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Lendo: A Floresta a Ferro e Fogo

A Floresta a Ferro e Fogo

A Floresta a Ferro e Fogo


Após os incêndios de 2017, com a inusitada perda de vidas humanas, o Estado ao invés de optar por um ordenamento territorial eficaz que travasse as monoculturas da floresta industrial, desviou essas responsabilidades e centrou-as em quem nesses territórios vive. No dia seguinte às tragédias uma perniciosa equiparação de responsabilidades passou a ecoar na praça pública: entre os criminosos, mas diminuídos «maluquinhos do fogo», e as populações que nos 50 metros das suas casas não varriam a eito o mais pequeno arbusto que fosse. A lei da gestão de combustíveis feita cumprir pela Guarda Nacional Republicana, fardada de azul-celeste pela sua polícia ambiental (Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente – SEPNA), passou a multar todo e qualquer um que, impossibilitado ou desleixado, não cuidasse dos matos. O que não impediu a progressão constante dos incêndios e a perda não menos trágica de territórios, como na Serra da Estrela em 2022. Mas a condenação persistiu focada naqueles que, nas franjas do abandono, persistem em viver no mundo rural. A reboque, uma série de medidas restritivas impuseram-se ao seu quotidiano. Depois de, nos meados do século XX, as serras e os montes terem sido tomadas pelos Guardas Florestais para garantir a florestação forçada que conduziu às tragédias de 2017, a Guarda reincidia agora em força, neste século XXI, sobre as pessoas que aí restam. Distribuindo as responsabilidades sobre as vítimas de um território ao abandono, à sombra do manto florestal das grandes celuloses.

Fotografias de André Paxiuta

Manuel Ferros, historiador e produtor de cogumelos e mirtilos, e Paula Germano, advogada, vivem em Molelos, no concelho de Tondela, e combateram como puderam e não podiam o fogo que em outubro de 2017 lhes varreu apocalipticamente a quinta. Como muitos outros procuraram refazer o seu local de vida e de trabalho, mas acabaram por ver-se enleados na bizarra história da imposição sucessiva de multas pela GNR local. Após contestação, só passados três anos as viram replicadas por essa autoridade, possibilitando levar o caso a tribunal, que lhes deu razão. Afinal, no local a que se referiam os autos de contraordenação, não existia faixa de gestão de combustível. O decreto-lei 124/2006, entretanto revogado, previa no nº 2 do seu artigo 15º  que «Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes com edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei…» (sublinhado nosso). Mas neste caso, a casa de habitação que a GNR entendia estar edificada num local que obrigava o  proprietário do prédio confinante a fazer a gestão de combustível, de acordo com o especificado no citado decreto-lei, estava inserida em espaço urbano. O artigo 16º da mesma lei, cuja redacção foi alterada diversas vezes, a última, em 2019, previa restrições à construção em espaços rurais que implicavam que o proprietário que as quisesse edificar tinha que assegurar que os 50 metros circundantes da casa lhe pertenciam. Isto fazia todo o sentido já que, caso assim não fosse, então esse proprietário, ao construir, passaria a impor aos vizinhos que fizessem a gestão de combustíveis dentro dos apertados critérios constantes do anexo do mesmo decreto-lei. Significaria impor-lhes uma espécie de servidão administrativa, como as que existem, por exemplo, ao longo das auto-estradas. 

A conversa com o Jornal MAPA girou em torno dessa generalizada investidura policial e das leituras abusivas da lei, como de uma política florestal que ruma em sentido contrário ao reabitar e reflorestar resiliente desse interior esvaziado que é o mundo rural.

«O Estado, numa postura hiperpaternalista, chamem-lhe o que quiserem, decidiu por si só que a única coisa que interessa neste território são as pessoas. Uma visão completamente antropocêntrica em que, arda o que arder, tem é de se proteger pessoas. O Estado não sabe o que há-de fazer – de facto – e aproveitou as tragédias, principalmente as de 2017, para se virar para medidas completamente paternalistas que em nada se encaixam naquilo que é a vida no mundo rural. Não se concebe que perante o mundo rural, por exemplo, a proibição das queimas de amontoados seja definida por calendário, numa altura em que estamos a uma distância de mais de seis, sete meses para prever que tipo de tempo é que vai estar. Tal como aconteceu no ano passado, estamos em Setembro, choveu por todo o lado, isto está tudo verde, há água por todo o lado e eu não posso fazer uma fogueira. Porque o Estado decidiu que eu não podia fazer uma fogueira. Ou seja, se temos dez mil anos de experiência de vida rural, também é certo que os agricultores sempre souberam à sua maneira gerir o fogo. E da mesma maneira que a maior parte dos acidentes de viação acontecem com as pessoas que têm carta de condução, os acidentes acontecem».

