Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: «Somos rebentos!» Brota uma horta na Escarpa das Fontainhas
– «Estamos livres, fora da gaiola, saímos!»
Assim é recordado o dia em que a Escarpa das Fontainhas começou a ser desbravada para dar lugar a uma nova horta comunitária no Porto. Logo a seguir ao desconfinamento de Maio de 2020, era muita a energia em potência para abrir caminho e devolver às pessoas o usufruto daquele espaço-vertigem debruçado sobre o Douro. Desde que saíram os últimos habitantes e foram demolidas as últimas casas, em 2015 [ver caixa no final], a área passou a servir para pouco mais do que passagem entre a cota do rio e o bairro, lá em cima, depósito de entulho e lixo, ou lugar de eleição para defecação ao ar livre e consumos ilícitos.
– «Bota a limpar»!
A partir desse dia nasceu um processo que tem vindo a envolver dezenas de pessoas dali e dalém nas Hortas da Bananeira.
Era uma sexta-feira solarenga de Outubro [de 2020] quando nos juntámos cerca de dez à conversa nos escombros daquela encosta entre pontes virada para Gaia, agora repleta de recantos cultivados com hortas de peculiar estética e com muita pedra à mistura. Para além de nós, que estamos sentados numa ruína que já terá sido casa, há gente espalhada pelos vários socalcos, muitas vezes de cócoras, ao léu, e com as mãos metidas na terra. Para este dia está marcado trabalho colectivo. O plano é «activar mais um espaço», desta vez logo abaixo do centenário lavadouro comunitário das Fontainhas, encostado ao arco da Ponte do Infante. As camadas de plástico, garrafas, dejectos, seringas que há para tirar do terreno são impressionantes, mas não demovem os «bananeiros» que já foram começando os trabalhos. Entre olás e abraços a quem vai passando e bocas trocadas com os mais velhos à espreita lá em cima no miradouro, a entrevista para o Jornal MAPA desenrola-se sem que seja sempre fácil (ou desejável) identificar quem exactamente é que diz o quê (todos os nomes são fictícios): cada frase vai sendo construída por todas as pessoas presentes numa catadupa de ideias que se complementam, tal como é diverso o mosaico de canteiros plantados na horta.
«Inicialmente éramos um grupo pequeno e conseguíamos falar facilmente cara a cara», começa por contar o Horácio. O grupo foi crescendo através do passa-palavra até chegar às «50 e tal, no mínimo» que participam hoje (outro diz 100), embora se mostrem reticentes em fazer a «contabilidade»: «o grupo não é fechado ao ponto de só quem tem horta ser considerado como estando aqui a participar, porque a participação é aberta a todas as formas que alguém entenda que são necessárias, pertinentes». «Há gente que passa e só quer limpar, só quer ajudar ou conversar, ou estar um bocado», acrescenta a Adelaide, enquanto o Joaquim fala dos que já «vieram e deixaram de vir» e a Amélia vai nomeando meia dúzia de países de origem de pessoas que por ali já passaram. «É bué orgânico», diz uma horteloa com sotaque brasileiro para rematar, «há várias formas de contribuir, cada uma à sua própria maneira», seja com trabalho, materiais, ferramentas ou conhecimentos. «Vamos trocando muitas ideias. Os que sabem menos vão pesquisando, os que sabem mais vão contando… e é uma experimentação também.»
Muitas das pessoas que ali estão não são alheias à conjuntura pandémica: «muitos de nós [estamos] um bocado sem chão neste momento, (há muitos artistas) que ficamos sem emprego, nem trabalho, nem ocupações, nem coisa nenhuma, portanto foi uma oportunidade para nos juntarmos porque temos mais tempo livre. Foi um conjunto de factores: entregamo-nos a isto e noutra época se calhar não tínhamos tempo para isto, noutro momento isto não teria acontecido».
