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Lendo: Felizmente continua a haver luar (Setembro 2017)

Felizmente continua a haver luar (Setembro 2017)

Felizmente continua a haver luar (Setembro 2017)


Três horas depois de termos saído da estação da Casa da Música no Porto chegámos a Santiago de Compostela. Não sem dificuldade. Há greve geral dos transportes rodoviários na Galiza contra o aumento do tempo de trabalho efectivo dos condutores e uma greve no Estado espanhol e na Galiza em particular não é como uma grevezinha à portuguesa, com meia dúzia de sindicalistas com ar triste perdidos num mar de resignação e de passividade. Os piquetes de greve são massivos e impedem a passagem a qualquer autocarro, e mesmo os chamados «serviços mínimos» não se podem efectuar. Em Santiago, o pessoal dos piquetes tem um ar zangado. Mas a matrícula portuguesa do autocarro provoca alguma hesitação e condescendência. Após uma conversa com o chofer lusitano, que manifesta abertamente a sua solidariedade, acabam por nos deixar entrar na rodoviária, que está às moscas.

O canónico Pazo de Bendana encontra-se na Praza do Toural, no centro da bela cidade velha e no seu seio está, desde 1995, o museu Eugenio Granell com uma extraordinária colecção de objectos de culturas índias da América central, misturados com quadros de Pablo Picasso, Victor Brauner, Juan Miro, André Masson, Wilfred Lam, Toyen, Man Ray e outros personagens do mesmo mundo (1).

As colecções foram oferecidas à cidade pelo pintor surrealista Eugenio Granell (1912-2001) juntamente com os seus próprios quadros e as colagens da sua mulher Amparo Segarra (1915-2007). O viajante de passagem, à procura de um abrigo protector contra o supermercado das mercadorias sagradas e os rebanhos de peregrinos que obedecem religiosamente às instruções da aplicação gps chemindecompostelle.com, não encontrará referência deste lugar raro nos habituais guias turísticos. Veja-se, por exemplo, o guia que tem o nome de uma conhecida multinacional dos pneus, que alerta o turista contra as obras expostas no granítico e frio museu de Arte contemporânea, concebido pelo Álvaro Siza, que, diga-se de passagem, apresenta uma colecção sem interesse. «O contraste entre o ambiente religioso que domina a cidade e o lado subversivo, mesmo incomodativo, de algumas obras, espanta.» (2). Percebe-se logo por que razão o museu Granell nem sequer é citado. Vade retro, Satanás!

Tínhamos ouvido falar de Eugenio Fernández Granell e de Amparo Segarra anos antes da abertura deste lugar de perdição. No nosso pequeno meio do pós-Maio 68, havia um querido amigo que, apesar da sua atitude reservada, nos marcou profundamente. Francisco Gómez, Paco para quem o conhecia, referia-se bastante a Granell e a Segarra, amigos que ele visitava em Madrid e em Santiago após a «transição democrática» do regime franquista em 1975. Transição negociada com os chefes socialistas e neo-estalinistas, ávidos de ganhar um lugar ao sol na Espanha modernizada pelo capitalismo do pós-guerra (3). Paco e Granell tinham percorrido um caminho político comum e tinham mantido, apesar de vidas afastadas geograficamente e socialmente, uma forte amizade. Faziam parte dessas pessoas que transportam a grande História na mala da sua pequena história pessoal. Na verdade os guias turísticos protegem os peregrinos do museu Granell também porque o lugar, os fundadores e os seus amigos, exalam um perfume de revolução. O das correntes mais radicais e universalistas da revolução espanhola de 1936 e das suas consequências trágicas. Como o provam os arquivos e a biblioteca do museu, que acolhem uma quantidade impressionante de livros, documentos e testemunhos sobre os movimentos revolucionários do século XX e o movimento surrealista internacional.

Granell nasceu na Corunha em 1912 numa família abastada; o pai era comerciante. Viveu e estudou em seguida em Santiago. Aos 14 anos, garoto esperto e revoltado contra as injustiças sociais, editava, com o seu irmão Mario e outros miúdos, a revista SIR (Sociedade Infantil Revolucionaria). Estava traçada a rota da vida.

