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Lendo: Veio o fogo e respondemos todos juntos

Veio o fogo e respondemos todos juntos

Veio o fogo e respondemos todos juntos


A auto-organização popular no combate aos incêndios sublinhou a importância de pensar os territórios florestais desde a sua base e ativando o espírito comunitário dos lugares.

Alimento doado é colocado em pontos de refúgio da vida selvagem no Vale da Aveleira na Serra da Lousã. Foto: Fernando Amaral

Uma vez mais os incêndios assolaram o país de forma devastadora. No interior florestal, coberto pelas monoculturas do eucalipto e do pinho, as populações que aí vivem, renovadas por gente citadina que procura um outro modo de vida mais próximo da terra, souberam dar uma resposta ímpar aos fogos que cercaram as suas aldeias e quintas. Fosse no Gerês, nas encostas da Lousã, Açor, Gardunha e Serra da Estrela, entre outras serranias, a auto-organização popular no combate às chamas comprovou a importância e o poder da solidariedade e do apoio mútuo. Sem que esteja em causa a abnegação dos bombeiros, em si mesma prova de uma entrega ao bem comum, ficou claro que o centralismo militarizado do estado falha redondamente. E viu-se que as pessoas sabem organizar-se por si mesmas: essa capacidade salvou vidas e permitiu vislumbrar um futuro em comunidade. O jornal MAPA foi ao encontro de algumas das histórias de resistência popular vividas no drama dos incêndios de Arganil e da Lousã, em agosto de 2025. Foram atingidos mais de 64 mil hectares ao longo de onze dias: 8 concelhos atingidos, 3% do território nacional. Estas são histórias que animam outras histórias possíveis de um renascimento rural das nossas serras e montanhas.

Arganil, uma vez mais o fogo
«Havia algo que estava muito presente nas pessoas que já cá estavam em 2017: não era um “se”, era um “quando”. Eu sabia que era um “quando”. Ia voltar a acontecer – mas não achei que fosse algo assim tão cedo». As palavras são de Inês, moradora em Benfeita há quatro anos, concelho de Arganil, e ligada à Folha Verde, um projeto educativo comunitário que ilustra o novo repovoamento rural que teima em inverter a longa marcha de abandono do interior. Uma vontade de aí viver que não se tem mostrado fácil, seja para estes novos rurais, seja para as populações locais que se mantêm pelas aldeias serranas. Em 2017, Inês já morava no lugar próximo de Monte Frio e viu os incêndios devastarem o território. Agora conta-nos como «o Monte Frio e a Relva Velha foram arrasados novamente. O cimo da montanha, com enorme densidade de eucaliptais, ardeu com grande intensidade e maior rapidez que nos outros sítios».

A perceção desta inevitabilidade levara vários habitantes desses lugares à conclusão de que não poderiam ficar de braços cruzados à espera do próximo incêndio. «Depois de 2017 começou a dizer-se: o que é que podíamos fazer? Nesse ano, o único camião de bombeiros que esteve aqui foi um que ficou cá preso, rodeado pelo incêndio, nas Luadas». Já então, na luta contra o fogo, estreitavam-se laços entre os serranos naturais e os estrangeiros recém-chegados. «Observámos o que a Junta de Freguesia fazia: tinha as suas pick-ups com depósitos de mil litros para fazer algo da função de bombeiros. Sem se aventurarem muito, com bom senso. Surgiu a ideia de fazer algo semelhante».

A Arbor, uma associação local criada no rescaldo dos incêndios com objetivos de regeneração e reflorestação com árvores autóctones, propôs-se igualmente estruturar equipas de voluntários em resposta aos fogos. Em agosto último, a organização voluntária destes habitantes foi posta à prova. Conforme relata Inês, as equipas, em colaboração estreita com a Junta, consolidaram um «apoio aos bombeiros, sem entrar em heroísmos. Conseguiu-se salvar imensas coisas, bastantes sítios. Conseguíamos chegar a sítios de difícil acesso, onde um camião dos bombeiros não podia chegar. O sistema de walkie-talkies usou- -se com sucesso (em 2017 as telecomunicações falharam). Houve pontos de vigia e muito cuidado e atenção sobre as zonas onde já se sabia que tinha acabado o fogo». Toda a gente disponível trabalhou arduamente para controlar as reignições e impedir que o fogo se espalhasse ainda mais. «Tínhamos uma rota grande e uma pequena, a circundar mais ou menos todas as aldeias, a ver se havia reacendimentos, lugares a fumegar e a precisar de intervenção»

A auto-organização dos habitantes, que de forma espontânea se fez notar em muitas localidades, veio aqui a beneficiar do trabalho prévio do Benfeita Fire Fund. À carrinha da Junta equipada para incêndios, a Arbor juntou outras três e preparou uma rede de recursos hídricos em todos os vales para melhorar a capacidade de resposta.

