Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: O «Mundo» morreu
Faleceu em Dezembro passado depois de uma vida intensa e interessante, pautada pela rectidão do seu carácter. A afabilidade no trato com a gente normal contrastava com a firmeza dirigida aos prepotentes. Estas qualidades não deixaram indiferente quem com ele se cruzou e seriam razão suficiente para esta evocação, mas há outras.
Conheci-o em 1987 no hospital-prisão de Caxias, onde me encontrava a recuperar de uma das greves de fome de luta contra as condições prisionais, levadas a cabo pelo colectivo dos implicados no chamado “Caso FUP-FP25”. Edmundo chegou ali vindo de um dos hospitais civis, depois de baleado na sequência de um assalto a um banco que tinha corrido mal.
Estava paraplégico e os médicos não só não lhe davam esperanças na recuperação como lhe asseveravam que não voltaria a pôr-se de pé. Esta opinião não era partilhada pelo fisioterapeuta, que o animava a não se render. O «Transmontano» correspondia: «se voltar a andar depender de mim, podem ter a certeza de que me vão ver a andar» ao mesmo tempo que incentivava aquele perito a prosseguir os exercícios terapêuticos, visivelmente dolorosos para os que estávamos presentes.
Voltámos a encontrar-nos quase sete anos depois, ali, no hospital-prisão. Tal como prometera, vi-o a andar. Com a ajuda de ortóteses, que lhe fixavam as articulações da perna direita, e de duas canadianas, demonstrava aos clínicos que estavam enganados: punha-se de pé e andava. Como rotina diária subia as escadarias centrais do edifício, agarrando com o braço direito o corrimão de mármore e apoiando-se na muleta com o esquerdo para subir degrau a degrau. Tinha recuperado alguma autonomia. Para movimentar-se utilizava uma cadeira de rodas.
O «Montano» era uma referência para presos enfermos que para ali eram encaminhados, viessem eles às consultas externas das várias especialidades ou para internamento hospitalar. Nas prisões de todo o país, aqueles que não pactuavam com o sistema prisional sabiam que podiam confiar nele. Era um de nós. Escusado será dizer que para os carcereiros o «senhor» Seixas passava por ser o responsável por tudo o que de «mal» acontecia ali. Se alguém fugia: «teve a ajuda do Seixas». Se iniciavam um protesto: «por trás disto está o Seixas». Se havia droga: «isso é coisa do Seixas». Era assim, tinha as costas largas.
Desta vez a greve de fome que ali me levava já não era do colectivo de presos do “caso FUP-FP25”, vicissitudes daquele processo tinham-me atirado de novo para a prisão. Os três companheiros que se encontravam em cumprimento de pena, por não terem solicitado indulto presidencial, estavam confinados num sector do Forte de Caxias, onde podiam beneficiar de um tratamento prisional com algumas regalias conquistadas nas lutas dos anos anteriores, de que não beneficiavam os restantes presos, designadamente no regime de visitas privadas, cela individual e confecção de comida.
Argumentando que queriam acabar com aquele «regime privilegiado», os responsáveis prisionais enclausuraram-me numa camarata vocacionada originalmente para seis presos, mas onde vivíamos 14, dois dos quais dormiam em colchões no chão. A sobrelotação prisional a isso obrigava.
Se a lei prisional nunca é realmente cumprida, numa situação de sobrelotação é claramente violada pelo sistema prisional, em todos os aspectos da vida na prisão. Não é só o espaço que aperta mais e o tempo que retarda, as consequências manifestam-se em todos os âmbitos da cadeia, dos serviços administrativos à assistência médica, passando pelas visitas, até aos recreios. O Forte de Caxias, a prisão dos presos políticos da ditadura, encontrava-se à beira do colapso e, neste ambiente, a revolta foi ganhando expressão. No pátio foram-se juntando as vontades de protestar «contra as condições prisionais» e de lutar «por direitos consignados na constituição não respeitados nas prisões do país».
Nas prisões de todo o país, aqueles que não pactuavam com o sistema prisional, sabiam que podiam confiar nele.
A 15 de Março de 1994, trinta cidadãos de vários países iniciávamos uma luta que atingiria proporções até então desconhecidos no universo prisional português 1. No dia seguinte entraram outros 30. Dois dias depois a luta tinha alastrado às prisões de todo o território. E dez dias depois, tínhamos colapsado o hospital-prisão.