Segundo o oitavo Relatório Provisório de Incêndios Rurais de 2022, dos 10.469 incêndios que ocorreram nesse ano, concluíram-se as investigações relativas a 5.963, ou seja, de 58% do total. Desses, «as causas mais frequentes em 2022 são: Incendiarismo – Imputáveis (28%) e Queimadas de sobrantes florestais ou agrícolas (19%)».  Mas quando olhamos à proporção das áreas que as queimas de amontoados atingem em área queimada, não é equivalente a áreas queimadas com intenção ou por outros acidentes. Já o documento “Análise das Causas dos Incêndios Florestais 2003-2013” disponível na página web do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) concluía que «são evidentes os elevados danos associados às causas acidentais, embora sejam causas com pouca expressão em termos de número de ocorrências. Em contrapartida, ao uso do fogo para realização de fogueiras, de queimas de lixo e de queimadas, apesar de muito frequentes, não estão associados grandes impactos em termos de área ardida (em média 2ha/ocorrência, 8ha/ocorrência e 9ha/ocorrência, respetivamente)».

Manuel recorda que «o incêndio que chegou aqui em 2017, começou no Prilhão, em Vilarinho/Lousã, devido a um acidente com linha elétrica da EDP, atingindo uma área de 10.600 ha, só num dia. O outro de 2013 aqui no Caramulo, que matou quatro bombeiros e queimou uma área de 2.800 hectares, foram uns putos que pegaram fogo à serra em vários sítios na mesma estrada. Estes dois exemplos são comparáveis, em área, com 1.325 e 350 incêndios provocados por fogueiras mal apagadas. Ou seja, nós estamos a ser geridos sem bases minimamente científicas, só pela autoridade do Estado em cima de nós. É por aqui que queria começar como introdução a tudo o resto».

 

Arranjem-se culpados

O novo decreto-lei que estabelece o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais no território continental e define as suas regras de funcionamento (82/2021, de 13 de Outubro, que revogou o anterior), reconhece que se visou a mudança do paradigma nacional em matéria de prevenção e combate aos fogos rurais após 2017. A ausência de um cadastro vetorial completo da propriedade em Portugal surge à cabeça como a explicação pelo Estado de inoperância que deixou de ser escamoteado após «o impacto dramático dos grandes incêndios rurais nas vidas dos portugueses» e que justificou o novo quadro legislativo. Ao invés de inquirir o modo generalizado da exploração industrial das florestas, o foco centrou-se no domínio da propriedade rústica e na responsabilidade de cada particular. A atenção legisladora recaiu sobre as tarefas tradicionais da agricultura, silvicultura e pastorícia que envolvem o fogo e que poderão se descontrolar, como as queimadas, queimas e fogueiras.

Para Paula «aquele stress de ter morrido gente foi causado pelas enormes extensões de monoculturas, em parte abandonadas, extensões gigantes como por exemplo de Águeda a Tondela e noutros locais, nomeadamente Pedrogão. Extensões absurdas de eucalipto, intercalado com pinheiros, e que ultrapassam em muito a distância dos 50 metros que prevê a gestão de combustíveis no terreno das pessoas». E, indigna-se Manuel, «o Estado começa imediatamente num discurso de quem mora no campo é que é culpado. A culpa é nossa. E a comunicação social alimenta isso: a primeira coisa que o jornalista vai perguntar é se o terreno estava limpo, ou então já está a afirmar categoricamente que o terreno não estava limpo. Mesmo que o incêndio venha de 100 quilómetros de distância, estamos a focar-nos na culpa dos moradores».  Paula recorda que «tanto o que aconteceu em Julho, como em Outubro de 2017, foram circunstâncias atmosféricas excepcionais associadas parte a mão criminosa, parte a acidentes com cabos eléctricos, parte a queimas que se podiam fazer porque o calendário permitia, e também incúria de alguns municípios, que não tinham planos municipais de emergência em vigor, como é o caso de Tondela». Para Manuel «a falta de planos municipais de emergência é que matou pessoas. Por exemplo, a única hipótese de ajuda que havia eram dez bombeiros no quartel quando esta brincadeira chegou a Tondela e o caos generalizou-se pela falta de tudo o que deve funcionar em situações de catástrofe…».