«Quando aconteceu o incêndio, era a festa da Benfeita, o que foi um pouco surreal. Havia por aqui montes de “lisboetas”, como lhes chamo. Tínhamos uma bomba no muro do rio para as pick-ups encherem constantemente os depósitos de mil litros, e havia sempre jovens de Lisboa lá a ajudar, com baldes e assim, para encher mais rápido». Ecoando uma situação repetida por todo o lado neste último verão, Inês refere como «muitas vezes os bombeiros não tinham ordem para atuar. Houve situações em que o fogo teria sido muito menor se eles tivessem agido mais cedo, quando ainda está no meio do mato e não está perto de uma aldeia. Não se pode apontar o dedo ao nível local, mas a como as coisas são organizadas mais acima na pirâmide do poder. Não quero apontar dedos, é preciso muita coragem, mas sem dúvida algo está mal na forma como estes meios são organizados».

Já ao nível local, a sensação é que «muitas pessoas se sentiram empoderadas: há algo que podemos fazer para nos defendermos. É possível. Acho que o facto de as pessoas estarem organizadas e terem desejo de combater o fogo, na medida dos possíveis, não fugirem e decidirem ficar, trouxe imenso respeito por parte dos locais». Recorda o diálogo com uma senhora que lhe dizia como «antigamente, quando havia um fogo, juntávamo-nos todos e, se havia água, era água, se não, era à enxada». «Foi isso que aconteceu, respondemos todos juntos. No meio das perdas, imensas perdas sobretudo da natureza, vegetal e animal, essa foi a parte bonita de ver acontecer».

Foto: Fernando Amaral

E, se o fogo se extinguiu, o sentimento local não se esfumou. Sucedem-se dias de trabalho comunitários, sempre guarnecidos de refeições comunitárias que juntam as pessoas. No mercado mensal na Benfeita, várias bandas tocaram gratuitamente para angariar fundos para os almoços comunitários. Nos mercados, ofereceram-se ferramentas, materiais de construção, pratos e lençóis, e angariou-se dinheiro para quem tinha perdido as suas coisas.

«No primeiro fim-de-semana fomos a 15 sítios, cada equipa tinha uma pick-up para levar destroços queimados até sítios onde os podíamos depositar, em articulação com a Junta». Tentando fazer crescer a floresta autóctone, diz Inês que «a terra nunca quer a sua pele vazia: “limpa”. Este conceito da limpeza é dúbio. Não quer estar nua, quer estar coberta», pelo que «é preciso jogar com esse comportamento espontâneo, deixar que ele exista, misturar outras coisas pelo meio, para com mais rapidez termos uma floresta a que possamos chamar floresta». Inês insurge-se contra a «definição oficial de floresta, do governo português, [onde] cabe perfeitamente uma monocultura: não é uma floresta! Vimos que nas zonas que arderam e que tinham várias espécies é possível intervir e parar, ou acalmar, e salvar coisas».

Codessais. mulheres que cuidam
Fernando Amaral perdeu a sua casa nas encostas de Vila Nova de Poiares nos incêndios de 2017. Desde então que, em videoativismo, recolhe testemunhos difundidos pelas redes de resistência a vários projetos extrativistas, das minas do Barroso às monoculturas florestais da região onde vive. Fernando, que diz ser preciso «deseucaliptizar» Portugal, é uma das vozes da Rede Emergência Florestal / Floresta do Futuro, que em setembro passado voltou a organizar diversos protestos em várias localidades do país como na Lousã, Arganil, Pedrógão Grande, Sertã e Oliveira do Hospital. É este o seu alerta: «nos últimos 35 anos, o equivalente a metade do território nacional já ardeu. O que está em causa é a própria viabilidade do país. Para podermos ter uma terra onde possamos viver sem medo, para termos um futuro, temos que organizar a mobilização popular que a política nunca quis nem aceita. Para podermos ter um futuro, temos de construí-lo com as nossas mãos».