A promessa de uma amnistia feita pelo director-geral dos serviços prisionais aos grevistas da fome do Forte de Caxias, por ocasião do 25 de Abril, levou-os a suspender até àquela data a luta, condicionando com essa decisão todos aqueles que a queriam prosseguir até que fossem satisfeitas as reivindicações da declaração de protesto e luta inicial.
Os que estávamos no hospital-prisão comprometemo-nos em comunicado a retomá-la se assim não fosse e, poucos dias depois, iniciámos a redacção e publicação de seis «avisos» que constituíram um gritante levantamento das condições de reclusão em Portugal 2.
Seixas participou na sua redacção e foi um dos subscritores. Foram dirigidos a todos os orgãos de comunicação social com cobertura nacional e às principais instituições do país. Cada «aviso» centrava-se num tema diferente que afectava o universo prisional. Apenas um jornal e uma rádio deram, a 7 de abril, a notícia do primeiro aviso, estava focado na sobrelotação; o segundo, tratava as inconstitucionalidades; o terceiro, a saúde; o quarto, o trabalho; o quinto, a justiça; e o sexto, o amor.
Sobre estes «avisos» o silêncio imposto foi total.
Com a aprovação da amnistia e a consequente libertação de cerca de 2000 presos, as tensões nas prisões diminuíram de intensidade e nas semanas seguintes os últimos grevistas no hospital-prisão suspendíamos a greve de fome retomada a 26 de abril.
Por «razões de gestão do sistema prisional» mantiveram-me preso no hospital-prisão e tive ocasião de fortalecer os laços de amizade com o Edmundo. Fizemos ali várias coisas em comum, destas destaco termos sido co-autores da tradução da primeira edição em português da obra Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo de Guy Debord, que viria a ser editada em 1995 pelas edições mobilis in mobile. Ambos sairíamos em liberdade no ano seguinte e a nossa relação de profunda amizade manter-se-ia até à véspera do seu falecimento.
Naquela altura o «Mundo» tinha já concluído o livro que escreveu para a filha e que começa assim: «Esta é a história vivida pelo teu pai. Depois de a leres julgarás em consciência se sou um homem venenoso e perigoso, como dizem, ou se fui atraiçoado pelo meu caráter de jovem inocente e sonhador. Quando me apercebi de que nem tudo era como me diziam foi tarde demais: estava rodeado de lobos por todos os lados e vi-me obrigado a aprender os seus costumes e linguagens para sobreviver. Só te peço que leias com atenção e decidas por ti própria se o teu pai é, de facto, um homem venenoso ou, se pelo contrário, foi envenenado.» Escrito a partir desta obra, segue-se um resumo breve da vida de Edmundo Calado Seixas:
Album familiar com a fotografia de um jovem Edmundo.
E se as moscas não picassem as vacas, Mundo?
No verão de 1955, nos arredores da aldeia, Mundo, com 7 anos, ajuda o pai, António, a lavrar a terra.
As vacas desorientam-se, por via do excessivo calor e das picadas das moscas, partindo o arado e obrigando à construção de nova ferramenta, o que atrasaria a sementeira. Ao jantar, de mau humor, o homem deixa cair a tijela da sopa, por quente demais, discutindo com a esposa, Ti Camila, perante os oito filhos. Vizinhos, curiosos, assomam à porta. Ele lança o mocho 3 atingindo na cabeça uma mulher que desmaia esvaindo-se em sangue. Pensando tê-la morto e temendo a detenção, como acontecera a um irmão condenado a 20 anos de prisão por furto não cometido, António abandona a casa. Para pagar despesas de saúde e compensar prejuízos causados, Mundo passa a ajudar nos afazeres agrícolas da vítima durante dez anos, vendo as irmãs distribuídas por vários familiares.
Na tentativa de equilibrar economias e fugir à escravidão parte a salto para França em 64. A mãe contrai uma dívida de cinco contos, ocultando-lhe o dinheiro num entrefolho cozido no forro da samarra. Após várias e perigosas peripécias na travessia dos Pirenéus o grupo é aconselhado pelo passador a separar-se no comboio, para que a forma de vestir os não denuncie. Atordoado com uma multidão nunca antes contemplada, em Austerlitz perde-se dos companheiros. Um taxista, percebendo-lhe o desespero, agarra o papel com uma morada que tem na mão e convida-o a segui-lo, levando-o até aos arredores de Paris. A intenção de Mundo é que seja o amigo de acolhimento a pagar, mas a impossível comunicação irrita-o, por achar que duvidavam da sua palavra, e rasga a samarra entregando todo o dinheiro. Dá-se conta que acaba de ser espoliado perdendo também a morada de destino. Após horas de abatimento mete-se ao caminho sendo reconhecido por um operário que, do telhado em obras de uma casa, grita o seu nome. Na polícia de estrangeiros, procurando um atestado de residência, ordenam-lhe o abandono do país em 48 horas, por ser menor.