Protestos “Pela Floresta do Futuro”, 3 de setembro de 2023

«Depois, obviamente, é claro que é fácil instruir um corpo profissionalizado da GNR para pressionar as pessoas». Em concreto a GNR, através do SEPNA, que se constituiria como polícia ambiental em 2001, sucedendo ainda às áreas de atuação do Corpo Nacional da Guarda Florestal, e sem prejuízo das competências próprias dos Vigilantes da Natureza, criados em 1975 e hoje na alçada do ICNF e das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). A especialização ambiental do SEPNA, enquanto corpo policial, mais do que um acréscimo, representou uma diminuição, contrastando com a diminuição da esfera técnica nas áreas da Conservação da Natureza e da Gestão Florestal, duas áreas com peso desigual no seio do ICNF. Paula anota que «para além do desinvestimento, da desatenção e de se legislar generalizadamente de uma maneira que não se adequa ao interior do país, o Estado foi negligenciando o ICNF e o que se passa agora é a delegação de uma série de incumbências que deviam ser dos técnicos do ICNF nestes SEPNA, cuja formação na área em que intervêm é limitada.»

Enquanto advogada, para Paula são evidentes as leituras abusivas na aplicação do decreto-lei 124/2006. Este dizia «que a obrigação de fazer gestão de combustível de acordo com as regras nos anexos, devia ser cumprida até 30 de Abril de cada ano (após 2017 esta data passou a ser fixada anualmente) e a violação desta obrigação constituía contraordenação. Eu interpreto que quem pensou estas regras previu que se toda a gente, uma vez por ano, até determinada data, tivesse  o terreno naquelas condições, então, estaria assegurado que a massa combustível não iria atingir dimensões perigosas até ao final do período crítico de cada ano; nunca interpretei a lei como dizendo que a pessoa tinha de passar o Verão todo a rapar, o que parece ser contrário à boa manutenção dos ecossistemas. Observando as condições estipuladas, no estrato arbustivo a altura máxima da vegetação não pode exceder 50 cm; no estrato subarbustivo a altura máxima da vegetação não pode exceder 20 cm.  Terias de andar a cortar tudo de duas em duas semanas para que, ao longo do período crítico, os terrenos se mantivessem naquelas condições, ou então utilizar herbicidas… não me parece que fosse esse o espírito de quem legislou. Mas não conheço ninguém que tenha tentado argumentar isto, nem com a própria GNR, nem em tribunal. Antes conheço uma pessoa cuja mãe foi multada três vezes no mesmo Verão por causa de um vizinho que chamava a polícia cada vez que crescia um bocadinho a vegetação.»

Os Planos Municipais de Defesa da Floresta contra Incêndios, estabelecem para cada município as ações necessárias à defesa da floresta contra incêndios e, para além das ações de prevenção, incluem a previsão e a programação integrada das intervenções das diferentes entidades envolvidas perante a eventual ocorrência de incêndios (artigo 10º, nº 1 do decreto-lei 124/2006). Estes irão ser agora substituídos por programas sub-regionais de ação e programas municipais de execução, previstos no decreto-lei 82/2021 (os existentes mantêm-se em vigor até 31/12/2024). Quanto à obrigação de gestão de combustível junto às estradas, será calendarizada de forma a que ela não seja feita todos os anos em todos os locais.

