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Lendo: Da escola de música à música que nos dão com as escolas

Da escola de música à música que nos dão com as escolas

Da escola de música à música que nos dão com as escolas


O mesmo Rui Moreira que despeja uma escola indica outra como solução para um centro comercial que também está a tratar de despejar.

Estamos em outubro de 2017. O céu está coberto de cinza e fuligem. Pedrógão estava a arder, e todos os olhos estavam postos naquele território onde tantas vidas se perderam. Mais a norte, numa qualquer viela do Porto, nascia o sonho de um novo espaço libertado, onde se pudesse sacudir a cinza e a fuligem da vida na cidade.

Nascia A Travêssa na antiga Escola Básica José Gomes Ferreira, há anos abandonada e vazia de crianças, de gente, de sonhos. Em novembro de 2017 o Jornal MAPA dava conta dessa história, enredada em tantas outras, em tanto semelhantes.

Naquele espaço lia-se num estandarte, numa frase roubada às Aventuras de João sem Medo, do próprio José Gomes Ferreira, «É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir». Rui Moreira, que pouco se espanta com tudo o que não seja bem embrulhado num papel azul e branco e carimbado com essa «marca» que já tantos prémios terá ganho, e seus subalternos não deixaram sequer a poeira assentar.

Em menos de 72h, a Polícia de Segurança Pública e a Polícia Municipal restauraram o normal funcionamento das instituições, pela segurança de todos, não fossem esses doidos que andam espantados de existir acharem que aquele deveria ser um espaço devolvido à comunidade. Foram 21 pessoas que foram levadas em tranches para a esquadra da PSP do Heroísmo, acusadas nem elas sabiam muito bem do quê. Talvez de partirem as portas de entrada da escola?

Ou talvez essas portas tenham sido partidas por funcionários públicos paramilitares vestidos de kevlar da cabeça aos pés com uma marreta nas mãos? (que quem nunca quis partir a porta da escola à marretada atire a primeira pedra, mas ali não foram lançadas pedras, e nem sequer insultos). Talvez tenha sido a concretização de uma fantasia juvenil de Manuel Leitão, Chefe da Polícia Municipal há quase 30 anos, homem-forte de Rui Moreira e de Rui Rio antes dele? O homem à cabeça do despejo da Es.Col.A. da Fontinha, ele próprio a cabeça da instalação de um sistema de CCTV na cidade? Terá sido? Não ouso adivinhar.

O argumento era de que aquele espaço era arrendado ao Instituto Politécnico do Porto (IPP), que em última análise o transformaria numa alternativa à Fábrica, na Rua da Alegria. E como tal, a permanência da comunidade era um absoluto ultraje aos planos do IPP. Talvez valha a pena acrescentar que quem formalizou queixa contra as pessoas que estavam no espaço à data do despejo, alta funcionária do IPP… era também vereadora sem pelouro na CMP. Há que recompensar quem trabalha bem, certo?
Não é preciso recuar muito mais para lembrar uma outra escola, também essa abandonada durante anos pelos poderes locais e centrais, e que se transformou num espaço autogestionado durante um longo e intenso ano. Essa história termina em abril de 2012, e deixa a cidade mais vazia, mais fria, mais despida de si própria. A Es.Col.A. da Fontinha foi um momento incontornável da história da nossa cidade, não da cidade deles, e o seu despejo deixa até hoje um sabor amargo na boca de todos os portuenses que não se revêem na marca do porto ponto.

As portas partidas pela PSP durante o despejo d’A Travêssa.

Open space em parque de estacionamento

Avancemos no tempo. Estamos em julho de 2023. O turismo retomou, a cidade está efervescente de vida plástica! Tudo de volta aos conformes da visão de Rui Moreira, autarca esse que queria instalar checkpoints à entrada da cidade durante o primeiro confinamento criado para contenção da pandemia de Covid-19. O caso «Selminho» incomodou-o menos do que os autocolantes que cada duas por três reaparecem nos postes de luz da cidade, que ousam dizer «Morto.» em vez de «Porto.». Que devassa essa à cidade e sua marca.

O Porto amanhece com uma mensagem alarmante: o Centro Comercial Stop (CC Stop) está a ser despejado, sem qualquer pré-aviso às pessoas que o ocupam. Mas não era bem, bem o CC Stop que estava a ser despejado…

Era uma morte há muito anunciada, mas sempre protelada. De alguma forma, o CC Stop conseguia permanecer num marasmo cinzento de legalidade. Naquela manhã, os músicos e lojistas e restante Porto perdem acesso a este espaço autocriado e em grande parte autogestionado. Foram vedadas 105 das 126 lojas ocupadas por músicos, lojistas, estúdios de gravação e ateliers de arte.

À cabeça do ocorrido, surpreendam-se as madames, Manuel Leitão, perpetuamente de rosto sereno e meio sorriso nos lábios. «As lojas não têm licença para operar», argumentava-se. «Mas que licenças são precisas?», perguntava-se. Silêncio, ouvia-se.