Em 1928, Granell partiu para Madrid para estudar violino no conservatório superior de música e começou a participar na vida radical da capital. Na altura leu uma autobiografia, «de um senhor que não conhecia», Leão Trotski, e, numa reunião clandestina de adeptos das ideias deste mesmo senhor ouviu pela primeira vez falar das ideias surrealistas. Quando a insurreição dos mineiros das Astúrias, em Outubro 1934, foi brutalmente reprimida, Granell estava a acabar o seu serviço militar em Gijon e recusou a sua integração num pelotão que tinha por encargo fuzilar mineiros grevistas. Preso e julgado em Conselho de Guerra, foi condenado à morte. Na noite anterior à execução, conseguiu fugir da prisão com a ajuda de um oficial republicano amigo da sua família, da Corunha. Oficial que será, pouco tempo depois, executado pelas tropas franquistas. Como se pode imaginar, um tal acontecimento, de vida e de morte, vai marcar definitivamente a sua vida. Granell tinha-se tornado um membro do «clube dos sobreviventes da bestialidade totalitária».

 

Granell com Cesarinny, Madrid, 1989.

Uns anos antes, em 1928, Granell conhecera em Madrid Juan Andrade, uma figura central da oposição de esquerda comunista em Espanha, de quem ele se aproximou. Em 1935, após a experiência revolucionária asturiana, Granell, juntamente com um grande número dos seus camaradas da oposição, integrou o POUM (Partido Obrero de Unificacion Marxista), que acabava de ser criado e que foi uma das organizações originais e importantes na revolução espanhola (4). No começo da revolução, Granell participou em Madrid no ataque aos quartéis lado a lado com camaradas da CNT-FAI e, devido aos seus rudimentares conhecimentos militares, foi considerado como «um especialista militar do partido» e colocado na coluna de milicianos do POUM comandada por Hipólito e Mika Etchébehère (5) na frente de Madrid-Guadalajara. Meses depois tornou-se «comissário» numa brigada da CNT na frente de Aragão. Personalidade activa e decidida, Granell esteve na origem da rádio do POUM que emitia a partir de Madrid, participou na organização das milícias deste partido, interessou-se e escreveu sobre as questões militares na revolução e dirigiu várias publicações do partido, entre as quais El Combatente Rojo, que foi rapidamente proibida pela censura republicano-estalinista que começava a exercer-se. Em 1937, Granell encontrava-se em Barcelona e, através de Andrade, conheceu George Orwell e Benjamin Péret, com quem estabeleceu uma forte amizade e uma cumplicidade que iriam resistir à prova dos anos. Após a revolta de Maio 1937 em Barcelona e o assassinato pelos estalinistas do dirigente do POUM Andreu Nin, a perseguição republicano-estalinista contra os revolucionários do POUM e da CNT, obrigou Granell a viver algum tempo na clandestinidade em Barcelona. Durante esse período, escapou por um triz às rusgas dos comandos do PCE (que os revolucionários chamavam «os chekistas») feitas nos bairros e nas ruas procurando os participantes nas «jornadas de Maio». Membro da nova direcção do POUM na clandestinidade, Granell foi escondido por camaradas da CNT que conseguiram fazê-lo chegar até Valencia, onde incorporou uma unidade do exército republicano em que os anarquistas eram maioritários. Identificado pelos chefes militares afectos ao PCE, o seu regimento foi sistematicamente enviado para as posições mais perigosas da frente com a óbvia intenção de o liquidar. Transformado surrealistamente em «especialista» de explosivos, Granell e o seu regimento foram, no fim da guerra, encarregados de destruir as pontes dos Pirenéus catalães com o objectivo de proteger a retirada das tropas republicanas em debandada e dos milhares e milhares de refugiados que tentavam atingir a fronteira francesa. Tarefa que ele efectuou com seriedade e rigor, recusando, não obstante, destruir as pontes romanas!

Seguiu-se o percurso clássico dos refugiados no país dos «direitos do homem»: campos de concentração sob a fraterna «protecção» do glorioso exercito francês. Com outros camaradas, Granell fez várias tentativas de fuga e conseguiu finalmente viver escondido em Perpignan para chegar mais tarde a Paris. No fim de 1939, quando o exército nazi estava às portas de Paris, Granell e outros camaradas deixaram-se seduzir pela oferta do governo chileno que se dispôs a receber um número importante de refugiados espanhóis em França.

