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Lendo: SAAL: A urgência de habitação condigna numa expressão de poder popular

SAAL: A urgência de habitação condigna numa expressão de poder popular

SAAL: A urgência de habitação condigna numa expressão de poder popular


O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) surgiu no verão de 1974. Foi um processo multidisciplinar que envolveu arquitetas/os, assistentes sociais e as populações na construção de habitações condignas. A movimentação popular que exigiu “Casas sim, barracas não” foi determinante para a criação de 75 bairros em várias zonas de Portugal.


Habitação em 1974

O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) surgiu formalmente a 6 de agosto de 1974, através de um despacho assinado pelo Ministro da Administração Interna, Manuel da Costa Brás, e pelo secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas. Resultando de um despacho, o SAAL não tinha a robustez legislativa necessária para resolver todos os problemas da habitação em Portugal. Para além da ostracização social, económica e política, o estado fascista tinha condenado uma parte muito significativa da população a habitar em condições muito precárias. Não obstante a sua fragilidade, o SAAL permitiu a implementação de dinâmicas de habitação condigna com a participação das populações.

Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) relativos ao I Recenseamento Geral de Habitação  1, realizado ao mesmo tempo que o XI Recenseamento Geral da População, em 1970, apuraram dados pouco significativos, uma vez que «foram obtidos com base numa estimativa a 20% dos questionários de alojamento recolhidos.» Apesar de a amostra ser reduzida, o INE expôs a existência de 31110 «barracas e outras». Não havendo dados precisos sobre as condições de habitabilidade em Portugal naquele tempo, centremo-nos na tese de José António Bandeirinha, O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, onde o investigador estimou que, quando se deu o 25 de Abril de 1974, um quarto da população residente em Portugal vivia em espaços sem quaisquer condições de habitabilidade.

O Processo SAAL foi inspirado em experiências de arquitetura com preocupação e dimensão social que tiveram lugar na América Latina a partir da década de 60. Destas são exemplos as experiências de cooperativismo no Uruguai, os bairros projetados por Germán Samper na Colômbia e, com mais notoriedade, o PREVI – Proyecto Experimental de Vivienda, no Perú. Neste país, o presidente Fernando Belaunde, arquiteto de profissão, começou a executar um plano que visava também resolver o problema das “barriadas”, que proliferavam em Lima devido a um enorme êxodo rural para a capital. Através de um concurso internacional, foram selecionadas/as treze arquitetas/os internacionais, que participaram no PREVI juntamente com arquitetas/os locais. Com o golpe de estado de 1968 e a instauração de uma ditadura militar, as preocupações sociais deixaram de estar na ordem do dia e das 1500 habitações previstas só 500 foram construídas, todas elas inauguradas em 1974.

Várias ocupações em Lisboa, Porto e Setúbal questionaram a propriedade privada, pedra basilar do sistema capitalista. Essa urgência e o horizonte de esperança aberto pelo 25 de Abril possibilitaram a ocupação de edifícios devolutos. (…)

Basta de viver na lama

Nas casas, como nas ruas, o chão era lama. As barracas, as cabanas, as construções frágeis de adobe e/ou entaipadas, foram construídas com sobras provenientes dos locais de trabalho: latão, chapas, bidons, madeiras, em suma, todos os materiais que pudessem servir para construir um abrigo e não estar ao relento. Viver nesses locais, para além de todas as questões inerentes à habitabilidade e salubridade, era também um grande entrave à inclusão social.

A gravidade deste problema impunha uma intervenção urgente. Logo após a deposição do regime fascista, movimentos de moradores surgiram para exigir «Casas sim, barracas não». Segundo Jaime Pinho 2, várias ocupações em Lisboa, Porto e Setúbal questionaram a propriedade privada, pedra basilar do sistema capitalista. Essa urgência e o horizonte de esperança aberto pelo 25 de Abril possibilitaram a ocupação de edifícios devolutos, descerrando assim «As Portas que Abril Abriu», numa interpretação literal do poema de José Carlos Ary dos Santos. «As casas são do povo. Abaixo a Exploração»: pichou-se nos edifícios e gritou-se na rua.

