Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: O lugar industrial em três andamentos – Notas sobre a região (pós)industrial de Setúbal
O início do século XXI parecia trazer consigo um duplo fim do lugar industrial no mundo ocidental. Por um lado, vivia-se um processo já bastante avançado de desindustrialização em que a economia dos serviços se apresentava como o novo futuro da economia global. Por outro, no campo das ciências sociais e humanas, a questão industrial foi perdendo fulgor com a narrativa do desaparecimento da classe trabalhadora tradicional.
Contudo, contrariando essa profecia autorrealizada, a questão industrial – seja no que diz respeito ao papel social e político dos operários, seja nas constantes propostas de reindustrialização – continua a funcionar como um espectro que paira sobre o mundo ocidental. Nesse sentido, também as ciências sociais e humanas não têm ficado indiferentes e tem sido notório o renascer de interesse em torno da problematização da fábrica enquanto lugar, mas também dos impactos da desindustrialização, apresentando, no entanto, perspetivas que vão além de um simples economicismo – a esse respeito será de referir grupos de investigação como Workplaces: Pasts and Presents ou Deindustrialization and the Politics of Our Time.
Nos próximos parágrafos, pretendo seguir essa linha de problematização tendo como ponto de partida a minha investigação de doutoramento, que tem como principal ambição contribuir para uma história cultural do trabalho na região de Setúbal na segunda metade do século XX.
Olhando para aquilo que pode ser considerado um triângulo metalúrgico formado pela Siderurgia Nacional, Lisnave e Setenave, gostaria de abordar brevemente o que se pode considerar «três andamentos» do lugar industrial nesta região e que nos permitem compreender, a partir da realidade específica do espaço fabril, as transformações que tiveram lugar na sociedade portuguesa de forma mais ampla.
O país que deixou de ser uma horta – O ciclo industrial dos anos 60
«Aço é progresso» 1.
Inaugurada em 1961, a Siderurgia Nacional (Seixal) representou não apenas um investimento económico de grandes proporções, mas também a vitória de um projeto modernizador que havia conhecido diversas propostas ao longo de um século e que não tinha tido a capacidade de vencer o paradigma rural que até então dominava. Como refere a historiadora Fernanda Rollo: «símbolo de modernidade, a indústria siderúrgica foi envolvida por uma espécie de auréola mística, modernizante, que sugeria a transcendência da avaliação da sua viabilidade económica» 2.
À instalação da Siderurgia Nacional seguiram-se outros investimentos importantes no sector metalúrgico, onde se destacam os estaleiros navais da Lisnave (Margueira) em 1967 e, já num período tardio, o estaleiro da Setenave (Setúbal) em 1974. A região de Setúbal tornou-se, assim, num território de grandes concentrações industriais com milhares de operários e assistiu a um crescimento populacional constante entre as décadas de 60 e 70, fruto da chegada de população rural que procurava melhores condições de vida.
No entanto, ainda que este projeto modernizador tivesse percorrido um longo caminho, a sua aplicação e a transformação do contexto económico global reduziram drasticamente o potencial deste ciclo industrial, acabando naquilo que o economista José Reis denomina como uma «originalidade inescapável». Segundo o mesmo: «houve um país que instalou um setor industrial moderno, pesado, com elevados volumes de capital fixo, e, ao mesmíssimo tempo, fez do trabalho a sua principal “mercadoria” de exportação. Essa indústria pesada (siderurgia, química, metalomecânica (…) e, mais tarde, construção e reparação naval) foi uma espécie de enclave num país que, na ausência de democracia política, não estabeleceu nem democracia económica, nem democracia social» 3.
Como veremos na última parte deste texto, as décadas de oitenta e noventa representaram o fim deste ciclo industrial.
O excesso de palavras – revolução e resistência
«(…) os operários são como as formigas: enquanto trabalham tocam uns nos outros, transmitem ideias com um simples olhar» 4.
Como diversos trabalhadores referiram em entrevista, o espaço da fábrica não era apenas um espaço produtivo – no sentido económico e técnico – mas, igualmente de aprendizagem política. Nesse campo, o plenário de trabalhadores era, certamente, o palco onde se conquistava a consciência e se avançava para a mobilização dos trabalhadores – «quando surge o anúncio mágico [de plenário], uma espécie de comichão percorre o estaleiro, coça-se, remexe-se, agita-se» 5.
Durante o período revolucionário e durante grande parte da década de oitenta, estes lugares industriais foram marcados pelo excesso de palavras no sentido proposto por Jacques Rancière – deslocação da posição legitimada de quem fala e reordenação da posição na hierarquia da função social do discurso 6. Plenários intensos, uma constante distribuição de comunicados, produção regular de imprensa partidária, piquetes de greve e múltiplas ações de solidariedade com operários de outras empresas e com cooperativas da reforma agrária.
Esta capacidade de desordenar a hierarquia social e política fez com que, ainda hoje, a memória social em torno deste passado permaneça em disputa, podendo dividir-se em dois campos – ainda que se corra o risco de um certo simplismo. Um primeiro campo, corresponde a uma memória que se tem conseguido impor de forma hegemónica. Esta tem-se focado sobretudo no período do PREC e nas formas de resistência mais intensas dos anos 80 como as greves e reproduzindo acusações de peso excessivo dos sindicatos e comissões de trabalhadores para justificar o atraso económico da região e culpabilizar as organizações dos trabalhadores pelo processo de desindustrialização.