Naturalmente não respeitará o édito. Protegido por Giovanne, um italiano de idade avançada, encarregado numa obra, consegue documentos de outro gabinete policial e começa a trabalhar na construção civil, vivendo num contentor. No entanto, dado o excessivo paternalismo do homem, abandona emprego e estadia. Pernoita numa pensão em Levallois onde, de madrugada, é levado pela polícia sem conhecer acusação. Durante dois dias, insultado e agredido, é exposto em várias esquadras para reconhecimento. Não sendo identificado libertam-no, impondo-lhe apresentações mensais até à maioridade. O incidente resultara dos registos de clientes da pensão entregues à polícia: tendo havido na zona uma série de assaltos a residências e estando o português dado como expulso há meio ano, a sua envolvência nos crimes pareceu óbvia às autoridades. Jean, o hospedeiro, encontra-lhe trabalho na Citroën, propondo alojamento em troca de ajuda no funcionamento do restaurante, onde vários portugueses, alguns exilados políticos, são clientes. Envolve-se com eles na criação da Association des Originaires du Portugal, em Vaucresson, apoiando logística e burocraticamente quem chegava sem contactos ou documentos. Numa ida ao banco para transferir o pecúlio de meses de trabalho na fábrica, é abordado por dois conterrâneos que o roubam com o «conto do vigário». O amigo Jean, conhecedor da pobreza familiar, convence-o a aceitar de empréstimo 5000 francos para enviar à mãe. Durante dois anos a vida parece rolar, mesmo o namoro com Annie, sobrinha do anfitrião, no entanto, as cenas de ciúmes relativas ao seu empenho nas tarefas da Associação onde várias raparigas colaboram, deitariam tudo a perder levando-o a afastar-se. Encontra Gisela, natural de uma aldeia vizinha, que o acolhe. A relação fortifica-se e Mundo inteira-se de um universo desconhecido. Diariamente a companheira confia-lhe dinheiro para gastos pessoais, dando aso a uma vida boémia. Em Pigalle resolve uma rixa entre portugueses e franceses, por motivos de não pagamento a uma prostituta. Apresentações feitas, os patrícios vivem do «conto do vigário» e ele quer saber como funciona a coisa. Logo ali experimenta com um italiano que procurava comércio sexual ficando-lhe com o relógio, dois anéis e umas centenas de francos. Gisela, não podendo esconder mais a vida luxuosa, confessa-lhe que vive do tráfico de cocaína, tendo como clientes altas figuras da sociedade francesa: advogados, juízes, professores universitários e actores. Tudo parece demasiado fácil. Deixa a Citroën, farto de patrões e exploração, e na companhia de «Gordo», outro transmontano, inicia-se como vigarista. Não passava um ano e, à entrada da gare do Norte, em atividade, é detido ingressando na prisão La Santé onde cumprirá oito meses. Como se recusa a coser etiquetas em camisolas, por conta de um espanhol companheiro de cela, e as queima para aquecer a água do café, usando a lata onde estavam armazenadas, a discórdia resolve-se à pancada. É transferido para uma cela com dois burquineses, condenados a oito anos por comerem um português, cumprindo um ritual tribal. Após as desconfianças iniciais o clima torna-se amistoso. Ouve pela janela insultos que o referem como homossexual, por não se descortinar zaragata com os canibais e desafia os injuriadores a enfrentarem-no no pátio do recreio. A peleja, que envolveu dezenas de homens, resultou num castigo de um mês de solitária. Através de um respiradoiro estabelece contacto sonoro diário com um companheiro de Mesrine, que o aconselha a dedicar-se a bancos e ourivesarias.
O eco foi tal que passou a envergonhar-se das espoliações feitas aos que, vivendo do suor e sofrimento do trabalho, pertenciam, como ele, aos mais fracos da escala social. No dia da bola 4 é conduzido à prefeitura de Paris onde antes fora expulso, na companhia de vários estrangeiros e de um funcionário do Ministério do Interior. Adivinhando o repatriamento aproveita uma distração e escapa pelo Metro.
