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Lendo: Controlar o espaço através da dor

Controlar o espaço através da dor

Controlar o espaço através da dor


 

Cortar os limites da nossa pele pode servir para proteger os limites de uma propriedade, de uma prisão ou de uma fronteira.”

Reviel Netz, Barbed Wire: An Ecology of Modernity (2004)


O arame farpado é um símbolo da silenciosa e ubíqua privação de liberdade. A sua história permite pensar o papel do controle do espaço nas formas de dominação contemporâneas, onde a biopolítica e a geopolítica se fundem, facultando uma análise sobre as lutas pelo poder em torno do controle do meio-ambiente e dos corpos que nele vivem (controle de fluxos migratórios, planificação do território, gentrificação de espaços urbanos, etc.).

No livro Barbed Wire: An Ecology of Modernity (2004), o historiador Reviel Netz encara o arame farpado enquanto ferramenta para a reconfiguração do espaço através da dor. O seu desempenho infame é descrito como uma história ambiental do impedimento do movimento através de uma tecnologia rudimental mas omnipresente, apresentada como um paradigma da modernidade. Em particular, Netz defende que a modernidade foi moldada pela gestão centralizada do movimento em larga escala, o que foi funcional tanto para a exploração económica quanto para a dominação política em todo o planeta. Barbed Wire é dividido em três capítulos que tratam, respectivamente, o uso agrícola, militar e repressivo do arame farpado, entre 1874 e 1954. O primeiro capítulo, Expansion, estuda o arame farpado como um dos agentes-chave da profunda transformação ecológica da grande planície norte-americana no final do século XIX, quando foi inventado para evitar o movimento das vacas no oeste dos Estados Unidos. Netz analisa como a conquista do oeste significou o extermínio dos búfalos e dos índios e a sua substituição pelas vacas e colonos euro-americanos, bem como a introdução de uma economia capitalista que reorganizara a região no interesse das elites dos centros urbanos do norte East Coast, os vencedores da Guerra Civil norte-americana. O arame farpado surgiu no decorrer do processo de uma maciça e rápida colonização devido aos conflitos suscitados pela coexistência entre a pecuária extensiva e a agricultura intensiva. Se inicialmente foram as plantações a ficarem vedadas, para impedir que fossem devastadas pelo gado que andava solto, não demorou muito para que se resolvesse passar ao encerramento das vacas nas cercas das fazendas.

O segundo capítulo, Confrontation, descreve como, no virar do século, o arame farpado viu as suas funções multiplicarem-se, sendo adotado para impedir o movimento dos seres humanos em contextos de guerra colonial. Na rápida expansão agrícola à escala mundial o arame farpado, graças à sua leveza, flexibilidade, custo e consequente produção em massa, permitiu que fosse usado em conflitos entre os antigos poderes locais e as novas potências invasoras, como foi o caso da Guerra dos Bôeres de 1899-1902. Finalmente, a combinação de arame farpado e metralhadoras, testada nas trincheiras da Manchúria durante a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, culminou com a estática apoteose dos quatro anos de massacres da Primeira Guerra Mundial.

O terceiro capítulo, Contention, analisa o nascimento do campo de concentração. O arame farpado foi usado em vários conflitos para o controle de civis inimigos e de prisioneiros de guerra, tornando-se uma peça central na gestão da repressão política e social na União Soviética e na Alemanha nazista. É neste terceiro capítulo que os paralelos entre a história dos humanos e a história dos animais se tornam mais explícitos e mais ameaçadores. Os campos de concentração, onde a carne humana foi coisificada, limitando o seu movimento a um espaço cada vez menor, são comparados às gaiolas e cercas para os animais. Segundo Netz, tanto a vida dos presos como os currais eram o produto do mesmo sistema técnico de controle do espaço mediante a dor. Em ambos os casos, estamos perante as vítimas da ecologia política moderna, em que orgânico e o inorgânico se emaranham numa interdependência indissociável.

Ao longo do livro de Netz, o arame farpado é analisado como o principal protagonista de uma inversão topológica típica do nosso período histórico: certos pontos num plano, e as linhas que os conectam, levaram ao controle de grandes superfícies, com os corpos forçadamente confinados e controlados em lugares isolados, únicas áreas onde lhes é permitido mover-se. A este respeito, o arame farpado, enquanto tecnologia de gestão biopolítica do espaço, permitiu definir de forma rápida, barata, eficaz e em grande escala, um interior e um exterior, quem está incluído e quem está excluído. Por exemplo, num primeiro momento, os euro-americanos controlavam alguns pontos (os fortes) e algumas linhas (estradas e ferrovias) das grande planícies, enquanto que os índios e o gado se moviam livremente em todo o plano. O arame farpado alterou essa situação, encerrando os indígenas nas reservas e as vacas nos currais. Um outro exemplo da mesma dinâmica foi a guerra dos Bôeres na África do Sul. Os britânicos, a partir de cidades e caminhos de ferro, como pontos e linhas num plano, terão como objetivo o controle de todo o território por onde os guerrilheiros bôeres se moviam livremente. Foi com estes elementos topológicos, implantando arame farpado ao longo dos trilhos ferroviários, que os britânicos conseguiram quadricular o território, encurralar a população civil e internar os rebeldes em campos de concentração.

Ao longo do livro são abordados sob este foco eco-político a guerra química, a invenção do tanque, as origens do conflito israelo-árabe, a arquitectura dos campos de extermínio nazis, a colectivização agrícola soviética, o crescimento e declínio da cavalaria na Europa ou a estreita relação que houve ao longo da história entre agricultura e guerra.

Netz, professor na Universidade de Stanford, é um dos historiadores mais destacados e originais da matemática helenística (Netz, 1999). Foi precisamente o seu interesse pelas práticas materiais da geometria dos antigos gregos que o fez adoptar um olhar topológico sobre os processos de sangrenta reconfiguração da ecologia humana. De acordo com Netz, a história é uma dinâmica de interacção entre corpos em movimento no espaço. Portanto, com os seus corpos e desejos, os animais também pertencem à nossa paisagem social, são actores históricos e vítimas dos dispositivos biopolíticos que, alicerçados na dor, transcendem as fronteiras entre espécies. Pois, Barbed Wire é uma história de como a dor em grande escala foi utilizada para prevenir a livre circulação dos corpos e de como, em consequência disso, tem sido utilizada para aumentar a exploração económica e o despotismo político. Em suma, Barbed Wire representa um estímulo para repensar a história económica, ecológica e política do século XX não apenas em termos do aumento da circulação, como, inversamente, em termos do impedimento do movimento, com indefectível empatia e solidariedade para com as vítimas da violência autoritária. Faltou-lhe desenvolver uma análise do papel do arame farpado na segunda metade do século XX, em contextos de segregação racial, de classe e noutros usos que marcam a biopolítica contemporânea. Para colmatar esta lacuna consulte-se o livro de Olivier Razac, Histoire politique du barbelé (2009), que inventaria os seus múltiplos empregos, num subtil equilíbrio entre a eficiência do instrumento securitário e a sua aceitabilidade simbólica, dialogando com as análises do poder disciplinar de Foucault e das sociedades de controle de Deleuze: “As formas atuais da violência política reconhecem-se menos pela sua intensidade manifesta do que pelos seus meandros refinados”.

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