Fernando gravou em três vozes femininas de Codessais, em Serpins, na serra da Lousã, o relato desse momento em que «o dia virou noite», a 15 de agosto. «Três horas de inferno» em que estas mulheres, com os poucos vizinhos, boa parte idosos, combateram as chamas com baldes e mangueiras perante a falta de resposta às insistentes chamadas de emergência. À rapidez do fogo e à ausência de meios, opôs-se a «persistência delas, o instinto de sobrevivência de porem as mãos à obra», apesar de um sentimento contraditório de reconhecerem a «inconsciência» de ficar, nestas situações. «Nós organizamo-nos sem saber como, fazendo uma equipa. Só pelo olhar já dizíamos “vais para ali, tu vais para lá”».

A sensação que ficou no lugar é que «fomos abandonados». Depois de 2017, a população apresentara várias soluções de prevenção, desde a limpeza dos caminhos à localização de um tanque de apoio. Nada foi feito. Agora deixam um apelo: «temos o outono, o inverno e a primavera; temos três estações do ano para preparar muita coisa, mas também para preparar os habitantes para serem os bombeiros da própria aldeia. Criar condições para que nós possamos ajudar os bombeiros. Quem passou por aquilo que nós passámos, que se juntem, que façam a sua voz ser ouvida pelos autarcas para que isto não volte a acontecer».

Codessais: «organizámo-nos sem saber como, fazendo uma equipa a tentar salvar-nos. Só pelo olhar já dizíamos “vais para ali, tu vais para lá”». Foto: Fernando Amaral

À espera da brama no Vale da Aveleira
Claúdio vive com a mulher e a filha de dez anos na aldeia de Cabanões, em Serpins, onde Fernando gravou o seu testemunho. No dia 15 de agosto, a aldeia viu-se totalmente rodeada pelas chamas e foi evacuada no início da manhã. Quando o fogo chegou, ficaram seis habitantes a combater sem nenhum meio de apoio. A aldeia, diz Cláudio, faz parte «daquele programa da Câmara Municipal de “Aldeia Segura” que visava aqui coordenar uma série de elementos que falharam redondamente, elementos esses que foram apontados por toda a população e que foram ignorados até ao dia 15». Desde logo, «os sobrantes florestais de limpezas que haviam sido feitas» resultaram em «montanhas de combustíveis deixados por toda a serra». A empresa subcontratada pela autarquia, «que era para vir tratar dos sobrantes florestais, uma empresa de lenhas, veio e começou a carregar as madeiras das pessoas todas e deixou os sobrantes!». Depois há o difícil acesso ao tanque instalado e o caricato caso dos 200 metros de mangueiras a que ficaram a faltar os adaptadores às bocas de incêndio, tal como constatado no próprio momento da instalação, feita com pompa e circunstância. Tudo isto foi apontado por Claúdio em reunião com o executivo camarário, um mês antes do incêndio. Quanto ao valor indicado de 36 mil euros adjudicados para Cabanões através da “Aldeia Segura”, Cláudio diz-nos que «nós com muito menos do que isso estamos a tentar garantir a sobrevivência no próximo episódio». Os moradores juntaram-se para comprar bombas submersíveis, equipamento e mangueiras decentes, com as devidas ligações. «Porque já vimos que se estivermos à espera da ajuda de qualquer entidade, vamos morrer todos aqui queimados».

Foto: Fernando Amaral

Entretanto, Claúdio transporta cereais e frutas doadas para pontos de refúgio da vida selvagem do Vale da Aveleira. Depois de 15 quilómetros percorridos de jipe em terra batida, começa uma caminhada de dois quilómetros com as sacas às costas, até chegar a pontos de água que subsistem no único verde que resta em toda a serra: «não queremos que eles se vão embora». «Se as entidades não quiseram saber das pessoas aqui em Cabanões, eu não vou delegar agora essa tarefa no caso dos animais. Com os nossos próprios meios, os nossos veículos e o nosso tempo, estamos a levar o alimento». Fala dos javalis e dos veados, alimentados pelo esforço voluntário de Cláudio e de quem mais o acompanha, evitando que desçam às aldeias e causem prejuízos nas lavouras que ficaram, mas sobretudo para «proteger aquilo que resta desta floresta, deste bosque lindíssimo». As imagens são vislumbres de esperança em vales «acantilados muito profundos» por entre o negro das encostas e cumeadas.