E o que é isto? «É uma revitalização», explica o Horácio, e outros vão completando: «é uma activação do espaço», «é uma ocupação», «é um cuidar», «não é para um grupo fechado de pessoas tirar daqui um proveito próprio», «é para que se abra, para que se volte a activar um espaço que estava morto», e remata de novo a Adelaide, «é uma vontade em comum de muitas pessoas de cuidar e cultivar algo, e daí surge muita coisa».
«Para mim o mais incrível até hoje, para além de ter conhecido todas as pessoas que estão aqui, foi quando fizemos a colheita comunitária», recorda a Amélia, que tinha acabado de regressar a Portugal quando começou a participar na Bananeira. Refere-se ao dia em que o bairro desceu à horta, um domingo de Setembro em que os tanques das lavandeiras se transformaram em ponto de recolha de excedentes da produção – o primeiro dia do «Vem e leva». «Eu honestamente não esperava que viesse tanta gente, nem esperava que viesse quase ninguém na verdade, e desceu o bairro todo cá abaixo e começaram a contar-nos tudo, onde é que tinha nascido cada um e o que é que havia em cada sítio». O dia «acabou da melhor maneira», continua, «levámos algumas couves a um dos cafés que tem lá em cima e meia hora depois trouxeram uma bandeja com sopas para toda a gente e estava deliciosa».
Sentem-se apoiados. Dizem que os vizinhos «vêm cá buscar comida e dão-nos equipamentos, redes, mangueiras, ferramentas, pregos, cadeiras, estas tábuas aqui». «Toda a gente que passa aqui dá os parabéns, fica aí a falar, conta um bocadinho a história de como isto era antigamente… tem antigos moradores das casas que tinha aqui que já vieram cá e sugerem os espaços melhores para plantar, onde já havia jardins, “repara que aqui há cimento, ali não”, eu fiquei super emocionada quando soube que onde eu estou plantando era o jardim do bairro».
É nas assembleias quinzenais que se discutem os assuntos que dizem respeito a toda a gente envolvida na horta, como a gestão das águas, a divisão da terra, as necessidades materiais e os projectos comuns que vão surgindo pelo «trabalho que é feito por todas as pessoas que entendam que querem participar na sua concretização».
Dos projectos comuns em curso falam, por exemplo, sobre a estufa para viveiro de mudas e de uma zona para cinema num recanto cimentado que, como não presta para o cultivo, «seria bom desfrutá-lo de outra forma», aproveitando a parede alta e as fundações que permanecem da vida anterior do lugar. Discutem também o desafio clássico de qualquer horta, que é o sistema de águas. Com um rico manancial que corre de forma constante nos tanques, os hortelãos tiram proveito do declive acentuado da escarpa e só usam a gravidade para alimentar os sistemas dos socalcos: «não tem bomba, não tem nada, porque a pressão da água ao sair da mina é suficiente para levar a água para todo o lado.» Fazem falta mais mangueiras para fazer as ligações, e a aquisição de material de rega é um dos assuntos que vai ser levado à próxima assembleia.
«Fala-se muito deste tipo de assuntos práticos» nas assembleias, esclarece o Igor: «reparámos, ou pelo menos eu reparei, que as pessoas são muito mais unidas, juntam-se muito mais [para os assuntos práticos], do que para [discutir] ideias, definições, enfim… portanto as assembleias têm esse papel, servem para discutir coisas que possam ter uma solução». Descrevem-nas como «um teatro, uma aventura, uma espécie de uma paródia que representa bem cada momento das hortas». Mas entre a paródia e o pragmatismo, recordam também os princípios: «auto-organização, horizontalidade, ausência de hierarquias, acção directa, não há porta-vozes, tudo quanto é decidido, é decidido directamente por quem está envolvido na assembleia». E quem convoca e organiza a assembleia então? «É mais uma tarefa que trocamos entre nós», dizem, há uma pessoa que fica responsável por convocar a próxima, de forma rotativa, e nessa «troca de tarefas em termos de responsabilidade, cada um pega o poder e deixa o poder aos outros… e é assim que vamos brincando com a hierarquia». Outra característica é o facto de que as decisões tomadas na assembleia, mesmo se partilhadas com todos, só «são vinculativas para quem está, e não para quem está fora dela», isto é, «quem não participa não tem necessariamente de acatar o que foi decidido». Por isso chamam-lhe um «órgão participativo» (e não representativo) tal como o «é cuidar da terra… às vezes há cuidados negligenciados por falta de participação, envolvimento diário ou em comunidade com alguém… o critério da participação, da acção directa e do envolvimento pessoal físico com a terra também é representado aqui da mesma maneira».