Consegue documentação falsa e armamento necessário aos novos empreendimentos: dois revólveres e uma metralhadora. Com «Gordo» e amigos ocasionais vão assaltando banco atrás de banco e uma ou outra ourivesaria, gastando as verbas que conseguem com relativa facilidade: álcool, cocaína, mulheres e festa. Em 73 concretizam o maior assalto à época, em Paris, que rende 3 milhões de francos expropriados ao Banc Franco Portugaise d’Outre-mer. Dada a proximidade da esquadra os jornais apontam um eventual conluio entre o responsável da empresa Securitas e o chefe policial.
Mundo e Maude, nova companheira, partem em férias, com um amigo comum, numa longa viagem de automóvel. Meses depois, no sul do país, porque o dinheiro escasseasse, assaltam um Casino e regressam a Paris. Apercebendo-se pelas notícias do 25 de Abril, dirige-se à terra natal encontrando a mãe em discussão com um velho. Que quererá o homem?…. «Este homem é o teu pai, Mundo!» Fica a saber que Ti António trabalhara e mendigara por terras de Espanha, onde fora várias vezes detido por zaragatas, e que a ex-esposa o não aceita de volta. Ajuda economicamente os progenitores e parte para o Algarve onde o aguardam conhecidos parisienses. Uma rusga policial apanha-o numa discoteca em Olhão. Passa uma 7,65 mm a Maude que a guarda na carteira. Um jovem denuncia à polícia o movimento e, após forte arraial de porrada, são levados à prisão de Faro. Uma semana depois, com o apoio de outro detido, abre portas aos 70 reclusos. Expropria um banco em Braga e regressa a França, sentindo-se abatido por saber que os melhores amigos estariam detidos na Santé.
“Esta é a história vivida pelo teu pai. Depois de a leres julgarás em consciência se sou um homem venenoso e perigoso, como dizem, ou se fui atraiçoado pelo meu caráter de jovem inocente e sonhador…”
Alcoolizado, envolve-se numa rixa com argelinos que lhe rende um ano de prisão. No fim da pena é extraditado para Pinheiro da Cruz, cumprindo três meses por posse ilegal de arma, de onde sai a 4 de Janeiro de 76. Cruza-se com «Gordo» na baixa lisboeta e por água abaixo vão as tentativas familiares de lhe conseguirem um emprego: há um banco em Benfica, já estudado e um plano fácil de executar! Arrecadam 2800 contos. Em todo o seu percurso, umas vezes devido à euforia festiva, outras a brigas ou traições de companheiros, acabará por somar 25 anos de condenações, dos quais vinte 5 em França, Espanha e Portugal.
Numa longa elipse encontramos Edmundo em 87, aquando do assalto que o deixaria paraplégico. Concordando com a companheira Eva, grávida, que lhe sugere preocupação com o futuro, emprega-se como carteiro. Dois meses depois, descoberto o seu passado, é despedido. Junta-se a Miguéis, ex-agente da judiciária que conhecera em Vale de Judeus e, para orientar economias, concebe burlas a negociantes de automóveis. Aquando do nascimento de Neuza, a filha, aceita o desafio proposto por dois colombianos e, na companhia do ex-polícia, assaltam um banco em Santa Iria da Azóia. Mundo dispara para o teto e instiga os clientes a voltarem-se para a parede. Um homem não obedece fitando-o nos olhos. «Viras-te ou queres que te vá virar eu?» Com a arma apontada o renitente obedece. Os companheiros saem com o saco de dinheiro e entram no automóvel de fuga. Ele abandona o edifício e antes de entrar no veículo recebe um tiro nas costas, disparado pelo cliente que o enfrentara. Tenta responder com a Uzi e tomba sem forças. Os companheiros querem metê-lo no carro, mas, pressagiando a morte, o «transmontano» incentiva-os a fugirem. Sente-se inchar, como se fosse rebentar, à medida que vai perdendo sangue e a temperatura interna aumenta. Na cabeça cruzam-se imagens de Neuza com a voz repetida da mãe: «eles matam-te, meu filho, eles vão dar cabo de ti!» Rodeado de populares é insultado e agredido com um pontapé na cabeça que o conectará de novo à existência. Percebe que afinal não é ainda a sua hora e luta para sobreviver agarrando-se às elucubrações mentais. Após passagem pela cirurgia do São José acordará no hospital-prisão de Caxias, entubado no nariz, boca, peito e barriga, com paralisia dos membros superiores e inferiores.