Com as chuvas que virão «isto vai ficar tudo um caos e alguém terá de fazer alguma coisa aqui no terreno, não sei bem como, mas estou à espera das diretrizes para poder ajudar no que possa». Virão ainda as invasoras e o momento, para Claúdio, será mesmo «de menos eucaliptos, ou nenhuns, se possível». Defende o plantio de árvores autóctones, em particular do carvalho alvarinho, «uma árvore sapadora que consegue controlar e até extinguir os incêndios». Até lá, Claúdio assegura que vai continuar o seu trabalho, «pelo menos até sentir que a floresta está a recuperar e que o alimento já assegura a sobrevivência deles». A «brama está quase aí», o ritual outonal de acasalamento dos veados, e «esse será o momento de confirmação do nosso trabalho: quando os ouvirmos bramir neste vale e soubermos que eles estão a procriar e que o futuro está assegurado».

O espírito da comunidade a acontecer
A quinta situa-se entre a freguesia de Paul e a freguesia de Ourondo, na Covilhã. São cerca de 50 hectares que, desde 2010, albergam uma comunidade espiritual de cerca de 30 pessoas sob o nome de Ananda Kalyani. Exemplo da nova toponímia que constará quando atualizada a cartografia e os cadastros da nova ruralidade do nosso interior.

Falámos com Guilherme acerca do drama vivido entre as chamas. Há já uma semana que ardia uma serra próxima, a cerca de 20 km, mas, como todas as populações serranas, estavam habituados a ter incêndios por perto. «O incêndio, para chegar aqui, teria de queimar aldeias, como a de Casegas, para chegar até nós. Pensámos: “não é possível, o governo português, os bombeiros não vão deixar que isto aconteça”. Dia 16 de agosto, aconteceu. Queimou essas aldeias, muitas quintas arderam completamente, casas, armazéns, animais, olivais centenários… é mesmo muito triste, estamos a falar de gerações e gerações de trabalho ardido em minutos».

«E chegou até nós. Na nossa quinta principal, dos 30 hectares, arderam 25 hectares. Conseguimos preservar esses 5 hectares pelo trabalho de quatro membros da nossa comunidade, que ficaram a noite toda a combater as chamas, porque os bombeiros não vieram cá. Não tivemos apoio dos bombeiros porque era uma calamidade, um desastre de tal tamanho, não havia recursos, não havia meios, era impossível, uma tragédia. Percebo completamente que os bombeiros não tivessem forma de dar vazão a tudo. Então tivemos nós que proteger a nossa própria quinta».

Guilherme conta-nos que a maioria das pessoas evacuou porque «era, de facto, muito perigoso». O combate empreendido pelas quatro pessoas que decidiram ficar «foi mesmo tirado de um filme, um filme com heróis de ação a meterem a sua vida em causa para proteger a nossa quinta. Por um lado, incrível, por outro lado, há que dizer que o que a maior parte das pessoas fizeram foi tomar a ação mais sensata, que é evacuar. Mas, graças ao sacrifício desses quatro membros da comunidade, conseguimos preservar a maior parte das nossas infraestruturas. Porque, de outra forma, teríamos perdido tudo, teria ardido o yurt de habitação muito bonita, mas feita de madeira, a casa com armazém agrícola também feita de madeira, uma produção de meio hectare de amoras que nos dá algum retorno financeiro, e claro, as estufas. Temos uma estufa incrível que produz toneladas de comida todos os anos, é de onde vem a maior parte dos nossos vegetais. E teria sido um desastre para nós. Mas, mesmo assim, perdemos 25 hectares: 10 destes hectares eram cerejal com 500 cerejeiras, um sistema de rega, várias colmeias de abelhas, isso perdemos tudo. Estamos a falar de 10 anos de trabalho que desapareceram e que não vai ser assim tão cedo que vamos conseguir reaver.» Seguiram-se «vigias de 24 sobre 24 horas, turnos de duas horas durante a noite toda e durante o dia todo, para apagar todas as reignições».

Foto: Diogo Tavares Ribeiro

Guilherme acentua ao longo da conversa um ânimo positivo perante a tragédia. «Uma das razões é que nos ativou. Somos uma comunidade espiritual e vimos o poder de viver em comunidade e as mais valias». Uma leitura que extravasa para as aldeias vizinhas. «Observei, em particular, nos dias depois da grande tragédia, este espírito de comunidade, a acontecer no Paul. E, em Ourondo, vizinhos a juntarem-se, a apagarem as reignições dos terrenos uns dos outros, vi esse espírito de comunidade acontecer também».