As ocupações não eram a opção desejada pelo Estado, que, nos primeiros meses após o 25 de Abril, procurou encontrar uma maneira de envolver e responsabilizar as/os moradoras/es, evitando criar quadros legais que autorizassem as ocupações. Em contraponto, a movimentação social não esperou por um enquadramento jurídico e avançou, questionando a organização capitalista da sociedade. Para tal, não podemos negligenciar o papel desempenhado pelas forças armadas progressistas e por várias formas de organização do poder popular, entre as quais, as Comissões de Moradores. Estes instantes, que hoje nos parecem de euforia e de utopia, após 48 anos de ditadura, possibilitaram a ocupação de casas devolutas, e isso foi determinante para o aparecimento do SAAL. Apesar de o SAAL ter perdido força após o 25 de Novembro e ter sido revogado em outubro de 1976, constitui um exemplo de uma política pública, com real participação popular, pioneira àquela data.

Pedro Augusto Almeida

Forte Velho.

Que processo?

O processo foi dividido em três delegações em Portugal Continental – Delegação SAAL/Norte (17 bairros), Delegação SAAL/Lisboa e Centro-Sul (34 bairros) e Delegação SAAL/Algarve (24 bairros) – que intervieram nos concelhos de Porto, Aveiro, Coimbra, Santarém, Lisboa, Setúbal, Évora, Beja e Faro. Apesar da sua curta duração, o SAAL, possibilitou a construção de 75 bairros em todo o país, num universo de 170 projetos elaborados. Mas, mais do que os dados quantitativos, o que importa evidenciar são as dinâmicas construídas a partir de perspetivas antagónicas. Por muito evidente que fosse a necessidade de construção de casas condignas, como se poderiam construir bairros que considerassem as características sociais e económicas da população? As Brigadas Técnicas constituídas para a construção dos bairros SAAL eram compostas não só por arquitetas/os, mas também por assistentes sociais, que tiveram uma intervenção relevante, fornecendo dados sobre as populações a que se destinava cada bairro. Naturalmente, houve um grande choque de realidades. As populações estavam desesperadas e, perante o horizonte de esperança que se abriu, movimentaram-se para obter casas o mais rapidamente possível. Era inevitável o conflito com as brigadas SAAL. Mas foi esse conflito que possibilitou uma simbiose entre arquitetura e apoio social, com vista à criação de bairros que ao mesmo tempo que respondiam à necessidade de habitação condigna, permitiam manter dinâmicas sociais específicas de cada comunidade.

Dinâmicas sociais e dualidade de poderes

O período do PREC é muitas vezes apresentado como uma experiência aventureira, desconsiderando-se as conquistas sociais realizadas naquele momento. O acronímico do Processo Revolucionário em Curso tem sido alvo de revisionismo histórico, numa perspetiva pejorativa, com a intenção de legitimar as medidas liberais que estão a substituir a social-democracia das últimas décadas.

A luta pela habitação exponenciada pelo SAAL pode evidenciar uma ideia romântica de luta. A ajuda mútua é uma evidência no SAAL. No âmbito da produção de um documentário sobre os bairros SAAL em Setúbal, temos realizado várias entrevistas a diversas/os moradoras/es que referem o apoio prestado à construção de casas em outros bairros. Esse poderia não ser literalmente ao nível da construção das casas, mas também de âmbito burocrático ou social.

Sobre o tema da autoconstrução, ela existiu por movimentação popular, motivada pela urgência de uma casa. Disso é exemplo a primeira fase de construção do bairro SAAL «Forte Velho». Tal como evidencia Miguel Reimão Costa 3, a autoconstrução ocorreu predominante nos bairros do Algarve. Por outro lado, tal como assevera Ricardo Santos, ela foi rejeitada em alguns bairros, sobretudo na cidade do Porto, porque as populações consideravam que utilizarem a força do seu trabalho para a construção da sua própria casa seria um ato de dupla exploração 4.

