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Lendo: Salvamos as pessoas da fome, salvamo-las da ocupação: a solidariedade grega perante a destruição do sistema nacional de saúde

Salvamos as pessoas da fome, salvamo-las da ocupação: a solidariedade grega perante a destruição do sistema nacional de saúde

Salvamos as pessoas da fome, salvamo-las da ocupação: a solidariedade grega perante a destruição do sistema nacional de saúde


Neste momento, na Grécia, o número de desempregados ronda o milhão e meio, sendo que 60% destes são jovens. A natalidade desceu e a subnutrição infantil aumentou. De 2010 para 2011, as infecções de HIV aumentaram 52% e os suicídios aumentaram 17%. Perante a destruição do sistema nacional de saúde as iniciativas de solidariedade neste campo começaram a aparecer por todo o país: neste momento exitem cerca de 25 clínicas solidárias.

Desde 2010 que o Índice de Desenvolvimento Humano está em decrescimento – um índice composto de dados relativos à saúde, educação e rendimento, que crescia ininterruptamente desde os anos 80. Estaremos, em breve, a substituir os chavões «Portugal não é a Grécia» ou «a Grécia não é a Irlanda» por «a Europa do sul não é África?»

Na Grécia, se estiveres desempregado há mais de um ano ou se estiveres em dívida para com o governo – impostos ou uma multa por pagar – perdes o direito ao sistema público de saúde. Isto significa que podes ir às urgências, ainda que pagando uma taxa cada vez mais elevada, mas que não és assistido no sector público – em tratamento ou em medicação – em caso de doença crónica ou prolongada.

Em Julho de 2011, o Estado grego, ao serviço dos banqueiros, assaltou os contribuintes e reformou o seu sistema público de saúde. Disse a Comissão Europeia que esta reforma é considerada uma componente crucial dos esforços da Grécia para aumentar a eficácia e eficiência da despesa pública, trazendo oportunidades para reduzir significativamente custos, sem comprometer a qualidade dos cuidados de saúde. E assim, pela primeira vez na história do Estado Social grego, os desempregados de longa duração têm agora de pagar por assistência médica. Semelhante ao que acontece nos Estados Unidos da América, onde desemprego e doença são sinónimo de uma sentença de morte: um estudo da Universidade de Harvard, em 2009, concluiu que cerca de 45 mil americanos morrem todos os anos por falta de tratamentos.

A Grécia está agora abaixo da média dos países europeus no que diz respeito à despesa pública, per capita, em saúde. Dados da OCDE referem que a despesa grega relativa à saúde aumentou em média, por ano, 6.1% de 2000 a 2009 mas que desceu, apenas de 2009 para 2010, 6.5%. Aumentaram, pois, as iniciativas de solidariedade neste campo. Existem em todo o país, actualmente, cerca de 25 clínicas solidárias, muitas delas de iniciativa municipal. Grande parte destas clínicas surgiram ao longo do último ano, com o agravar da crise e depois da reforma do sistema público de saúde. Em Kalamata, no sul do país, na região de Messinia, encontrei a Clínica de Solidariedade Social de Kalamata, de iniciativa espontânea e independente. Funciona no antigo hospital de Kalamata, com equipamentos doados e com trabalho exclusivamente voluntário de secretários, médicos, dentistas, enfermeiros e assistentes sociais.

Destina-se a cidadãos excluídos das estruturas públicas, como o Sistema Nacional de Saúde ou a Segurança Social, independentemente da sua nacionalidade. Presta cuidados médicos primários, através dos serviços de Medicina Interna, Pediatria, Ultra-Sons e Dentista. Tem em funcionamento uma farmácia, abastecida exclusivamente por doações, que permite fornecer aos pacientes a medicação necessária no próprio momento das consultas. A Clínica está inserida na Rede de Clínicas de Solidariedade Social, que reúne outros projectos irmãos a nível nacional, assim como médicos e especialistas afectos ao sistema público ou privado, que se voluntariam para reforçar e complementar o serviço prestado. Assim, em Kalamata, a Rede tem cerca de 50 médicos, 6 clínicas privadas, 7 dentistas e 4 pediatras. Quando a Clínica não tem capacidade para responder às necessidades de um paciente, como no caso de exames especializados, intervenções cirúrgicas ou tratamentos mais complicados, os médicos responsáveis entram em contacto com outros especialistas da Rede de forma a encaminhar o paciente, sem qualquer custo.