Em sentido contrário, tem permanecido um campo assente sobretudo na narrativa da resistência. Aí essa capacidade de desordenação antecede, atravessa e vai bem além do período revolucionário. Será de salientar a greve de 1969 na Lisnave, o 12 de setembro de 1974, mas também datas dramáticas já num período de salários em atraso e despedimentos como a greve de 7 semanas iniciada em junho de 1983 e o sequestro do navio Doris que acabou com a invasão do estaleiro por parte da polícia.
«Reestruturação permanente da condição operária» – Os casos da Gestnave e da Solisform
«De facto, os Japoneses, encaram a empresa como uma parte de si mesmos» 7.
Como já havia referido, as décadas de 80 e 90 representaram uma constante tentativa de corte com o modelo inaugurado vinte anos antes. Para esse efeito, dois instrumentos foram decisivos: planos/programas de reestruturação e formação/reconversão profissional.
No caso da Siderurgia Nacional isso foi possível através da aprovação do Plano de Reestruturação da Siderurgia Nacional em 1985 e, após a entrada na CEE, com aplicação de fundos do RESIDER que visavam a recuperação de regiões siderúrgicas em declínio. Ao longo deste período decorreram várias vagas de despedimentos e em 1994 deu-se à cisão da empresa em quatro partes tendo, também, sido aprovado o processo de privatização.
No que diz respeito aos estaleiros da Lisnave e da Setenave, o processo é um pouco mais complexo devido à ligação quase umbilical. No entanto, é de salientar alguns momentos relevantes, como a concessão do estaleiro da Setenave à recém-criada Solisnor (constituída pela SOPONATA, Lisnave e um grupo norueguês) em 1989, seguindo-se a aprovação da privatização da Setenave em 1997. E, no caso da Lisnave, é de salientar a aprovação do plano de reestruturação da empresa (Plano Mello) em 1996 e o protocolo Estado-Lisnave em 1997.
Estes sucessivos planos de reestruturação permitiram o que o sociólogo Boaventura Sousa Santos chamou de decomposição da relação salarial, tendo o Estado assumido esta crise através de inovações legislativas tendentes a tornar mais precária a situação do emprego 8. Assistiu-se, assim, à introdução daquilo que o sociólogo Cédric Lomba denomina como a «reestruturação permanente da classe trabalhadora» 9.
É, igualmente, impossível não referir o papel que a formação/reconversão profissional desempenhou neste período. Para efeitos de uma breve análise, gostaria de referir os casos da Gestnave e da Solisform. Após a assinatura do já referido protocolo entre a Lisnave e o Estado em 1997, esta transformou-se numa empresa maioritariamente composta por capital público denominada Gestnave e tinha como principal vocação a gestão de recursos humanos considerados excedentários da Lisnave – trabalhadores com uma média de idades de 50 anos e com menos recursos para se adaptar à flexibilidade que se queria impor. De forma resumida, era a empresa que ficava encarregue de gerir e fornecer a mão-de-obra necessária à nova Lisnave localizada no estaleiro de Setúbal. Já a Solisform pertencia ao universo da Gestnave e tinha a seu dispor as antigas escolas de formação da Setenave e da Lisnave; tendo como foco a reconversão de todos os trabalhadores, também apostava na formação de jovens trabalhadores que começavam a entrar num novo mercado trabalho.
Ainda que a formação profissional tenha sido um pilar dos estaleiros navais portugueses, a Gestnave e a Solisform desempenharam um papel essencial na reconversão destes trabalhadores, ambicionando não só fornecer novos conhecimentos técnicos, mas também garantir a adaptação subjetiva dos trabalhadores à economia neoliberal que emergia. Segundo um dos documentos internos, pretendia-se formar o «novo operário da indústria naval» 10.
Tais ambições são representativas da centralidade que a gestão de recursos humanos e formação profissional foram conquistando neste período. Como refere o sociólogo Romano Alquati: «A formação muda e produz capacidade humana, esta capacidade diz respeito à subjetividade global e não apenas às competências (…) o processo formativo, justamente por envolver efetivamente a pessoa inteira, com a sua complexidade de desejos, expectativas, vivências e histórias é um processo que tem uma natureza política intrínseca (…)» 11.
Modernização, conflito e reconversão são «andamentos» definidores do último meio século de história industrial da região de Setúbal. Longe de concluído, este passado continua a interpelar-nos nas suas mais variadas dimensões. Propriedade da espanhola MEGASA, a actual Siderurgia Nacional vive há alguns anos um conflito ambiental com os moradores de Paio Pires organizados em torno do movimento «Os Contaminados». Os terrenos do antigo estaleiro da Lisnave – Margueira permanecem desativados, mas rapidamente foram destinados a um projeto potencialmente gentrificador denominado «Cidade da Água» e que, atualmente, conta com a Lisbon South Bay como promotora. Por fim, o estaleiro onde funcionava a antiga Setenave é hoje explorado pela renovada Lisnave no quadro das relações laborais precárias que foram alcançadas nestes últimos trinta anos.
Texto de João Santos [Historiador]
Legenda da fotografia em destaque: “Em finais de 1982 os trabalhadores da Lisnave levam a cabo medidas radicais de luta como o sequestro de diretores e administradores e bloqueio de navios, o que levou em 1983 à ocupação policial do estaleiro. Lutava-se contra a redução dos postos de trabalho e pelo pagamento dos salários em atraso.”
Artigo publicado no JornalMapa, edição #33, Fevereiro|Abril 2022.
Notas:
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