
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Mercadorias de Marte, precipícios da Terra
Aqui é a posição partilhada – exposta a agressões velhas e novas – por todos nós neste ano de alto risco de 2022. Mesmo tomando em conta as variações nas coordenadas que cada um ocupa, o mais certo é todos estarmos expostos a altas doses de desinformação veiculada pelos dispositivos sociais, publicitários, tecnológicos e económicos que visam a nossa «anuência» à gestão dos acontecimentos, ao mesmo tempo que pretendem turvar a percepção do estádio a que a situação já chegou. A tudo isso, que até aqui possuía mais ou menos as cores da pax americana, podemos somar dois vectores de agressão relativamente novos: em primeiro lugar, a emergência de novos pólos de projecção de poder militar e industrial que se apresentam como forças «alternativas» na cena internacional, mas que se limitam a oferecer formas corruptas e pós-soviéticas do Estado autocrático e militarista, como na Rússia, ou o modelo do hiper-industrialismo neoconfuciano, como na China; em segundo, a entrada em cena – e que cena! – de novos actores cibernéticos e tecnológicos prestes a serem lançados numa sociedade «demasiado humana» que está a ser preparada para a «inevitabilidade» daqueles. Este cenário adquire toda a sua amplitude quando tomamos em conta a avançada destruição do meio ambiente e da biosfera, de que a mudança climática é hoje o grande acelerador, mas não o único actor. É a essa amplitude que dedicamos esta reflexão.
«Aceleração» é uma palavra-chave. Aceleração de tudo, entendida como incremento exponencial da velocidade das transformações antropogénicas do sistema-Terra, que se ramificam e se implantam em todos os sistemas ambientais à nossa volta, adquirindo processos autónomos e interligados cada vez mais significativos. Mas essa implantação não é apenas a que se dá nos sistemas físicos naturais. Toda a vida política, tecnocientífica, económica e cultural penetra e mistura-se com esta aceleração sistémica e paradoxal. Também todos os indicadores de extracção de matérias naturais, do reino mineral ao reino animal, crescem exponencialmente e produzem híbridos cuja existência se dá muito para além dos limiares da sustentabilidade. Tudo o que hoje é certificado como «sustentável» é, na verdade, manifestação de uma produção imaginária já exterior aos limites planetários, como se as nossas fábricas já estivessem em Marte e pudessem alimentar a circulação de mercadorias aqui na Terra. Todos os indicadores industriais, congregando as culturas intensivas dos campos e do mar, a rentabilização das bioengenharias, a «betonização» dos territórios, a «penetração» do mundo pelo incremento das velocidades, a virtualização promovida pela expansão das redes telemáticas, crescem de forma quase síncrona a partir de um pressuposto exoplanetário. Ao mesmo tempo, acelera-se a integração das mediações tecnológicas, operem elas na comunicação, na medicina, na educação e na cultura, nas práticas sociais, de forma a que qualquer existência fora desses dispositivos seja considerada como um risco, uma prática criminosa ou, literalmente, impossível. Apesar de todo esse aparato, neste e nos próximos anos, é já visível o modo como, de forma cada vez mais evidente, toda e qualquer fuga em frente pode sempre ser ultrapassada pelo carácter abrupto das transformações climáticas.
