estes salários são garantidos por trabalho gratuito.

Do voluntário ao estagiário

O fenómeno, todavia, não constitui uma particularidade do DocLisboa. Outros festivais de cinema e eventos culturais adotam o mesmo subterfúgio, colhendo os benefícios produzidos por uma força de trabalho não remunerada. Nalguns casos, como o do Festival Silêncio, o Motel Lx ou o Indie Lisboa, o recrutamento e gestão do trabalho voluntário são realizados por uma entidade terceira, a Marginal Voluntariado. Esta associação cultural, de acordo com a informação disponibilizada na sua página de facebook, é responsável pela «gestão de projetos de voluntariado em eventos», como os festivais Rock In Rio e Paredes de Coura, há mais de uma década. No passado, conforme denunciado pela plataforma online Ganhem Vergonha, a Marginal Voluntariado chegou a recrutar cerca de 200 voluntários no âmbito da organização da regata Volvo Ocean Race. As funções então desempenhadas incluíram animações, credenciação, gabinete de imprensa ou a cobertura do evento em vídeo e fotografia, tendo sido recompensadas com a oferta de uma t-shirt, uma refeição, alternativas de transporte gratuito, um certificado de participação e a «possibilidade de se divertir imenso». A promoção ou patrocínio por parte de conglomerados transnacionais, como a Vodafone ou a Volvo, não deve por isso ser encarada como paradoxal, dadas a experiência e autorrealização derivadas da participação num projeto cultural descrito como coletivo. Afinal, seria um tanto ou quanto arrogante assumir que só o cinema documental é capaz de produzir alterações no nosso regime estético!

Com uma particularidade distinta, fruto de se tratar de um processo de formação, a proliferação de estágios encontra-se associada a trabalhos ditos qualificados, com uma elevada componente expressiva e até deontológica. O contributo das universidades para a legitimação deste tipo de trabalho é sintomático da incorporação de uma lógica comercial no próprio domínio do ensino. A universidade passou a incorporar como uma das suas principais funções a formação e fornecimento de uma força de trabalho gratuita para o mercado. Além da integração do estágio nos planos de estudo, esta prioridade reflete-se na criação de gabinetes de inserção profissional, responsáveis pela assinatura de protocolos com entidades empregadoras; ou na organização de eventos, como feiras de emprego, em que se concede gratuitamente a empresas um espaço de divulgação e promoção. A própria docência passa a ser organizada com base neste princípio, abrindo-se a possibilidade (nalguns casos, exercendo-se pressão) da sua prestação não remunerada por parte de investigadores e bolseiros. À semelhança do acontece nas empresas e associações previamente analisadas, o estratagema é apresentado como sendo resultado da própria iniciativa de quem leciona, constituindo não só a expressão de uma liberdade como um meio de enriquecimento do CV. A esperança é de um dia se vir a ser selecionado num concurso público que, muito provavelmente, nunca se verificará, uma vez que a docência já se encontra assegurada por um exército de reserva em funções.

O regime dos estágios permite que as empresas, por um lado, desenvolvam processos de recrutamento e seleção mais sofisticados, baseados na avaliação da performance do trabalhador (e não apenas de uma previsão do que esta possa vir a ser); e, por outro, possam auferir de uma mão-de-obra disposta a trabalhar gratuitamente. Esta possibilidade tem contribuído para que o estágio se tenha tornado mais num dispositivo contratual e laboral do que educativo e formativo. E a oportunidade, como é óbvio, tem sido devidamente aproveitada. No passado mês de junho, foi divulgado um documento interno da cadeia de supermercados Jerónimo Martins a recrutar familiares de trabalhadores para uma «Academia de Retalho», um programa destinado a pessoas entre os 18 e os 25 anos que, entre outros requisitos, compreendia o cumprimento de dez horas de trabalho diárias, com folgas de dois dias por semana. Embora não fosse gratuito, o valor da sua «bolsa» – 500 euros – era inferior ao do salário mínimo nacional.

Neoliberalismo, capital humano e precariedade

A definição do trabalho como uma experiência, prestação ou atividade, e não como algo que produz mais-valia, beneficiando outrem, insere-se num quadro conceptual fortemente marcado pelo neoliberalismo. Este, segundo o filósofo Michel Foucault, corresponde a uma forma de governo da sociedade e dos seus componentes (1). Nesta senda, o que faz com que uma associação de cariz cultural, a título de exemplo, possa ser classificada como neoliberal não é tanto o tipo de obras que promove – podendo estas até ser, em termos doutrinários, anticapitalistas – mas o teor dos dispositivos mobilizados na gestão da sua organização.

Crítico da intervenção direta do Estado sobre o mercado, o neoliberalismo recusa, no entanto, uma visão naturalista deste último. As relações económico-produtivas não são, deste ponto de vista, encaradas como fruto de uma ordem natural, mas sim de uma construção social e política, segundo o mercado e para o mercado, cujo sucesso depende da garantia de «condições que terão de ser cuidadosa e artificialmente organizadas» (2). Ao invés de considerar a dimensão abstrata do trabalho, o neoliberalismo vai realçar o comportamento inerente à sua realização, identificando no trabalhador não um objeto, mas um sujeito ativo. A noção de «capital humano», avançada por Theodore Schultz e Gary Becker, remete para os componentes desta atividade, ou seja, as aptidões e competências mobilizadas na produção e que, por isso, obtêm um determinado valor. No atual quadro económico, a atribuição deste valor é realizada de acordo com os critérios que o mercado considerar adequados. Toda a expressão de vida pode ser assim incluída no rol de objetos definidores de um capital humano (até a genética, como refere Foucault) e avaliada como um bom ou mau investimento. Noutras palavras, o sujeito é ativo, mas age em conformidade com uma grelha de inteligibilidade que, em última análise, decidirá a sua condição social.

O trabalho voluntário insere-se nesta lógica, surgindo enquanto significante de um conjunto de atitudes e posturas perante a vida, frequentemente solicitadas em ofertas de emprego e apresentadas no CV: proatividade, esforço, espírito de sacrifício, iniciativa. Poderá argumentar-se, como mencionado, que traduz um gosto ou mesmo uma crença na ocupação exercida. Este sentimento, aliás, pode ele próprio tornar-se num fator a considerar na avaliação de um determinado «capital humano». Todavia, a compreensão das suas implicações deverá realizar-se tendo em conta o quadro de relações sociais no seio do qual se desenvolve.

Ao impor uma relação de incerteza relativa à satisfação das necessidades básicas, a precariedade garante as bases de um governo dos trabalhadores. No final, são as entidades empregadoras que decidem qual o valor do capital humano. Como tal, e perante estas regras do jogo, não é certo que o trabalho voluntário seja mesmo voluntário. Na realidade, e dependendo de uma série de condições (classe social, género e cor), ele poderá obrigar a esforços completamente diferentes. Em todo o caso, e uma vez que o mínimo sinal de insatisfação poderá implicar a diminuição do seu valor, torna-se necessário manter essa ideia, mesmo que à custa de uma atuação permanente: demonstrar simpatia no Guest Office e na Welcome Desk, rasgar o bilhete com delicadeza; servir a bebida com um sorriso na cara, dar os parabéns ao realizador pelo excelente documentário (mesmo que se tenha detestado) e, como é óbvio, agradecer a organização pela oportunidade, alimentando a esperança de um dia poder vir-se a ser pago.

ZNM

(1) Foucault, Michel (2010), O Nascimento da Biopolítica, Lisboa: Edições 70.
(2) Idem, p. 158.

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Jornal Mapa

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