Começou então o segundo capítulo da aventura. Com a esperança de obter um visto de saída, Granell tinha-se inscrito numa organização de apoio a refugiados que era controlada pelo aparelho do PCE. Em 1940, o estalinista e poeta Pablo Neruda estava em Paris e filtrava justamente a atribuição dos vistos no consulado do Chile. Granell gostava sempre de lembrar um episódio sórdido da Desonra dos Poetas. Descobrindo o nome de Eugenio Granell, Neruda ter-se-ia excitado: «Este é trotskista, tirem-no já da lista!» (6). Finalmente os subversivos apagados das listas acabaram por encontrar lugar num barco que partia de Bordéus para a América Latina pejado de Judeus. No comboio para Bordéus, acaso objectivo indiscutível, Granell conheceu Amparo Segarra, que será a sua companheira para a vida.

Em 1940, os refugiados espanhóis desembarcaram em São Domingos onde o governo os instalou numa colónia agrícola situada sobre o rio Massacre, lugar que Granell considerou como idílico apesar do nome… Granell recomeçou a escrever, contos, teatro, lançou-se na pintura e expôs pela primeira vez. Músico virtuoso, deu aulas de música e entrou como primeiro violino na orquestra sinfónica nacional de São Domingos, na qual conheceu Yehudi Menuhin. Com Amparo, acolheram durante algum tempo o exilado Victor Serge e o seu filho Vlady, antes da sua partida para o México. André Breton visitou a ilha, e entre Betron e Granell iria nascer uma relação de amizade e de respeito mútuo.

 

Com Seixas Cruzeiro e Julieta García Ochoa.

Em 1947, Eugenio Granell, Amparo e a família fogem da ditadura de Trujillo e instalam-se na Guatemala onde rapidamente organizam um círculo de artistas revolucionários. A força e a magia da cultura índia vão seduzi-los e influenciar a obra, a escrita e a pintura de Granell assim como as colagens de Segarra. Granell dirá: «Não nos tornámos índios porque é muito difícil. Mas teríamos gostado de o ter conseguido.» A participação nos trabalhos do movimento surrealista internacional intensificou-se, e Granell expôs na Guatemala e em Paris. Continuou ao mesmo tempo a manter vivo o debate político, como prova a vasta correspondência e as discussões com os seus camaradas do POUM no exílio. Granell criticou frontalmente a concepção do «realismo socialista» defendida pelos artistas próximos do partido comunista, e em particular os miseráveis silêncios do poeta Rafael Alberti sobre os actos do estalinismo em Espanha. Ao mesmo tempo Granell discutia em vários textos a relação difícil entre a concepção trotskista da revolução, necessariamente autoritária, e a liberdade de criação à qual ele era sensível. Para ele, a afirmação desta liberdade implica uma atitude libertária, quanto mais não seja independente de toda a ortodoxia ou de todo o sistema fechado de pensamento (7).

Inevitavelmente, o afrontamento de Granell com os estalinistas continuou no exílio. Pouco tempo depois de se ter instalado na Guatemala, foi atacado por membros do partido comunista local e obrigado a esconder-se com a sua família. Em 1950, conseguiu deixar a Guatemala e foi viver para Porto Rico onde publicou a sua obra mais importante, Isla cofre mítico. Dois anos mais tarde, de viagem em Nova Iorque, Granell conheceu Marcel Duchamp e, em 1954, passou uma parte do ano em Paris onde participou na actividade do grupo surrealista. De facto, os anos cinquenta e sessenta foram o seu período de maior produção plástica, mantendo sempre fortes laços com Breton, Benjamin Péret e outros surrealistas. Foi também nestes anos que criou relações de amizade e de troca intelectual com Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas em Portugal. Acabou por se instalar em Nova Iorque em 1958, onde publicou La novela del Indio Tupinamba, um conto surrealista sobre a guerra civil espanhola. Após ter escrito uma tese sobre Picasso, Picasso’s Guernica: The End of Spanish Era, Granell foi professor de literatura espanhola no Brooklyn College da New York City University. Regressou pela primeira vez a Espanha em 1969 para finalmente se instalar entre Madrid e Santiago em 1985 (8).