Num mundo em aceleração, multiplicam-se aquelas situações a que os media chamam «crises». Nesta novilíngua (Orwell) da era neoclimática, a crise é sempre entendida como uma disfunção temporária que ocorra em algum processo. Em última análise, a crise-padrão é aquela do ciclo económico e financeiro, onde a crise é reorientada como uma «destruição criadora» que acaba por relançar com pujança novas estruturas socioeconómicas. Foi esse o modelo seguido na Segunda Guerra Mundial: a destruição da velha Europa permitiu lançar as bases do capitalismo global, num período em que a retaguarda industrial se encontrava abrigada no continente americano ou no oriente russo. Setenta anos depois, é a destruição ecológica que é vista como a oportunidade para um novo ciclo, ciclo de destruição e criação. Enquanto a produtividade do sistema não enfrentava limites físicos aparentes e se mantinha alta, a guerra constante era remetida para zonas geográficas nas margens dos centros industriais. Foi o que alimentou a ilusão da secundarização da violência militar, confinada a certas áreas ricas em matérias-primas e fontes energéticas primárias. Acontece, contudo, que as lógicas de destruição criadora nunca põem de parte qualquer recurso, voltando a tirá-lo dos seus arsenais estratégicos mal se apresenta uma oportunidade para o seu uso. Essa oportunidade foi agora rebaptizada sob a designação inócua de «alterações climáticas» (preferimos falar de «mudança climática»), mas que devem ser vistas, para além do seu aspecto climático, como um agregado de fenómenos. É assim que vastos territórios que haviam sido desindustrializados voltam a permitir-se pensamentos de guerra.
A mudança climática é tudo menos um mero acidente natural. Ela decorre inteiramente da lógica de dominação do planeta, que tem uma história multi-secular. Como o planeta é, no essencial, um sistema dinâmico cujas modificações se dão, salvo catástrofe, num tempo longo, processos aos quais todos os seres vivos, incluindo os humanos, se foram adaptando, torna-se evidente que a introdução de modificações antropogénicas transportadas pelo factor decisivo da aceleração retira à generalidade dos seres vivos qualquer hipótese de adaptação. Por essa razão, sempre que deparamos com algum discurso sobre a necessidade de adaptação à mudança climática, podemos estar certos de que o conceito é aí reorientado para o domínio da adaptação tecnológica e biotecnológica. O que está em questão é a transformação genética e a deslocação, em virtude das dinâmicas climáticas, das espécies, uma engenharia do vivo a céu aberto, que privilegia os vertebrados humanos e algumas espécies animais e vegetais ditas «úteis» ou esteticamente eleitas. É fundamental compreender que quase tudo o que se passa na «resposta» das sociedades dominantes à mudança climática decorre do conhecimento de que só a tecnologia pode, potencialmente, ser um agente tão veloz quanto as transformações ambientais e climáticas que se avizinham. Esse é, no essencial, um sistema de crença baseado nos processos instalados pela sociedade industrial e na sua potenciação. Mas é também um conto do poder, uma vez que o sistema-Terra e o sistema tecnocientífico entram aqui numa competição inédita.
Este conhecimento da inviabilidade de uma adaptação «natural» à mudança climática, que se tornará mais e mais evidente já nesta década, leva-nos a interrogar o que se está a passar no espaço público das nossas sociedades ou, mais particularmente, nas grandes reuniões político-científicas, como as Conferências das Partes (COPs) sobre as Alterações Climáticas, instituídas pelas Nações Unidas. Estes rituais de salvação do mundo tiveram o seu ponto alto na COP de Paris, em 2015. A partir daí, passou a existir um acordo (não-vinculativo) que enunciava objectivos quantificados, quer em graus celsius, quer na quantificação de emissões. É evidente que já aí se tornava notória a vontade de dotar o planeta de um termóstato. Qualquer observador objectivo pode verificar que esses acordos climáticos transportam, em si mesmos, uma contradição fatal: quem negoceia e subscreve esses documentos são os mesmos Estados que se esforçam por expandir e acelerar as causas directas e indirectas da mudança climática. Uma análise superficial bastará para que se verifique que os esforços de descarbonização são ainda, e assim permanecerão, residuais, face aos esforços de carbonização que decorrem numa espécie de mundo paralelo, mas igualmente real.