Sobre o que imaginam que pode acontecer para a frente, notam por um lado que «uma coisa é certa, o terreno não é nosso nem de nenhum proprietário privado que se saiba», portanto, «o risco da câmara vir cá e querer terminar isto e pôr estas pessoas todas daqui para fora, existe». Mas não perdem muito tempo com isso. Preocupam-se antes com «um critério objectivo que limita pelo menos o número de pessoas que pode cultivar cá, que é o terreno disponível», mas também isso para já não tem sido problema: «começou por ser só aquela área lá em baixo, e neste momento já estamos a conversar cá em cima, e hoje já vamos limpar também aquele [terreno] ao lado e já existem vizinhos aqui das Fontainhas que, entretanto, pegaram em terrenos que estão ali. A área vai-se estendendo, mas terá um limite». No entanto, lembram também que «o projecto em si não vive só das hortas, e este espaço aberto que se criou e estas áreas comuns que se vão criando também são uma forma de abrir a possibilidade para que outras coisas possam acontecer aqui… como o cinema, já houve alguns concertos, há um workshop planeado para amanhã… portanto, se houver ideias e necessitarem de espaço para que se realizem e este espaço for bom para concretizar essas ideias então este espaço está disponível para isso, é um espaço aberto para que as coisas possam surgir.»
Para facilitar a integração de novas pessoas (embora privilegiem o contacto «analógico») criaram um website e um perfil no instagram onde disponibilizam alguma informação – «porque também este trabalho de explicação precisa de tempo e cuidado», explica o Igor, preocupado com «criar o mínimo possível de identidade, porque a identidade baseia-se em alteridade, na diferença, portanto seria melhor encontrar uma forma de criar uma identidade suficientemente fluída e não definida para que não se sobreponha a nenhum interesse que possa estar aqui presente. Este lugar és tu basicamente, imagina.» E é a partir desse lugar fértil que dizem: «estamos a experimentar outras formas de convivência, de organização, e acho que a inventar um bocado, e esse está a ser um processo muito bonito… esperamos continuar sem perder a espontaneidade de o fazer».
Vista panorâmica de uma escarpa em transformação As Fontainhas têm sofrido grandes transformações nos últimos anos, com a expulsão de moradores e a venda de casas e terrenos para expansão de «alojamentos locais». Na escarpa a jusante da ponte, em 2016, ergueu-se o Hotel Eurostars Porto Douro, no mesmo ano em que a mítica Feira da Vandoma foi varrida dali para fora. No website da Horta da Bananeira, os hortelãos recordam que «as Escarpas das Fontainhas foram outrora habitadas. Em 2001 deu-se uma derrocada de terras que destruiu parte das casas. Posteriormente foi acordado com os últimos moradores a deslocalização para outras habitações camarárias. Finalmente, em 2015, as restantes 13 famílias foram realojadas e as casas foram demolidas. Desde então as Escarpas mantiveram-se ao abandono, progressivamente tomadas pela vegetação e pelo lixo. Ao longo de todos estes anos a câmara municipal do Porto manteve a vontade de requalificar este espaço, mas não passou dessa boa vontade. A mais recente declaração de intenções da câmara para as escarpas foi a da criação de uma ecopista que funcionaria provisoriamente na linha férrea desactivada que está abaixo do primeiro núcleo das hortas. Esta foi uma decisão tomada em assembleia municipal neste Verão, mas até hoje não vimos qualquer ação da câmara para concretizar essa decisão.»
Este artigo foi publicado no Jornal MAPA nº 29 (Dezembro 2020 / Fevereiro 2021).
Texto: Sara Moreira
Fotos: Ana Rego
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