Durante os últimos anos da sua vida, Granell foi adulado pelos profissionais da política da esquerda espanhola. Recebeu elogios e homenagens, o reconhecimento das instituições oficiais, foi prezado como um grande artista do país. O preço humano destas honras distribuídas por indivíduos medíocres ao serviço de um sistema injusto é bem conhecido. Por isso mesmo seria errado dar muita atenção às peripécias deste período. Indivíduo talentoso, Granell nunca foi um homem politicamente perdido mesmo se algumas das suas posições foram discutíveis. Nunca foi, para retomar a fórmula de exclusão do chefe bolchevique Trotski, «um homem caído ao mar». Foi um homem que se manteve essencialmente igual a si próprio, fiel aos seus compromissos e aos seus amigos da revolução. Um dia de 1988, Granell apresentou-se com outros camaradas na repartição de um notário a fim de registar o acto de criação da Fundação Andreu Nin. Interrogado sobre a sua actividade profissional, respondeu: «Anti-estalinista!». E, num texto autobiográfico de 1968 (Lo que sucedió), resumiu o fundo do compromisso da sua vida: «Não tenho nenhum amor pelo proletariado, é mesmo por isso que desejo o seu desaparecimento.»

Eugenio Granell morreu em Madrid no dia 24 de Outubro de 2001, Amparo Segarra no dia 4 de Agosto de 2007, também em Madrid.

Há pouco a acrescentar a este resumo da aventura granelliana. Fica-nos a liberdade de ler os seus livros e de ver os seus quadros. E de sonhar com ele com um outro mundo, humano, livre da exploração e da alienação, da brutalidade dos homens que agem em nome dos sistemas políticos e perdem assim a sua consciência. Já no outono da vida, numa conversa no exílio com o velho lutador e dirigente do POUM Joaquín Maurín, Granell perguntou-lhe como seria possível os estalinistas dormirem com boa consciência após todos os seus crimes. Ao que Maurín respondeu: «Pensava que eras mais inteligente Eugenio, eles dormem melhor que tu e eu, eles não têm consciência!»

Enfim, deve-se a Eugenio Granell e a Amparo Segarra que Santiago de Compostela não seja apenas uma cidade de parvoíce religiosa. É também a cidade deles, uma página deliciosa da revolução espanhola, na qual os sonhos ganharam toda a sua força subversiva.

 

  1. Fundación Eugenio Granell, Plaza del Toral s/n, Santiago de Compostela. www.fondacion-granell.org
  2. Espagne Atlantique, Guide Vert Michelin, Paris, 2017, p. 395.
  3. Sobre Francisco Gómez, de Raul Ruano Bellido e Charles Reeve, Le suspect de l’Hotel Falcon, L’insomniaque, Paris, 2011.
  4. Para uma introdução aos acontecimentos da revolução espanhola o magnífico texto de George Orwell, Homenagem à Catalunha, Antígona, 2007.
  5. Após a morte em combate de Hipólito, a coluna dos milicianos será a única comandada por uma mulher, a sua companheira Mika Etchebéhère, Ma guerre d’Espagne à moi, Actes Sud, Paris, 1998.
  6. Granell conta o episódio no seu texto de 1977, «Los silêncios de Alberti», Artículos políticos (1932-1990), Fondación Eugenio Granell, Santiago, 2009.
  7. É a tese que defende Eugenio Castro, «Eugenio Granell: consciencia política de la liberdad de creación», in Eugenio Granell, militante del POUM, Fondación Eugenio Granell, Santiago, 2007.
  8. Seria injusto não referir rapidamente a vizinhança de Andrés Garcia de la Riva (1911-???), conhecido como Andrés Colombo, um outro pintor da corrente surrealista. Igualmente originário da Galiza, militante do POUM e combatente das milícias, Colombo regressou clandestinamente a Espanha em 1947, onde foi preso. As suas obras estão expostas no museu de Lugo (Galiza).

 

NOTA: Agradecemos a Natalia Granell, filha de Eugenio Granell, a disponibilidade do auto-retrato e fotografias para a presente crónica.


Written by

Jorge Valadas

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