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Lendo: O activismo ecologista, novo terreno de experimentação da tecnopolícia

O activismo ecologista, novo terreno de experimentação da tecnopolícia

O activismo ecologista, novo terreno de experimentação da tecnopolícia


A deriva autoritária em França vista através do incremento de novas técnicas de vigilância sobre os militantes ecologistas

Vários casos recentes revelaram a vigilância particularmente intensiva que os militantes ecologistas estão a enfrentar. Além do arsenal administrativo e repressivo utilizado pelo Estado para os punir, é a própria natureza dos meios utilizados que surpreende: drones, reconhecimento facial, marcadores químicos codificados… O Ministério da Administração Interna experimenta e aperfeiçoa nos activistas ecologistas os seus instrumentos tecnopoliciais.

Vários artigos de imprensa revelaram o carácter intensivo dos meios de vigilância e de repressão utilizados pelo Estado para punir algumas acções militantes ecologistas. Se isso já tinha sido documentado em relação movimento de resistência antinuclear em Bure, nos últimos tempos aconteceu também com o caso do processo Lafarge, quando um artigo publicado no site Rebellyon detalhou os meios utilizados pela polícia para identificar as pessoas que tinham participado numa acção que visava uma fábrica desta cimenteira multinacional.

Videovigilância, análise de dados telefónicos, requisições às redes sociais, levantamentos de ADN, extractos bancários, localizadores de GPS… A lista parece ser infinita. Ela dá uma ideia do poderio que o Estado pode mobilizar para fins de vigilância, «num processo que visa, acima de tudo, militantes políticos» – como destaca o site Médiapart num artigo que publicou.

Para se ter uma ideia da extensão completa desses meios, é preciso juntar-lhe a criação de células especializadas do Ministério da Administração Interna (a célula Démeter, criada em 2019 para lutar contra «a delinquência no mundo agrícola» e a célula «anti-ZAD», formada em 2023 na sequência dos confrontos na barragem de Sainte-Soline) assim como o alerta lançado pela CNCTR (a autoridade de controlo dos serviços secretos franceses) que em 2023 deixou bem patente o seu mal-estar relativamente à crescente utilização dos serviços de informações para fins de vigilância das organizações ecologistas.

As forças de segurança parecem continuar a aperfeiçoar e a experimentar nas organizações ecologistas as suas novas ferramentas de vigilância: drones, câmaras nómadas, reconhecimento facial, produtos de marcação codificados… Isto porque essas organizações lhes opõem uma resistência de novo tipo, frequentemente massiva, distribuída por um conjunto de terrenos diversos (manifestações em meio urbano, ZAD, megabacias de água…), e as forças policiais parecem achar necessária a utilização desses mecanismos de vigilância particularmente invasivos.

Captar a cara dos manifestantes

Utensílios avançados da tecnopolícia, os drones foram desde a sua invenção experimentados contra os ecologistas. É difícil ver nisso um acaso quando (segundo a própria polícia), a primeira utilização de um drone para fins de vigilância por parte da polícia aconteceu em Tarn, no ano de 2015, para evacuar a ZAD da barragem de Sivens. Em 2017, foi em Bure (local previsto para o enterramento de resíduos nucleares) que se fez uma primeira experiência, antes da sua utilização oficializada na ZAD de Notre-Dame-des-Landes no ano seguinte.

A polícia descreve, na sua revista oficial, um contexto ideal de experimentação com uma utilização que permita um «grande número de estreias»: utilização simultânea de drones e de helicópteros de vigilância, retransmissão em directo dos diversos fluxos de imagens de vídeo, disparos de gás lacrimogéneo telecomandados… Utilizações que, em seguida, serão replicadas e normalizadas nas futuras utilizações de drones, sobretudo na vigilância de manifestações. É de notar, na revista oficial da polícia, a utilização repetida do termo «adversários» para descrever os militantes: «marcação do adversário», «manobra do adversário»…

Também não é por acaso que no Livro Branco da Segurança Interna, documento publicado no final de 2020 pelo Ministério da Administração Interna para formular um conjunto de propostas sobre a manutenção da ordem, o exemplo de Notre-Dame-des-Landes seja citado para justificar a utilização massiva de drones, e apresentado como «uma etapa importante na planificação e execução de uma operação complexa de manutenção da ordem».

Resultado: após a generalização dos drones a partir de 2020 com a COVID-19, assistimos em seguida,  após a legalização a posteriori de tudo isto (mas não sem dificuldade), à normalização da utilização de drones no controlo de manifestações. Actualmente, os drones ainda são muito úteis à polícia no seguimento das acções militantes ecologistas, como aconteceu recentemente com a Caravana da Água ou na mobilização contra as obras da auto-estrada A69.

É de notar que, no que diz respeito aos novos meios de videovigilância, a imaginação das diversas forças policiais não se limita aos drones. Várias organizações documentaram a utilização de câmaras nómadas ou dissimuladas para espiar as idas e vindas dos activistas: câmaras em pedras falsas ou em troncos de árvores no caso da ZAD de Carnet, câmaras com visão nocturna em Sarthe, em 2018…

Fazer fichas da cara dos manifestantes

Outra ferramenta de ponta da tecnopolícia: o reconhecimento facial. Relembremos: o reconhecimento facial está (desgraçadamente) autorizado em França. As diferentes polícias podem identificar pessoas através das suas caras comparando-as com as que já estão arquivadas no ficheiro de Tratamento dos Antecedentes Judiciários (TAJ). A utilização que actualmente as forças de segurança fazem desta base de dados é massiva, sendo estimada em mais de 600 000 acessos em 2021 (o que corresponde a mais de 1600 por dia).