Abandonado pelos médicos, conta com a sua vontade e com o apoio de um companheiro de enfermaria, o «Fininho», de um dos enfermeiros, Balsinha, e do fisioterapeuta, Serrano, que o ajudam e estimulam na recuperação, apesar da negligência dos serviços médicos prisionais. Ao fim de um ano, apoiando-se no corrimão e ajudado por ortóteses e uma canadiana, sobe e desce as escadas do edifício. A revolta acentua-se ainda mais na garantia que Serrano lhe dá de maior recuperação, caso consiga saída diária para sessões de fisioterapia em Alcoitão. Essa autorização demoraria mais de um ano, sendo assinada numa altura em que, depois de duas semanas de sessões, o centro de reabilitação fechava para obras. Não tendo nunca colaborado com as instituições judiciárias e negando sempre as acusações que lhe apontavam, tudo foi tentado para o destruir física e emocionalmente: algo conseguiram! A título de exemplo refira-se apenas a forma como detiveram a companheira, num ardil presumivelmente montado pela polícia: dia de visita, portão externo.
Tocando para entrar com a bebé num braço e sacos no outro, é abordada por uma senhora apressada saindo de um automóvel que lhe pergunta se é a esposa do Edmundo. Perante a resposta afirmativa, justifica-se: «desculpe, eu sou amiga dele, mas estou com muita pressa, neste envelope estão uma série de moradas que ele me pediu, pode entregar-lhas?». O portão abre-se. Ela entra para a revista com a filha ao colo, sacos e um envelope na mão, onde é encontrada uma grama de heroína que lhe renderá três meses de detenção em Tires. E, na verdade, como resultado deste incidente a família acabaria, com o tempo, por se desestruturar. Cumpridos nove, dos 12 anos a que fora condenado, é ouvido pelo juiz de penas, que lhe garante liberdade condicional se se comprometer a não importunar a Eva, que arranjara a vida com outro homem, e for para a sua aldeia cumprir os três anos em condicional. Com dois sacos, toda a bagagem, parte para Gralhas na carrinha dos serviços prisionais, de onde saíra 32 anos antes.
Panorâmica geral da aldeia de Gralhas, situada nas faldas da serra do Larouco.
Dada a insensibilidade, enquanto se aquece à lareira, os ténis derretem e queima os pés, obrigando-o a curativos diários que Ana, viúva do seu tio – o tal que, inocente, cumprira vinte anos de prisão – toma a seu cargo. De enfermeira a companheira deu-se o passo que duraria 22 anos, empenhando-se Edmundo na orientação da ética comportamental dos seus dois netos, Alexandre e Anabela, crianças à sua chegada. O carácter solidário manifestar-se-ia ainda na ajuda a vários conterrâneos, conseguindo-lhes, por exemplo, reformas relativas aos anos de emigração em França, as quais nem imaginavam que teriam direito. E valeu-lhe também a solidariedade de um ou outro dos que apoiara em Paris, nomeadamente na concretização de trabalhos agrícolas e de pastoreio, base da sustentação familiar. A frontalidade na apreciação dos acontecimentos e dos factos que ocorriam no seu entorno terá motivado o convite que lhe dirigiu o jornal de Montalegre, onde durante um período escreveu uma crónica intitulada “O Homem da Montanha”.
Não se pense, no entanto, que as relações com o Estado se terão apaziguado. Devido a várias necessidades terapêuticas, sobretudo nos últimos cinco anos, derivadas do surgimento de escaras que, por negligência médica, originariam várias intervenções cirúrgicas, foi mesmo indispensável enviar queixa à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde. Em Dezembro último, após remoção da bexiga cancerosa, foi-lhe dada alta hospitalar com excessiva medicação de analgésicos que, provavelmente, seria alterada aquando da consulta de dor, dias depois. No entanto, uma avaria da ambulância, adiaria o acto médico para data a remarcar. Por via do excesso de barbitúricos ou do próprio processo infeccioso, sem consciência do que fazia, retirou o tubo que o ligava ao saco colector da urina. Ingressado nas urgências é detectada uma infeção interna e é medicado com antibiótico, sem que tenham sido efetuadas análises sanguíneas. Morria de septicemia dez dias depois, com a mágoa de não ter nunca conseguido estabelecer com a filha uma relação de intimidade: quiçá a sua dor maior! Terminamos com o epitáfio publicado numa rede social por Alexandre: «seus ensinamentos, suas palavras para sempre farão eco nas nossas consciências. E seu amor e postura protectora para sempre aquecerá nossos corações. Sentirei saudades eternas daquele que foi um dos homens mais fortes e melhores que já pisaram este planeta. Até sempre e descanse em paz, vô!»
E se as moscas não tivessem picado as vacas, Mundo?
Texto de Fernando Silva
Fotos de Frederico Lobo
Artigo publicado no JornalMapa, edição #26, Fevereiro|Abril 2020.
Notas:
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