Alguns dos músicos conseguiram, ainda no próprio dia, recuperar o equipamento que mantinham nessas lojas convertidas em estúdios de música e salas de ensaio. Outros, nem por isso. Alguns optaram por deixar algum equipamento para trás, sabendo que lhe iam perder acesso até enviarem um pedido por escrito à PSP para levantamento desse mesmo equipamento.

Nos gabinetes da autarquia, entre sorrisos amarelos e operações de charme na cidade, Rui Moreira dizia que «os músicos não foram avisados do dia em que a operação iria ocorrer já que a ação da Polícia Municipal não passa pelo autarca, que diz também não ter sido avisado». E é na face de uma revolta popular que nem Rui Moreira nem o seu subalterno Ricardo Valente, atual vereador da Economia da Câmara Municipal do Porto e Administrador da Porto Vivo SRU, esperavam encontrar que começam a surgir alternativas e hipóteses, de forma tão incrivelmente benevolente.

A primeira hipótese, já antes apresentada à comunidade Stop e peremptoriamente rejeitada, era «um open space nos dois últimos pisos do Silo Auto». Para contexto, para quem não esteja familiarizado com a história, o Stop é há vários anos uma pedra no sapato de verniz de Rui Moreira. Ora que é insalubre, ora que não tem condições, ora que há queixas de ruído. Só que, até aquele dia de julho, ainda não tinham descoberto como deixar cair o machado que há tanto tempo faziam pairar sobre o pescoço do Stop.

Mas, para salvar a face, claro, a autarquia acabava por sugerir uma alternativa absolutamente viável para os músicos do Stop saírem daquele espaço que tanto incómodo causa. Um parque de estacionamento, em espiral, em cimento. Tiremos um momento para pensar em dezenas de bandas, dos mais variados géneros, a ensaiarem lado a lado, num open space de cimento, em simultâneo. É de aquecer o mais gélido dos corações, e furar o mais resistente dos tímpanos. Naturalmente, a resposta foi tão rápida como o processo de pensamento por trás da ideia: um rotundo não.

JulianoMattos

Fotografia de Juliano Mattos [Activismo em Foco]

Onde há fumo, há especulação

Começam a surgir burburinhos. Teorias da conspiração. Pontas soltas que se unem e talvez contem uma história um bocadinho mais negra do que aquilo que se esperava.

Bem atrás do CC Stop, existe o antigo Palácio da Ford. Este complexo industrial do séc. XX está há mais de 30 anos abandonado. Durante vários anos, aquele descampado aos socalcos servia de parque de estacionamento improvisado para os utilizadores do Stop. Nos idos de 2016 (ou 17, ou 18… pré-covid!), o espaço é comprado, e o acesso a esse terreno torna-se limitado. Há uma cancela, e um «securita». Pobre homem, pago para passar os dias dele a olhar para ontem e a impedir as pessoas de estacionarem num terreno onde não se passa rigorosamente nada.

Sensivelmente ao mesmo tempo, começam as assembleias gerais no Stop, porque há uma ameaça de encerramento iminente. É neste contexto que nasce a Associação Alma Stop, que teve um papel preponderante no que vem a acontecer em 2023. Nessa altura, surge outro «zum-zum» pelos corredores do Stop, desta feita acerca de Mário Ferreira, dono da Douro Azul.

Mário Ferreira, para além de CEO da Douro Azul, é também proprietário da Pluris Investments, que é a maior acionista da Media Capital. Basta uma leitura na diagonal da página da Wikipedia acerca dele para se perceber o monopólio que tem vindo a construir e a fortuna que tem vindo a acumular.

Os dois empresários, Rui Moreira e Mário Ferreira, trabalharam de forma próxima na Associação de Turismo do Porto e do Norte (ATP): «Em Setembro de 2017, a ATP anunciava, em comunicado, que nos novos corpos sociais para o triénio 2017/2019 o presidente da direção da ATP seria Rui Moreira, e na vice-presidência estaria Mário Ferreira, empresário do turismo, designadamente na atividade de cruzeiros no rio Douro, e Nuno Botelho, presidente da Associação Comercial do Porto» (fonte: publituris.pt).

É precisamente quando partilham a alta direção da ATP que surgem os rumores acerca do novo empreendimento de Mário Ferreira – urge esclarecer que isto se trata de especulação, e que prova nenhuma tenho para consolidar esta alegação. Diz-se que Mário Ferreira estará a comprar, ou tentar, uma série de propriedades e terrenos entre o Palácio do Freixo e o Stop. Não se sabe qual o projeto ou plano, mas certo e sabido é que um antigo centro comercial tornado pólo criativo autogestionado não encaixa nesse projeto ou plano.

Eis que chegamos a julho de 2023. Descobre-se um projeto arquitetónico, imobiliário, turístico, que foi aprovado para o espaço do Palácio Ford. Uma dupla de arquitetos vence o concurso promovido pela empresa detentora do espaço, também proprietária do hotel Eurostars, a paredes-meias com o Stop.