A questão da energia é, a este propósito, sintomática. Inúmeros agentes políticos e empresariais promovem as energias renováveis recorrendo-se de um discurso que só pode ser caracterizado como publicitário. Mas fazem-no com base no falso pressuposto de que a energia a que se recorre é sempre neutra e não determina, para além desta ou daquela forma de poluição, a sociedade e o mundo em que vivemos. Apresentadas como substitutas das energias carbónicas, é fácil verificar que as energias renováveis são e permanecerão recursos que estão limitados, pela sua natureza, a um papel de complemento das três grandes fontes energéticas que impulsionaram a sociedade do crescimento: o carvão, o petróleo e o gás. Pura e simplesmente, são estas as fontes energéticas que moldaram, e ainda definem, os nossos regimes económicos e sociopolíticos desde o dealbar da Revolução Industrial, cujo necessário enterro ninguém parece ter a ousadia de enunciar. Um dos problemas que mais prejudica a nossa reflexão sobre estas questões é a ignorância, que atravessa o espectro político, sobre a natureza da energia no mundo real. Ora, o que a energia vale é sempre expresso pela sua tradução em trabalho que as máquinas podem realizar versus o trabalho realizado por humanos e animais. A expansão das fileiras de escravos mecânicos e electrónicos condiciona hoje quase todas as escolhas sociais. Tudo o resto passou a ser decorativo. Se ainda queremos salvar o nosso habitat, é suicida continuarmos sentados no topo da pirâmide energética do industrialismo (ver esquema): torna-se evidente que uma sociedade fundada em energias renováveis de proximidade é uma sociedade onde o trabalho humano e animal necessita de readquirir o seu papel social, coexistindo com máquinas muito menos potentes e complexas que já não sejam os produtos de centros fabris mais ligados aos circuitos globais do que às necessidades locais.
O ilusionismo em torno da energia é, hoje, uma das práticas político-tecnológicas de que os diversos regimes não podem abrir mão; mas ela adquire o seu grau mais extremo na Europa comunitária, onde a fantasia da sociedade rica 100% descarbonizada vai de vento em popa. A agravar esse estado de coisas, muitos daqueles que protestam contra a inacção dos Estados padecem da mesma cegueira energética quando se limitam a denunciar os subsídios canalizados para as empresas de prospecção e extracção de petróleo e gás. Esses subsídios sustentam um modelo que não vemos ser objecto de idêntica contestação pelos mesmos. Daí que o pior erro dos movimentos pelo clima seja a sua exposição aos green new deals, alianças de conveniência entre o sindicalismo industrialista e a ideologia do capitalismo smart, que corroem uma causa decisiva. Por outro lado, movimentos importantes como o Extinction Rebellion ou a Greve Climática parecem ter atingido o tecto da sua capacidade de influência sobre as opções das sociedades onde estão activos, em grande parte porque não se mostram dispostos a aprofundar as suas práticas de desobediência civil, dando o passo que vai da petição dirigida aos poderes à disrupção dos mesmos.
Embora a mudança climática mostre até à evidência que não há regiões descarbonizadas versus regiões «poluentes», as metas dos 1,5ºC ou 2ºC (eloquente indecisão) inscritas no acordo de Paris são, no século XXI, o equivalente da ilusão da «Guerra que acabará com todas as guerras» no século XX. Ou seja, tudo indica que se repetirá o padrão da guerra depois da última das guerras: depois da competição em sede onusiana visando demonstrar quem cumpre as «metas» (que, no fim de contas, estão em vias de ser ultrapassadas) e é capaz de salvar, ao mesmo tempo, a sociedade industrial, explodirão os conflitos pelos recursos, os nacionalismos obcecados com o seu estatuto de potências regionais, a guerra aos migrantes, a imposição de aquisições regionais recorrendo a armas nucleares tácticas, etc. Perante tudo isso, necessitaríamos de reavivar imediatamente uma consciência antimilitarista, absolutamente necessária à consciência ambiental e climática.
