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Lendo: Proximidade e Poder Local

Proximidade e Poder Local

Proximidade e Poder Local


Ao desaparecerem 1165 freguesias, é evidente a intenção de cortar pela raíz a representação mais próxima das populações. Esta surge como bandeira do poder local, mas os mecanismos desse poder contribuíram igualmente para este desfecho. Perante uma estratégia política onde não tem lugar a resolução direta dos problemas das pessoas pelas pessoas, a defesa e os benefícios dessa proximidade estão para lá das freguesias, reclamando a necessidade de outras formas de gestão comum.

As autárquicas de 2013 anunciam uma nova etapa no território político português à conta de novas regras do jogo eleitoral e administrativo. O facto tem vindo a ser repetidamente apontado por via da dança das cadeiras que girou em torno das limitações de mandatos, mas é a extinção de 1165 freguesias o dado mais marcante nestas eleições.  A disputa entre um poder central e os poderes locais veio atacar esse modelo de gestão local, provando que a política actual é de afastar ainda mais as pessoas dos espaços e órgãos de decisão e recusando o sentido de proximidade, tão caro às freguesias, cujo percurso em 36 anos de poder local veio, porém, igualmente provar o seu distanciamento de qualquer meta de autonomia dos lugares e das suas gentes.

Somente cerca de um terço dessas freguesias extintas se opuseram, demonstrando uma ausência de reflexão sobre as condições que levaram ao esvaziamento evidente dessa proximidade que o autarca reclama. O que leva necessariamente a inquirir sobre a forma como os próprios mecanismos do poder local, consagrado em 1976, contribuíram para este actual desfecho. Ou como é dúbia a dicotomia invocada entre os poderes centrais e locais. O facto da discussão se ter concentrado nos mandatos de fulano e de sicrano, limitando-a à esfera da defesa da política profissional, contribuiu ainda mais para recusar o debate sobre o papel que essa política representativa desempenha hoje na organização diária das nossas vidas e lugares. Na questão dos mandatos, a qualidade do que é “rotativo” é, como sempre, deturpada pelo “rotativismo” enquanto predomínio dos partidos políticos que se alternam no poder democrático. E, é claro, pelos apegos pessoais ao poder.

É neste cenário que surge um novo mapa administrativo que acaba com 1165 freguesias em 230 concelhos, cortando pela raiz o modo de representação mais próximo das populações que é dado a conhecer. Sobretudo na grande Lisboa, Porto e Minho, onde se concentram concelhos que perdem entre 35,1% a 60% das freguesias, generalizando-se uma perda de 15% a 35% no restante pais. Em omissa nota de rodapé, surge ainda o extirpar do que até aqui era mesmo considerado constitucionalmente como uma forma de “democracia directa”, uma possibilidade residual e esquecida que era o chamado “plenário de cidadãos eleitores”, órgão deliberativo que se admitia nas freguesias de população diminuta (com 150 eleitores ou menos). Não justificando a instalação e funcionamento da assembleia de freguesia, a mesa eleita em plenário deliberava apenas por maioria e com a presença de pelo menos 10% das pessoas dessa freguesia.

O sentido desta reforma, falsamente argumentada em torno de critérios financeiros, aos quais a Associação Nacional de Freguesias calculou uma poupança de apenas 6,5 milhões de euros, obedece claramente ao propósito de esvaziamento dessa proximidade, fazendo tábua rasa a qualquer sentido de identidade há muito estabelecido. Apesar das diferenças nos meios urbanos e rurais, está em causa uma estratégia onde não têm lugar hipóteses de relacionamento e resolução directa dos problemas concretos das pessoas.  Por imediata contra-argumentação, surge a defesa do poder local. Mas, na exacta medida em que se deu o reforço da máquina institucional autárquica, caminhou-se passo a passo para um afastamento dos habitantes do governo dos seus lugares, reduzindo as Juntas ou as Câmaras, mais tarde ou mais cedo, a meros empregadores locais, cujos tempos actuais os tornaram em líderes da precariedade; a diligentes servidores dos interesses partidários locais, cujas teias de interesses económicos tampouco são discretos; a zelosos defensores de interesses variados, colidam estes ou não com interesses mais amplos e de longo alcance no seu próprio território e ambiente; ou a reféns do empreendorismo salvador vindo de fora. Feitas as contas, sobram rotundas para todos os gostos.

As autárquicas de 2013 arriscam-se, deste modo, a representar uma mostra mais desse percurso. Se o fim das freguesias deveria ter movido vales e montanhas, acabou apenas por revelar no espírito dos lugares – enquanto sentido local de identidade, ligação e de partilha – uma incapacidade de resposta e de defesa comum por via desse mecanismo de representação. Em cada um destes lugares, falamos com o mesmo sotaque, saboreamos os mesmos pratos, percorremos as mesmas paisagens e, na afinidade de primos uns dos outros, sabemos quem é da terra e acolhemos ou rejeitamos quem vem de fora. Mas esse espirito dos lugares não é algo simplesmente delegado ou de correspondência directa a qualquer quadro administrativo, como os que percorreram este país que já contou com 900 concelhos e hoje soma 308. A mera configuração municipal será sempre irrelevante para medir a vitalidade desse sentido comum.

Para lá da falsa dicotomia entre os poderes centrais e locais, são as formas de representatividade que acabam em questão. Cabe pois perguntar em que medida uma freguesia tira hoje partido da reiterada proximidade e das afinidades que a envolvem: fortalece-a ou diminui-a?  Nesse âmbito as autárquicas, mais do que em qualquer outro momento, são uma ocasião de frisar o espírito dos lugares. Não na defesa administrativa de dada região já estabelecida, pelo seu correspondente poder local, mas abrindo espaço e chamando a si outras formas de gestão diária comum. Beneficiando precisamente das proximidades em causa, e onde a centralidade da Junta ou da Câmara possa ser suprimida por uma lógica de participação directa, num espaço plural de actuação e responsabilização para distintos e variados colectivos em rede. Em que a cartilha e o manual de instruções não é reeditado de quatro em quatro anos, mas todos os dias experimentado e vivido. Um caminho precisamente inverso à agregação administrativa de território(s), e multiplicando o(s) mesmo(s) em novas hipóteses colectivas e individuais onde o sentido de autonomia se encontre de novo na proximidade do lugar e das suas gentes.

 

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