«O que estou a observar aqui é mesmo o poder da comunidade, essa entreajuda, a solidariedade que se ativou. Para mim é muito inspirador e quero continuar assim. A nossa missão a um nível maior é viver numa sociedade em harmonia entre nós, seres humanos, mas também com todos os outros seres, as plantas e os animais. Não queremos viver numa sociedade em guerra, individualista, capitalista, em que o individual está acima de tudo, o indivíduo acima do coletivo. Nós queremos viver numa sociedade que viva realmente em entreajuda. Esta tragédia está a ativar este espírito. Estamos a fazer o nosso melhor para aproveitar o que este momento está a gerar.»

Daí nascem as ajudadas Mãos na Terra que, como em Benfeita, são celebradas com um almoço partilhado. Juntam-se em diferentes quintas afetadas a apanhar lixo, a cortar giesta queimada, a fazer estruturas de retenção da água para mitigar a erosão e apoiar quem tudo perdeu. Mas, para Guilherme, os objetivos não se ficam por aí. «Acredito num processo passo a passo. A curto prazo estamos a fazer estas ajudadas nas quintas uns dos outros, a criar aquele espírito de comunidade». A solução de médio prazo será fazer uso das previstas Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP), e dos fundos do Programa de silvicultura sustentável (PEPAC). «Estamos a falar já de uma grande escala, aliás, ideal até seria uma ZIF (Zona de Intervenção Florestal) a partir de 500 hectares e um mínimo de 25 proprietários, mas a AIGP é mais flexível e prevê também espaço agrícola. Estamos a falar de um agrupamento de terrenos que são geridos de uma forma verdadeiramente comunitária e temos uma entidade central que gere o terreno em nome de todos os proprietários». A associação ambiental Ecoativo, ligada à Ananda Kalyani, irá pôr em marcha um projeto próprio nesse âmbito.

Já a longo prazo, sublinha o objetivo de «sairmos deste paradigma de pensar na floresta como um meio de obtenção de lucro e em que a prioridade seja a criação de ecossistemas saudáveis e funcionais. Aí, estamos a falar de misturas de plantas, estamos a falar da criação de floresta verdadeira com os diferentes estratos, com os estratos emergentes, as árvores grandes, o estrato alto, o estrato médio e o estrato baixo. As plantas anuais de ciclo rápido, os arbustos de ciclos mais lentos, as árvores de ciclos médios e as árvores de ciclos longos». Para Guilherme, temos de ir para além do mosaico que estes subsídios permitem: «as faixas de sobreiro, as faixas de medronho, faixas de carvalho negral…», embora «esta ideia de um mosaico seja mil vezes melhor do que temos hoje em dia: 70 ou 80% de monocultura de pinhal abandonado».

Por fim, uma outra ideia final, à qual Guilherme confessa saber «que vai ser muito difícil convencer as pessoas de que isso realmente é o caminho, mas a medida é simples: todo o terreno florestal que está claramente abandonado há mais de 10 anos, automaticamente passa a baldio. Uma vez que passa a baldio, as entidades que trabalham com a floresta passariam a geri-lo».

Temos que organizar a mobilização popular que a política nunca quis nem aceita. Para podermos ter um futuro, temos de construí-lo com as nossas mãos.

Do ponto mais alto do continente
Combatidos os fogos e reiterado o poder da auto-organização popular por essas aldeias, quintas e comunidades fora, por entre novos residentes ou gerações locais, ao forte sentimento de abandono que a todos assolou a única resposta possível seria, em diante, dar continuidade à dignidade dessas histórias de resistência. Muitas mais histórias haveria para aqui relatar.

No dia 21 de setembro, mais de 150 pessoas subiram à Torre, na Serra da Estrela, sob o apelo de um «momento apartidário de encontro e partilha, em defesa da Serra, do território e das comunidades». Diversas pessoas, associações e organizações locais, apresentavam o movimento Por Serras Dignas. Do seu manifesto em construção, citamos: «As chamas deixaram um rasto de tristeza, mas revelaram também algo que nunca se perdeu: a força de comunidades que sabem unir- -se e resistir. As serras, florestas, animais, rios e pessoas serranas merecem um futuro de esperança que pede resistência em cada aldeia, em cada trilho, em cada ecossistema. A montanha não é apenas pedra e vegetação, nem paisagem para turismo fugaz, nem reserva de sacrifício para monoculturas e políticas que vêm de longe. A montanha é casa de muitos seres vivos, é trabalho, muitas culturas, escola, futuro! Exigimos respeito. Exigimos dignidade».

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Texto de Filipe Nunes com Francisco Colaço Pedro e Fernando Amaral
[publicado na edição nr. 47 de Jornal MAPA – Out.-Dez. 2025]


Written by

Filipe Nunes

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