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Lendo: Contra os gigantes da energia, auto-defesa e auto-organização eco-feminista

Contra os gigantes da energia, auto-defesa e auto-organização eco-feminista

Contra os gigantes da energia, auto-defesa e auto-organização eco-feminista


Os governos neoliberais confiam a solução da crise energética aos mesmos senhores que a provocaram. As eco-feministas e defensoras da terra põem a nu as contradições de uma transição energética corporativa e desenvolvimentista que, se é que renova alguma coisa, é o conflito capital-vida.

Este artigo começou a ser escrito na semana em que entrou em vigor no Reino de Espanha o novo sistema de tarifas da luz, que obriga os e as cidadãs a usar electrodomésticos em horas de descanso se não quiserem que a sua factura dispare. O Governo defendeu esta mudança como chave para fomentar a poupança energética, a eficiência, o auto-consumo e o desenvolvimento dos veículos eléctricos. Isto é, responsabiliza as e os pequenos consumidores por tudo isso em vez das grandes empresas. A jornalista Maria Ángeles Fenández critica numa análise na revista Pikara a falta de perspectiva de género na medida: «A nova facturação vai afectar o trabalho doméstico e de cuidados, em muitos casos alargando as jornadas [de trabalho] já por si infinitas».

Questionada sobre este assunto numa entrevista radiofónica, a vice-presidenta Carmen Calvo saiu-se com feminismo descafeinado: «A grande questão não é quando se põe a máquina a lavar mas sim quem a põe». A grande questão é que a maioria das pessoas que convivem com a pobreza energética são mulheres. Como Rosa, a idosa viúva de Reus que morreu num incêndio porque iluminava a sua casa com velas desde que a empresa Gás Natural Fenosa (hoje Naturgy) lhe cortou a luz por falta de pagamento. O Supremo Tribunal de Justiça da Catalunha, aliás, anulou a multa de 500.000 euros que a Generalitat [Governo da Catalunha] impôs à Naturgia, como denuncia a Aliança contra a Pobreza Energética. Não é por acaso que esta organização é liderada por mulheres, tal como o são as plataformas contra os despejos. Rosa é um dos rostos da pobreza energética; o outro é o de uma mulher migrante, dedicada ao trabalho doméstico (fora e dentro de sua casa), chefe de uma família monoparental. Às dores de cabeça pelos cortes de energia, pelas temperaturas inadequadas e pelas dívidas, soma-se agora um fardo mental ainda maior.

Encontramos o reverso dessa vulnerabilidade interseccional nos conselhos de administração das multinacionais da energia: os homens acumulam cerca de 85 por cento dos postos directivos na Repsol, Endesa, Naturgy e Red Eléctrica de España. No sector da energia eólica, os números superam os 90 por cento.

Eco-feminismo contra o greenwashing

Estes senhores burgueses, brancos, com esposa e/ou empregada doméstica para pôr a sua roupa a lavar, são os que mais contribuem para o aquecimento global. As empresas mencionadas (assim como a EDP, a Cepsa ou a Iberdrola) figuram na lista das dez empresas espanholas mais poluentes, segundo La Marea. E, no entanto, numa jogada de mestre, as mesmas grandes corporações responsáveis pela emergência climática são as grandes beneficiárias das avultadas quantias de dinheiros públicos para a transição energética, como aquelas que estão reservadas nos fundos europeus Next Generation. As cooperativas de energia da economia social não podem competir nesses concursos ao lado de empresas transnacionais que apresentam megaprojectos ligados ao hidrogénio, a parques eólicos e fotovoltaicos, ao AVE [comboio de alta velocidade], às gigafábricas de baterias, à digitalização da agricultura e à mobilidade inteligente.

As portas giratórias também têm muito a ver com esta dinâmica perversa. A Repsol, a empresa mais poluente da Catalunha, com uma superfície de exploração de petróleo e gás que abarca 31 estados do Norte e do Sul global, pretende agora liderar a transição energética a nível mundial. Um dos seus homens de referência, Jaume Giró, é o novo conselheiro de Economia da Generalitat.

No passado dia 8 de março, a coordenadora feminista da Catalunha criticava esse «gigantesco e descarado financiamento das elites económicas com dinheiros públicos». Na secção do seu manifesto dedicada ao eco-feminismo, ela atribuía a emergência climática «à invisibilidade e desvalorização dos processos de sustentação da vida e dos ciclos naturais da Terra». Também denunciava que o extractivismo das empresas transnacionais «criminaliza os protestos e mata, além de acelerar os fenómenos climáticos extremos, com a consequente expulsão de aldeias inteiras, provocando processos migratórios e a propagação de doenças climáticas e disseminando a pobreza energética». E reivindicava «um decrescimento económico, uma transição eco-social e uma cultura regeneradora e feminista que recupere as soberanias através de uma gestão pública e comunitária que garanta o acesso universal aos serviços básicos, como a água e a energia».