Um dos médicos voluntários em Medicina Interna na Clínica de Solidariedade de Kalamata é o Dr. Poulopoulos. Acompanhei o seu trabalho durante algumas manhãs e conheci alguns dos seus pacientes: um idoso com falência renal que precisa de hemodiálise regular, um homem que precisa de uma cirurgia cardio-vascular, uma mãe com depressão aguda, uma adolescente grávida, outro homem com diabetes a precisar de um exame às artérias coronárias. Muitas outras pessoas procuram na clínica apenas medicação, que já não conseguem comprar sem a comparticipação do Estado.

O Dr. Poulopoulos, que me deixa acompanhar as consultas e me traduz para inglês as preocupações dos pacientes, trabalhou no hospital público durante 20 anos, no serviço de Nefrologia, até trocar as duras condições de trabalho no serviço público por uma clínica privada e pelo trabalho voluntário na Clínica de Solidariedade. Acusa o sistema público de degeneração e de uma perigosa quebra de eficiência. Os hospitais estão cheios de dívidas e com falta de médicos, enfermeiros, especialistas, equipamentos ou medicação.

Porquê voluntariar-se? “Porque acho que as pessoas têm de começar a agir. A solidariedade, nestes tempos, é uma grande luta pela democracia. O meu verdadeiro desejo é que as pessoas se ergam e lutem, pela sua dignidade e pelos seus direitos. Quero vê-las participar nesta luta e que o medo não as empurre para o fascismo”. A este propósito, é importante assinalar que o Aurora Dourada (Chrysí Avgí), o partido fascista grego, tem,  à data da nossa conversa, 10% de eleitores e 18 deputados no parlamento. A ascensão do fascismo na Grécia é preocupante e acompanha a perigosa fragilização física e emocional da população. O Estado Social foi essencial para a população emigrante que chegou ao país em duras condições de vida. “Neste momento”, alerta o Dr. Poulopoulos, “muitas destas pessoas, sem condições de prevenção ou tratamento de doenças, vivendo em condições precárias e em pobreza, vêem surgir problemas de saúde que tinham ficado resolvidos nos anos 50”.

Um outro problema se afigura, subtil, por trás da destruição do Estado Social. Mesmo considerando que uma pequena parte da população possa recorrer ao sistema privado de saúde, este é uma farsa. O sistema privado é uma bolha: parece mais eficaz do que realmente é. Quando o sistema público falhar não haverá uma alternativa real de qualidade.

Manolis é radiologista e voluntário na Clínica, enquanto espera pela segunda parte do internato, em Atenas. Construiu o sistema informático de registo dos pacientes e criou e organizou a farmácia. A sua motivação parece interminável e é, na sua opinião, “a ferramenta essencial para o crescimento da solidariedade e da auto-organização”. Diz-me preocupado “se apenas o sector privado persistir, a saúde entrará num esquema de mercado e será vendida em que condições e a que preços? Como salvar um sistema público que pagámos e construímos ao longo de gerações? Como impedir que os nossos companheiros, que os nossos vizinhos do lado, sofram com a fome, a doença ou a escravatura de um capitalismo imoral?”

É possível a insurreição popular? Responde-me o Dr. Poulopolos “quando a Grécia foi ocupada pela Alemanha, os soldados alemães levaram toda a comida para as frentes de batalha. Para salvar a população grega da fome, as pessoas criaram comités de solidariedade – que deram origem à Frente de Libertação Nacional (EAM) – e criaram o seu próprio exército, o Hellas. O seu lema foi «salvámos as pessoas da fome, iremos salvá-las da ocupação».

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Sandra Faustino

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