Todavia, é bastante raro haver exemplos concretos da sua utilização para compreender como e sobre quem é que a polícia utiliza este dispositivo. Como tal, e como foi realçado no artigo do Rebellyon, o reconhecimento facial foi utilizado para incriminar pessoas supostamente implicadas no caso Lafarge, com a utilização de imagens provenientes das medidas de requisição das câmaras de videovigilância dos autocarros da cidade para as comparar com aquelas armazenadas no ficheiro TAJ. O site Médiapart contabiliza, na sua investigação, oito pessoas que foram identificadas através deste dispositivo.

O mesmo aconteceu na manifestação de Sainte-Soline: num artigo de Julho de 2023, o Médiapart conta que as quatro pessoas que foram a julgamento foram identificadas graças ao reconhecimento facial. Num primeiro processo anterior, também em Sainte-Soline, já havia menção à utilização do reconhecimento facial.

Note-se que, tendo em conta os números referidos mais acima, a utilização do reconhecimento facial é massiva e não está concentrada nos militantes ecologistas . No entanto, constata-se uma utilização sistemática e banalizada do reconhecimento facial no TAJ, normalizada ao ponto de se ter tornado uma ferramenta de investigação como as outras, e que é cada vez mais apresentada como elemento de prova nos tribunais.

Em 2021, atacámos em sede do Conselho de Estado este reconhecimento facial, destacando que esta possibilidade deveria ser legalmente limitada a uma «necessidade absoluta», um critério jurídico que implica que aquele só seja utilizado em último recurso, se nenhum outro método de identificação for possível, o que já não acontecia na altura. Acontece ainda menos hoje em dia, pelo que se vê nos levantamentos publicados no Rebellyon ou no Médiapart.

Marcar os manifestantes

Outras técnicas de vigilância, ainda em fase de experimentação, parecem estar a ser testadas nas mobilizações ecologistas. Entre as mais preocupantes estão os produtos de marcação codificados. Trata-se de produtos, lançados por uma espingarda do género das que são usadas no paintball, invisíveis, indolores, que permitem marcar uma pessoa à distância e de forma persistente na pele e nas roupas. Podem ser compostos por um produto químico ou por um fragmento de ADN sintetizado que são revelados à luz de uma lâmpada de ultravioletas e que contêm um identificador único que «prova» a participação numa manifestação.

Como foi recordado pelo colectivo Desarmons-les, foi em 2021 que o ministro da Administração Interna, Gérald Darmanin, anunciou o teste desse dispositivo. Parece que, mais tarde, foi utilizado pela primeira vez em 2022 aquando de uma primeira manifestação contra a bacia de Sainte-Soline (através da utilização pela polícia de espingardas especiais, parecidas com as que são utilizadas pelos lançadores de paintball). Em 2022, Darmanin dava conta de mais de 250 utilizações desse dispositivo.

Em 2023, a sua utilização foi de novo notada na manifestação contra a bacia de Sainte-Soline. Ela levou à prisão preventiva de dois jornalistas que detalharam à imprensa os processos utilizados pelas polícias para recuperarem e analisarem os vestígios de tinta deixada pela espingarda PMC.

Neste momento, esta utilização parece estar apenas no seu início. No quadro de um recurso judicial contra os drones, a direcção nacional da polícia francesa, numa escalada securitária sem limite, tinha nomeadamente declarado a vontade de poder equipar os seus drones com um lançador de PMC. O ministro da Justiça também gabou a utilização destas ferramentas numa recente audição parlamentar sobre o tema, pois serão «úteis para encontrar o rasto de um indivíduo encapuçado». Um relatório parlamentar de Novembro de 2023 recorda, no entanto, que a sua utilização é actualmente feita sem nenhum tipo de base legal, o que a torna pura e simplesmente ilegal. Se alguns deputados parecem também questionar a sua eficácia, outros, num  relatório sobre «o activismo violento», apelam à sua perenização e à sua generalização. Do lado do governo, depois de ter feito experiências nos militantes sem nenhuma base legal, o Ministério da Administração Interna parece, por agora, ter suspendido a sua utilização.

Os movimentos militantes não são os únicos, como é evidente, a conhecerem esta intensidade na utilização dos meios de vigilância: os exilados e os habitantes dos bairros populares foram sempre os primeiros a sofrerem a militarização desenfreada das forças do Ministério da Administração Interna. No entanto, esta experimentação de tecnologias sobre organizações ecologistas é uma nova prova da escalada securitária e desumanizada das forças policiais em ligação com a criminalização dos movimentos sociais. França está na vanguarda da deriva autoritária da Europa, já que parece ser um dos países do continente que têm uma prática regular e combinada de uso destas novas técnicas.


Autoria: www.laquadrature.net

Tradução de artigo de laquadrature.net publicado em 19.12.2023

Imagem 1: Vigilância sobre os militantes antinucleares de Bure- imagem de https://reporterre.net/

Imagem 2: Ação de protesto contra vigilância de ecologistas- imagem de https://rebellyon.info/


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Jornal Mapa

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