Tica Moreno, membro da organização feminista brasileira Sempreviva e da Marcha Mundial das Mulheres, defende essa transição energética popular em contraposição ao modelo corporativo e desenvolvimentista que «acentua aquilo a que chamamos o conflito capital-vida». Eco-feministas como Yayo Herrero respondem às promessas dos senhores da energia com um banho de realidade: se não se aceita a necessidade de decrescer, de partilhar riqueza e de velar pela sustentabilidade da vida, assistiremos ao aprofundamento das violações dos direitos humanos.

A promoção das renováveis em grande escala renova as injustiças sociais e ambientais que se traduzem em violências específicas contra as mulheres.

Defensoras do território

Duzentas e doze defensoras do território foram assassinadas só em 2019. Jessenia Villamil, do CENSAT – Água Viva Colômbia, destaca que os impactos do extractivismo são ambientais, mas também sociais e políticos, incluindo a violência de grupos armados que defendem os megaprojectos. Ela também põe a nu a perversão deste colonialismo do século 21: «Paradoxalmente, muitos países europeus estão a fazer a transição para outras formas de produção de energia ao mesmo tempo que as suas empresas continuam a explorar e a promover as exportações de carvão no Sul global».

A promoção das renováveis em grande escala renova as injustiças sociais e ambientais que se traduzem em violências específicas contra as mulheres. Patricia Gualinga, defensora do povo Sarayaku do Equador (entrevistada nesta mesma edição da revista Soberanía Alimentaria), conta que as frotas de canoeiros que saqueiam a madeira de balsa que é exportada para a construção das pás das turbinas eólicas introduziram o álcool nas comunidades indígenas e que há mulheres que estão a ser «tomadas literalmente como esposas» por balseros que mais tarde as abandonam.

Espoliação de recursos naturais, contaminação de aquíferos, apropriação de terras agrícolas, deslocamento forçado das populações… Viajamos com estas palavras aos povos indígenas em luta em Abya Yala, mas as mesmas queixas também ocorrem nos nossos próprios territórios. A Galiza, que já resistia aos projectos de mineração a céu aberto, é a segunda comunidade autónoma do Reino de Espanha na produção de energia eólica, segundo Isabel Vilalba, do Sindicato Labrego Galego.

No seu discurso contra o «consumismo feroz de energia» e pelos direitos do campesinato, ressoa o discurso de defensoras latino-americanas como Bettina Cruz, de Oaxaca, intimidada e hostilizada pela sua oposição às empresas eólicas no Istmo de Tehuantepec. «Centenas de projectos ameaçam os nossos territórios, os nossos rios, as nossas florestas, enfim, as nossas vidas”, exclama a galega. Esses gigantes, cujas placas e baterias demandam enormes quantidades de materiais da indústria extractiva de minérios, invadem reservas da biosfera e erigem-se a escassos metros das residências, sem trazer qualquer retorno social. «O que acontecerá com estes parques eólicos após os 25 anos de vida útil que têm?”, questiona.

Víctor Rivas

Especulação e abortos

«Esta noite fechar bem as janelas; até os painéis indicam má qualidade do ar em Muskiz », alerta a plataforma Meatzaldea Bizirik (Zona Mineira Viva) no Twitter. Muskiz é o município da Biscaia onde se encontra a refinaria da Petronor, a maior empresa da província e filial basca da Repsol. Este colectivo continua a lutar pelo desmantelamento da refinaria de coque construída em terrenos do domínio público marítimo-terrestre. Entretanto, a petrolífera juntou-se ao greenwashing: juntamente com o Governo Basco, lidera o consórcio do Corredor Basco de Hidrogénio, um megaprojecto que representa a maior rubrica (220 milhões) das iniciativas submetidas aos fundos Next Generation pelo País Basco. Vozes críticas lembram que a maior parte do investimento irá para investigação e protótipos, sem garantias de que essa promessa de futuro se concretize. A eco-feminista Yayo Herrero compara esses processos com as dinâmicas da especulação urbana. Ela refere-se ao extractivismo de minérios como o lítio: «Basta que um terreno rústico seja definido como terreno de extracção para que os valores e os activos das empresas proprietárias desses territórios cresçam enormemente».