São as mulheres que chegam primeiro às reuniões para discutir a ordem de trabalho, são elas que primeiramente se disponibilizam para ir a manifestações, são elas que têm uma voz mais ativa quando são discutidas questões funcionais do interior das casas.

Tomemos em atenção outra conquista só possível graças à persistência e à resistência das/os moradoras/es: o direito ao lugar. Este caracteriza-se pelo direito de habitar num determinado espaço, independentemente das suas características naturais ou da proximidade que tem com determinados lugares e serviços. Esta conquista colidiu com os interesses da especulação imobiliária. Tomamos como exemplo o caso do Casal das Figueiras, em Setúbal, bairro cujo processo se iniciou em 1974, mas cujas primeiras casas só foram entregues em 1984, seguidas de mais quatro entregas até 1986, totalizando 312 fogos. Esse bairro situa-se numa área com vistas desafogadas para a serra da Arrábida, para o estuário do Sado e, ainda, para a ilha de Troia. No âmbito do referido documentário, as/os moradoras/es reportaram a pressão que sentiram para desistirem da construção naquele local altamente apetecível para a especulação imobiliária. Em jeito de conclusão, podemos afirmar que o direito ao lugar foi algo que foi conquistado, ainda que de forma momentânea, sobretudo pela pressão da população, ao querer habitar um local que faz parte da sua identidade.

Para além do direito ao lugar, o sentimento de pertença é também um fator importante na identidade destas populações. Provindas de classes baixas, foi através do sentimento de pertença que resistiram durante décadas a muitas provações e que lutaram através de manifestações, concentrações e outras formas de luta encontradas para levar avante a construção dos bairros, mesmo depois da revogação do frágil despacho que instituiu o SAAL.

Por fim, e como esta luta foi também uma luta feminista, cabe referir o papel determinante desempenhado pelas mulheres. Na série de entrevistas já referida, percebemos que são elas que estão na linha da frente pela exigência de casas. São elas que chegam primeiro às reuniões para discutir a ordem de trabalho, são elas que primeiramente se disponibilizam para ir a manifestações, são elas que têm uma voz mais ativa quando são discutidas questões funcionais do interior das casas, embora não sejam elas a constituir os órgãos sociais das associações de moradores.

As portas abertas pelo SAAL continuam no nosso horizonte de esperança como uma aprendizagem para o presente e para o futuro, por um direito que, apesar de estar na Constituição, não é cumprido, face aos avanços da mercantilização e da especulação. Habitemos por um instante esse fragmento de memória.

anarcheology

Mapa dos bairros SAAL. Anarcheology of utopia


Texto de  Tiago Gil | tiago.alberto.gomes@gmail.com
Fotografias de  Pedro Augusto Almeida
Legenda da fotografia [em destaque]:  “Casal das Figueiras”.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #41, Abril|Junho 2024.

Notas:

  1. O I Recenseamento Geral de Habitação pode ser consultado em: https://censos.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=censos_historia_pt_1970.
  2. Jaime Pinho, Fartas de viver na Lama: 25 de Abril, o Castelo Velho e outros bairros SAAL do Distrito de Setúbal, 2002.
  3. Miguel Reimão Costa, «Mãos à obra A autoconstrução e a Identidade do Processo SAAL no Algarve», 2002. Artigo no livro Cidade Participada: Arquitetura e Democracia Algarve, que integra a coleção de livros sobre o SAAL Operações SAAL.
  4. Ricardo Santos, «Um projecto transformado em processo. As operações SAAL: arquitectura e participação», 2023 (https://searanova.publ.pt/2023/10/23/um-projecto-transformado-em-processo-as-operacoes-saal-arquitectura-e-participacao/)

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