Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Perseguição aérea
Na noite de 23 de Abril de 2019, a festa do 46º aniversário do Partido Socialista foi brindada com aviões de papel que esvoaçaram pela sala. Lançavam-nos um grupo de jovens que mostravam uma faixa: «Mais aviões? Só a brincar! Precisamos dum plano B, não há planeta B». Francisco Pedro tentou tomar a palavra no palanque onde discursava António Costa, até ser violentamente retirado pelos atónitos seguranças do primeiro-ministro.
As imagens ficaram e deram visibilidade à denúncia ambientalista da expansão do aeroporto da Portela e do novo aeroporto do Montijo. Como refere em comunicado a ATERRA – Campanha pela redução do tráfego aéreo e por uma mobilidade justa e ecológica, de que Francisco Pedro faz parte: «pela primeira vez, os media ecoaram a contestação ao maior crime actual contra as nossas vidas e o nosso futuro».
No passado mês de Fevereiro, Francisco Pedro sentava-se no banco dos réus do Juízo Local Criminal de Lisboa sob a acusação de desobediência qualificada e perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. Por alturas do julgamento, o activista afirmou que «é graças a todas as pessoas que desobedeceram no passado que hoje temos o que chamamos direitos e felizmente são muitas as pessoas a defender a Terra e a não ficar de braços cruzados quando se assiste a crimes contra o planeta que a todos dá vida», assumindo a sua acção na totalidade.
No exterior do tribunal, as pessoas que se juntaram em apoio anunciaram a realização de um «julgamento sério» em que no «banco dos réus deste julgamento popular [se sentarão] a multinacional Vinci (detentora da ANA Aeroportos), os partidos que defendem os combustíveis fósseis e a aviação, as companhias aéreas, os meios de comunicação social mainstream e as grandes petrolíferas».
No interior, o que estava em causa era um crime – promover uma manifestação sem informar previamente a Câmara Municipal – punível com pena até dois anos de prisão ou de até 240 dias de multa, tendo o Ministério Público (MP) pedido a condenação através de multa nas suas alegações finais.
A juíza Sofia Claudino acabou por considerar não ter ficado provado que Francisco Pedro fosse o organizador do protesto. Para além disso, questionou a legitimidade de uma lei que data de 1974, anterior à própria Constituição, que consagra o direito à liberdade de expressão, reunião e manifestação. «Conforme pode constatar-se pela formulação do artigo 45.º da Constituição da República Portuguesa, não se mostra prevista a possibilidade de restrição daqueles direitos fundamentais, suscitando o referido Decreto -Lei n.º 406/74 dúvidas quanto à sua constitucionalidade», disse a juíza. «Os manifestantes pacíficos encontram-se no exercício de um direito fundamental», o aviso prévio à câmara municipal trata-se de «um mero requisito de ordem procedimental», e «uma manifestação não deve ser objecto de uma ordem de interrupção» pela falta de aviso prévio, ficou ainda dito na sentença de absolvição.
«Este processo não é para me intimidar a mim: é para nos intimidar a todas nós. É para nos dizer: “Só têm liberdade de expressão até ao ponto em que não incomodem os interesses instalados”»
No início de Abril, no último dia do prazo legal, o Ministério Público decidiu no entanto recorrer da decisão, alegando que houve uma «errada ponderação da prova». O MP ignora as testemunhas que não são polícias e cinge-se ao depoimento do então chefe da PSP, Paulo Santos (actualmente coordenador de investigação criminal em Ponta Delgada, nos Açores), que, quer em tribunal, quer no auto de notícia, identificou Francisco Pedro como promotor da manifestação e da acção de protesto.
“Quando completei a identificação, perguntei claramente aos três indivíduos quem era o organizador ou promotor da manifestação e o senhor Francisco deu um passo em frente e disse: “Sou eu o organizador”», testemunhou o agente em tribunal.
Para a juíza, essa assumpção de responsabilidade foi «uma manifestação da evidente proactividade do arguido que naquele momento entendeu dever assumir a responsabilidade pelos actos praticados num acto de alguma irreverência e, ao mesmo tempo, coragem». O Ministério Público não aceitou. Sérgio Figueiredo, advogado de defesa do activista, reagiu afirmando que as pretensas declarações do seu representado não têm validade legal, uma vez que teriam sido proferidas «num momento antes da sua constituição como arguido, antes de ter direitos enquanto arguido».
Francisco Pedro, por seu lado, continua a defender que a sua acção é «necessária para denunciar um crime grave, que continua em curso: o projecto de expansão do aeroporto de Lisboa». Continua também a considerar que esta insistência do Estado em condená-lo é uma forma de intimidação. «Este processo não é para me intimidar a mim: é para nos intimidar a todas nós. É para nos dizer: “Só têm liberdade de expressão até ao ponto em que não incomodem os interesses instalados”», afirma.
Para impor um segundo aeroporto, em pleno estuário do Tejo, parece valer tudo: afirmar à partida que o projecto será «irreversível» e que «não há plano B», mudar leis, inquinar estudos ambientais, andar com aprovações e reprovações para a frente e para trás. E perseguir activistas.
Intimidar defensoras de direitos humanos e da Terra através de processos legais é, aliás, uma prática comum por parte de grandes empresas, conhecida em inglês por SLAPP. São acusações legal e moralmente descabidas – o objectivo da empresa nem é vencer o caso, mas silenciar a crítica, mantendo as activistas de mãos atadas enquanto se arrasta o processo. No caso português, o Estado faz as vezes da empresa privada.
A 22 de Julho, a ATERRA lançava um novo comunicado, anunciando que o Tribunal da Relação de Lisboa invertera a decisão de Fevereiro do Juízo Local Criminal de Lisboa, pelo que Francisco Pedro passou de «ilibado» a «culpado», uma vez que o Tribunal considera agora provados os factos referentes à organização do protesto.
«Com este acórdão da Relação (…), o processo terá de regressar à primeira instância, para novo julgamento. É mais um capítulo de uma perseguição legal e um esbanjar de recursos públicos que dura há mais de três anos», lê-se no comunicado da ATERRA, que apela ainda à mobilização perante «o grande crime»: «As intenções do governo português e da concessionária dos Aeroportos de Portugal, a multinacional Vinci, devem ser travadas, por ameaçarem o equilíbrio climático e os ecossistemas de todas nós em nome do lucro de alguns. As pessoas, como o Francisco, que denunciam o ecocídio, devem ser apoiadas.»
Artigo publicado no JornalMapa, edição #34, Maio|Julho 2022, atualizado com a decisão do Tribunal da Relação a 23 de julho.
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