Também não é por acaso que Meatzaldea Bizirik é liderada por mulheres. Uma das suas porta-vozes, Sara Ibáñez, atribui isso à estratégia da Petronor de contratar miúdos da região para desactivar as mobilizações. Esta médica obstetra aposentada conta ao El Salto que o gatilho para a sua consciência ecologista foi o seu segundo aborto espontâneo. Era o ano de 1992 e a parteira avisou-a que todas as mulheres que estavam grávidas na região estavam a abortar. «Depois de trinta e cinco anos a acompanhar a saúde das mulheres da região, sempre tive a impressão, incluindo os dados, que temos mais problemas de saúde, tanto na gravidez como na saúde ginecológica e piores resultados no peso dos recém-nascidos», afirma.

A sua narrativa lembra a das Mães de Ituzaingó (Córdoba, Argentina) que enfrentaram o Estado e muitos homens da sua comunidade ao denunciarem os impactos na saúde de multinacionais agrícolas pelo uso de glifosato nos campos de soja.

Se um pé da agenda eco-feminista face ao extractivismo energético está na auto-defesa, o outro está na auto-organização.

Da auto-defesa à auto-organização

Se um pé da agenda eco-feminista face ao extractivismo energético está na auto-defesa, o outro está na auto-organização. Em 2018, o Governo de Mariano Rajoy nomeou 14 especialistas para formar uma comissão para a transição energética. Todos eles eram homens. Alguns assinaram a campanha «En energía, ¡no sin mujeres!» (Energia, sem mulheres não!), lançada pelas profissionais e activistas do sector, inspiradas em campanhas semelhantes no meio académico e cultural. Em 2020, os grupos parlamentares incluíram apenas duas mulheres entre 15 especialistas nomeados para uma nova comissão no Congresso dos Deputados.

Arantxa García assinala numa reportagem incluída na monografia “Energias”, da revista Pikara, que o desenvolvimento das energias renováveis como soluções-milagre tecnológicas está masculinizado, enquanto que as mulheres estão mais presentes na investigação e desenvolvimento sobre adaptação às alterações climáticas, uma linha da trabalho que recebe menos atenção e dotação económica. «Podemos ter um planeta onde haja emissões zero e onde não haja vida”, diz Vanessa Álvarez, da Rede Eco-feminista, nessa reportagem. Esta activista eco-feminista escreveu em El Salto que nós, mulheres, «aparecemos como vítimas do sistema ou beneficiárias dos apoios sociais, mas nunca como agentes de transformação, como pessoas emancipadas e autónomas que têm muito a dizer e a contribuir”.

Precisamente em 2018, 150 cidadãs emancipadas e autónomas fundaram em Bilbao a Rede de Mulheres por uma Transição Energética Eco-feminista para dar visibilidade e denunciar a sua exclusão das esferas de poder do sector energético. Outro dos seus objectivos é dar a conhecer as análises com perspectiva de género dos impactos do actual modelo energético, que definem como machista e obsoleto.

Esta rede tem promovido «revoluções silenciosas e solidárias», como descreve Rocío Nogales Muriel (também em El Salto) o projecto de instalação de painéis fotovoltaicos lançado no ano passado num parque industrial de Madrid pelas cooperativas Xenergía e La Corriente. «Aprendemos sobre as fases de execução de uma instalação solar: desde o fornecimento de materiais ao layout da instalação, culminando na montagem da estrutura, dos painéis, do inversor, do traçado dos cabos eléctricos e suas ligações», conta. O seu artigo contrasta com as manchetes dos media neoliberais sobre a Repsol querer competir no sector do auto-consumo com painéis solares.

Estas cooperativas energéticas cumprem a dupla função de pressionar os governos para que promovam mudanças estruturais e de experimentar uma gestão colectiva e democrática, valoriza Yayo Herrero: «É crucial, simplesmente para poder ter garantias de sobrevivência digna, por um lado, para nos activarmos, organizarmo-nos, resistirmos e confrontarmos e, por outro lado, para construir alternativas sem esperar que nos dêem permissão para fazê-lo».

Nota: Para escrever esta análise, bebi de duas fontes valiosas (além dos artigos da revista Pikara, La Marea, El Salto e ARGIA): a monografia Energías, editada pela Pikara com o apoio da cooperativa Goiener e as jornadas «Uma visão crítica da transição energética», organizadas pela Revista Soberanía Alimentaria.

June Fernández


Texto de  June Fernández, originalmente publicado na Revista Soberanía Alimentaria, Biodiversidad y Culturas nº41, Verão de 2021.
Ilustraçōes de  Víctor Rivas para a plataforma Eiquí Eólicos Non.
Tradução de  Sara Moreira.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #32, Outubro|Dezembro 2021.


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