A 21 de julho, lê-se no Expresso que em julho do ano passado, a IME – Imóveis e Empreendimentos Hoteleiros promoveu um Concurso de Conceção em parceria com a Ordem dos Arquitetos – Secção Regional do Norte, que permitisse «fazer uma reflexão sobre o melhor enquadramento conceptual para um eventual futuro investimento naquela área»”. Vulgo: habitação, turismo, comércio. Mas habitação de tipologia T0 e T1, naturalmente.

Juram a autarquia e a administração que não há qualquer projeto de hotel para o espaço que o Stop ocupa. Mas facto é que está cada vez mais cercado pelas garras da especulação.

Na sequência do despejo, houve uma enorme e emocionante mobilização popular.

Quem não se espante…

Voltemos então ao momento do despejo, às sugestões, e às negociações.

Vedadas 105 das 126 lojas do Stop, eis que o gabinete de Rui Moreira apresenta nova ideia, após a rocambolesca sugestão do open space no Silo Auto: a Escola Básica Pires de Lima.

Noticiava o JN que «de acordo com Rui Moreira, a transformação das salas de aula em salas de música “é relativamente fácil”. A escola é da Câmara e “não vai ser necessária para a educação”, podendo ficar disponível em setembro. O edifício é composto por “seis unidades completamente autónomas” e os custos da adaptação serão assumidos pela autarquia».

Quanta boa vontade!

A Escola Pires de Lima chegou a acolher 1500 alunos, e já em 2018 tinha sido desativada por falta de condições para os estudantes. Nas caixas de comentários das redes sociais, liam-se relatos de ex-estudantes da Pires de Lima, que davam conta que «já quando lá estudei chovia nas salas». Parece uma ideia de génio, colocar equipamento elétrico e eletrónico de milhares de euros em salas que não eram adequadas ao ensino básico, e esperar que tudo corra bem.

Curioso é pensar que, anos antes, um grupo quis devolver uma escola há muito fechada à comunidade, fazer uso daquele espaço, transformá-lo num espaço autogestionado, e esse mesmo grupo só não «sentou o cu no mocho» 1 porque a modos que se intrometeu uma pandemia global. Grupo esse que entrou na escola pacificamente, e saiu da escola a calcar vidro partido porque o conceito de uma maçaneta numa porta de alumínio destrancada era demasiado alucinante para os polícias encarregues de efetivarem o despejo. E tão somente 6 anos depois, uma escola em condições semelhantes torna-se a alternativa mais viável – e que absurdo seria os músicos rejeitarem-na – para hospedar o Stop! Com as obras, pois claro, à custa da CMP.

Talvez os nomes de cada um desses espaços tenha tido alguma influência nas decisões do edil. Afinal, deixar José Gomes Ferreira, um desalinhado e provocador com tendências revolucionárias, albergar um grupo de okupas com preocupações e atitudes semelhantes às suas era uma impossibilidade. Já com Pires de Lima, pessoa que sempre se manteve ligado às instituições – à sua época fascistas –, a coisa era coerente à partida, com tudo bem assinado e combinado, numa gestão que fugiria para sempre das mãos de quem lá trabalhe.

Enfim… foram muitos avanços e recuos, mas a CMP acabou por ceder apenas parcialmente às exigências dos utilizadores do Stop e, apesar de ter sido recuperado o acesso às salas, foi-o apenas de forma parcial e condicionada. Ainda esta história não teve um desfecho, mas já muita música nos foi dada.

JulianoMattos

Fotografia de Juliano Mattos [Activismo em Foco]

Escolas para uns, bailes para outros

Então, em que ficamos? Não é precisa muita perspicácia para se perceber a ironia de toda esta conjuntura.
Em 2011, uma escola abandonada é transformada em espaço coletivo e autogestionado. É repetidamente despejada pela autarquia de Rui Rio, com Manuel Leitão à cabeça.

Em 2017, uma escola abandonada tenta transformar-se em espaço coletivo e autogestionado. Nem 72h depois, é despejada pela autarquia de Rui Moreira, com Manuel Leitão à cabeça.

Em 2023, uma escola abandonada é proposta pela própria autarquia como solução para espaço coletivo e autogestionado, após um despejo de que a autarquia de Rui Moreira «não tinha como saber», com Manuel Leitão à cabeça.

Na sequência do despejo, houve uma enorme e emocionante mobilização popular. Não foram só os músicos, os lojistas, e os amigos que saíram à rua pela defesa do Stop. Nas varandas, viam-se os vizinhos do Stop aplaudir e eles próprios tocar instrumentos. A cidade cobriu-se de panos e plásticos onde se lia «Stop». Renasce o «Morto.» que tanto incómodo causou a Rui Moreira no seu advento.

Os músicos rejeitaram a proposta da Escola Pires de Lima como alternativa ao Stop. É no Stop que querem ficar e que querem manter os seus projetos e a sua comunidade.

Resta saber se e quando é que surgirá uma comandita de polícias vestidos de kevlar da cabeça aos pés para partirem os vidros de uma porta de alumínio que em nenhum momento esteve trancada.

 


Texto de  Leonardo Aguiar

Notas:

  1. assentar o cu no mocho, Responder como réu em tribunal

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