No entender de Paula, a legislação, que existe desde 2006 passou, a partir dos incêndios de 2017 «a ser interpretada de uma maneira completamente absurda».  Acresce agora, como referido, que o novo decreto-lei estipula que «as normas técnicas relativas à gestão de combustível nas faixas de gestão de combustível das redes primária, secundária e terciária e nas áreas estratégicas de mosaicos de gestão de combustível são definidas em regulamento do ICNF, I.P., ouvidas a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, Instituto Público (AGIF, I.P.), a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) e a GNR, homologado pelo membro do Governo responsável pela área das florestas» (artigo 47º, nº 3) e que enquanto este não for elaborado, mantêm-se em vigor as normas previstas no anterior decreto-lei. «Ou seja, as normas sobre esta questão foram actualizadas e em teoria melhoradas, o que deveria ser proveitoso e auxiliar as populações a melhor compreenderem o que devem fazer. Como é evidente, sempre se limpou o mato, os agricultores preocupam-se com a sua segurança e das populações vizinhas aos seus terrenos, bem como, um terreno cheio de mato nada produz. O problema é que agora as regras ainda se tornam mais difíceis de entender, quando não o deviam. As normas que estão no anexo do anterior decreto-lei sobre como deve ser garantida a gestão de combustíveis, que pareciam adequadas caso fossem interpretadas no sentido a que me referi, isto é, a executar uma vez por ano, agora continuam a aplicar-se porque o regulamento ainda não existe (ou, se existe, não está publicado), mas sem que o período temporal esteja definido, porque esse agora é remetido para o regulamento, que há-de conter as normas técnicas, presume-se que incluindo o/s período/s temporal/ais em que a gestão de combustível deve ser feita, conforme os artigos 47º, nº 3 (que o prevê) e 72º (que contém as contra-ordenações) do decreto-lei».

Protestos “Pela Floresta do Futuro”, 3 de setembro de 2023

Manuel duvida mesmo que os guardas estejam convencidos da sua actuação preventiva. «O SEPNA mantém o espírito da brigada de trânsito, só estão preocupados com o que está escrito. Não há qualquer acção deles que vá de acordo com a prevenção da natureza, há sim a defesa de um código civil e penal e o raio que os parta…». Paula condescende que «fazem isto a achar que vai prevenir os incêndios grandes. Mas o Estado central sabe muito bem que não. Um estudo técnico elaborado pelo observatório técnico independente da Assembleia da República em 2018, publicado na página web da Assembleia da República, sobre se esta gestão de combustíveis da forma como está a ser feita era adequada concluiu que não».

O estudo em causa concluiu, por exemplo, quanto às faixas de protecção das edificações e das povoações, que «no que respeita à proteção do edificado contra incêndios a ênfase deverá ser colocada em padrões de construção e de manutenção das habitações que minimizem a probabilidade de ignição, e na eliminação total do combustível de superfície na adjacência imediata das casas (usualmente um raio de dez m). Para lá dessa distância, e até 30 m, deve ser evitada a acumulação significativa de combustível e assegurada descontinuidade vertical adequada, mas as distâncias entre copas a que a legislação atualmente obriga (quatro ou dez m) são excessivamente elevadas, não se justificando e podendo ter um efeito contraproducente, nomeadamente quando o arvoredo é de folha caduca. Os limites de 50 ou 100 m impostos pelo artigo 15º da Lei nº 76/2017 relativo à intervenção em terrenos adjacentes a respetivamente habitações e povoações são claramente excessivos. Note-se que estas recomendações podem ter implicações económicas relevantes que não favorecem a adoção das melhores práticas pelos proprietários». Ou referindo, no que toca às extensões de eucaliptos, o seguinte: «no caso dos eucaliptais, em especial nas vastas áreas percorridas pelo fogo em anos recentes, e caso não seja possível assegurar práticas silvícolas que mantenham a produtividade e minimizem o perigo de incêndio, importa equacionar a conversão para outro tipo de vegetação ou uso do solo».  Paula ressalva estes excertos «para dizer que a opinião que expresso, não sendo técnica, é coincidente com a de quem é versado na área».

 

A floresta a quem menos a ordena

Nas responsabilidades autárquicas muito há a dizer, como na limpeza das faixas junto das estradas, exemplifica Manuel. «Não é ser conspirativo, mas quem é que está a ganhar dinheiro com isto? Só o concelho de Tondela tem 180 ha de zona de gestão de combustível de obrigação da câmara; se nos dez metros de bermas das estradas eu for lá e cortar tudo ao nível do chão e deixar as raízes, em pouco tempo as infestantes voltam a rebentar e ainda com mais força. Ou seja, eu estou a criar ainda mais combustível, para me ser pago para eu «gerir».»

Na possível equação de uma gestão eficaz – uma gestão comunitária dos territórios – parece ficar a faltar na soma o elemento crucial: as pessoas.