Se ainda queremos salvar o nosso habitat, é suicida continuarmos sentados no topo da pirâmide energética do industrialismo
Entretanto, já não basta dizer que a mudança climática é real, uma afirmação que nos colocou em confronto com forças que tudo fizeram para poderem continuar a explorar, nas últimas décadas, o actual sistema de dominação do planeta e dos seus seres vivos. Dada a dinâmica própria dos acontecimentos, essa concepção de um processo real que podemos isolar de maneira científica, ou que podemos transformar em mais um tópico noticioso, fez-se fonte de uma estranha anomia a que chamaremos a normalização do visível climático. A percepção da mudança climática torna-se, de dia para dia, o transe de um terror espoletado por certas imagens canónicas desta. Espectacularizada como furacão, cheia, onda de calor, incêndio, a agregação e potenciação dos fenómenos decisivos nos quais convergem todas as circunstâncias climáticas pode assim ser activamente dissimulada. Depois do negacionismo, entramos na fase em que se dá a ver o espectáculo das alterações climáticas a fim de melhor as instituir como matéria destinada aos poderes demiúrgicos dos Estados e da tecnociência. Desse modo, escapam ao observador todas as interligações entre sociedade e atmosfera, quotidiano e vida não-humana, tecnologia e sobrevivência. Trata-se de operar pela dissimulação do indissimulável, assim transformando toda a matéria do mundo num líquido fluído e incaracterizável.
A produção académica e mediática de material sobre a mudança climática, os relatórios de milhares de páginas do IPCC (Painel Intergovernamental das Alterações Climáticas), muitas vezes de elevado nível científico, não são o equivalente, per se, da partilha da verdade no que diz respeito à viabilidade das nossas sociedades e mesmo à nossa sobrevivência. O que se passa no sistema comunicacional – e nele incluímos tanto os self media como os media tradicionais – tem provado ser uma constelação de representações que, mesmo quando aponta factos, se integra quase sempre num sistema mais vasto de produção de ilusões. Por que razão as dinâmicas fundamentais da mudança climática – como o aquecimento já potenciado no clima global, os efeitos reais dos colapsos das grandes correntes marítimas e atmosféricas, a iminência de um Ártico sem gelo no Verão, os impactos desastrosos nas principais culturas agrícolas, etc. – não são objecto de imediata e urgente discussão pública, mas aparecem antes como representações melancólicas de alguma inevitabilidade cósmica? Por que motivo o sistema comunicacional vai acenando com a iminência de tecnologias milagrosas de descarbonização, de espelhamento da radiação solar ou novas fontes energéticas infinitas e, em todos os sentidos, gratuitas? Entretanto, o único beneficiário parece ser o lobby nuclear, agora renascido das cinzas. A COP de Glasgow foi, em 2021, mais uma «última oportunidade» que se revelará eminentemente real. Mas antes disso, ela foi a confirmação do colapso do Acordo de Paris, armadilhado pelo «mercado do carbono» e pelas «oportunidades de crescimento» que a pacificação das relações entre economia e política prenunciavam.
A nossa posição comum não é boa e não parece vir a melhorar a muito breve prazo. Nessa altura, as nossas cidades começarão a ser colocadas diante da escolha entre recorrerem a todas as formas possíveis de produção de alimentos e ao êxodo urbano ou enfrentarem a disrupção (e a violência) que se aproxima quando as cadeias de produção e distribuição de alimentos passarem por colapsos cada vez mais frequentes. Nada disso seria inevitável se não continuássemos a acreditar que as mercadorias nos vão chegar de Marte quando vier a hora da grande deslocalização climática. Quando nos dizemos que é preciso tratar da Terra e ao mesmo tempo embarcamos em foguetões cósmicos, acaba por ser a Terra a tratar de nós. Mas os novos promotores dos negócios climáticos, sugestionados por essas imagens có(s)micas, apregoam aos quatro ventos um «alinhamento do modelo de negócio com os factores de equilíbrio ambiental». O desaparecimento da única espécie capaz de erradicar toda a vida de um planeta merece esse alinhamento dos corpos celestes. E decerto, no fim de tudo, o riso do cosmos.
Fotografias da Greve Climática Estudantil de 2019.
Artigo publicado no JornalMapa, edição #33, Fevereiro|Abril 2022.
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