A outro nível «temos aquela história vergonhosa de uma União Europeia que vota uma lei que proíbe que se retire a madeira queimada da floresta, como parte integrante para a renovação da floresta e manutenção dos ecossistemas, e em Portugal teres uma lei que te obriga a retirar essa madeira da floresta e a vendê-la a um preço de merda a gajos que estão a transformá-la em biomassa para produção de energia, que te é vendida ao preço da EDP. É a tal expansão, disfarçada de transição energética. Isto faz tudo parte do mesmo pacote. Se temos as mesmas grandes empresas de celulose, como o grupo Navigator, que ao mesmo tempo que gere celulose é dono de uma percentagem gigante de floresta, que também tem centrais termoeléctricas que funcionam com resíduos florestais, o ciclo fecha-se. É tudo deles, literalmente tudo deles. E para o pequeno proprietário não há apoios sequer para triturar a sua biomassa, as pessoas têm de a queimar, o que, por sistema, também é uma estupidez. Mais grave, há pessoas que não têm capacidade monetária para fazer esta gestão anual dos terrenos que possuem. Há pessoas a vender terrenos por tuta e meia, há pessoas a querer oferecer terrenos, pois todos os anos andam a pagar mais de 1.000 euros nas limpezas e vivem com medo das multas. Olhando para isto tudo e para a lei que o sustem, se pusermos um gráfico de medidas e consequências, o gráfico dos incêndios continua a subir… não venham dizer aqui que há medidas que têm resultados. Porque a mão criminosa vai sempre chegar lá, porque há sempre o interesse de fazer uma desmatação antes de um projeto qualquer.»

Para Manuel nada disto faz sentido, lamentando que não haja «ordenamento do território – numa visão global do território – que é das poucas coisas que faz sentido, cientificamente apoiado, com as espécies mais resilientes, a fazer fronteira entre hectares de produções do quer que seja… mas não, o que se está a fazer é pôr a culpa e a responsabilidade em cima de quem gere os terrenos, seja da forma da silvicultura ou da agricultura. Nada disto é racional, apenas há autoridade, paternalismo, desresponsabilização».

Uma evidência de bom senso resultaria num planeamento do território verdadeiramente eficaz, suportada pelos estudos existentes e participado pelas comunidades. Esbatendo logo em seguida na lógica industrial da floresta em nome de uns poucos grupos da fileira florestal, que impedem o pôr em prática tais planos. A única capacitação que parece existir é a capacitação das multas. «Mandar soltar a polícia como quem manda soltar os cães é a mais fácil e toda a gente concorda; podem-nas sempre invocar para as estatísticas e para teres o Portugal Chama constantemente a buzinar a mesma lengalenga de limpe os seus terrenos, limpe os seus terrenos…».

A conversa não tende a terminar de forma animadora. Na equação do problema não é esquecido o problema central da desertificação. Haver «aquela coisa de guardar os terrenos que eram dos seus antepassados, mas depois moram na Alemanha, na Suíça, em Lisboa ou no Porto e não têm maneira de eles próprios irem tratando dos terrenos, nem haver na terra pessoas que vão tratar por eles.» Na possível equação de uma gestão eficaz – uma gestão comunitária dos territórios – parece ficar a faltar na soma o elemento crucial: as pessoas.

Essa questão leva-nos a encerrar a conversa com os baldios. «Que nestes sítios torna-se complicado. Os baldios acabam por ser vistos como grandes parcelas de terreno, geridas na sua maioria por Juntas da Freguesia, que são uma oferta a concurso de grandes unidades que produzem eucalipto, ou, agora, de grandes campos para fotovoltaicos. Daí o prazer que tivemos, há cerca de dois meses, de ter sido chumbado pela assembleia de compartes de Molelos um projecto da Navigator, quando estes estão por aí, em cima e sabendo do que há e não há, com propostas de chave na mão prontas a fazer. Chegando às freguesias com propostas de centenas de euros por ano, para não se chatearem com nada, comprometendo-se a manter os caminhos abertos, e o presidente da Junta – com menos uma coisa para se chatear – vai dizendo logo que sim. Por isso de facto foi um espanto. Por ser uma questão da Navigator e dos eucaliptos, por terem dito que não! Espero que não seja apenas pela proximidade da memória dos incêndios, mas que seja já uma consciência colectiva. Vamos ver.»


Texto de  Filipe Nunes 

Imagens de André Paxiuta


Artigo publicado no Jornal Mapa, edição #39, Outubro | Dezembro 2023

 

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Filipe Nunes

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