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Lendo: O que é isso do privilégio branco?

O que é isso do privilégio branco?

O que é isso do privilégio branco?


pri·vi·lé·gi·o
(latim
privilegium,-ii, lei de excepção, favor)
substantivo masculino
Direito ou vantagem concedido a alguém, com exclusão de outros.

 


Muitas vezes há um desconforto quando se fala de racismo e privilégio branco, como se estivéssemos a ser provocadores ou a tentar encontrar culpados. Neste texto pretende-se falar em termos sistémicos, olhar para a sociedade ocidental de um modo estrutural, em vez de falar de indivíduos e das suas escolhas individuais. Se, por um lado, sabemos que a civilização ocidental se ergue em cima da escravatura, de colonizações e segregações, por outro lado parece que só somos ensinados a ver atos de racismo em certas pessoas ou em pequenos grupos, nunca em práticas quotidianas, por vezes invisíveis e sedimentadas, que continuam a conferir vantagens ao grupo dos brancos.

O privilégio branco de que aqui se fala é para ser pensado como um conjunto de benefícios institucionais (e não pessoais) garantidos aos que, por questões raciais, se parecem com as pessoas que ocupam maioritariamente cargos de liderança em instituições de poder. Se privilégio é o direito e vantagem mantidos por um grupo, ou por uma maioria, que se baseia na opressão e supressão de grupos minoritários, então é algo que temos de abordar se queremos mesmo afirmar que o racismo e a exclusão estão a ser combatidos. Para abordar esta questão do racismo endémico e o privilégio em sociedades ditas cosmopolitas, há vários anos que pessoas e coletivos têm desenvolvido questionários de consciencialização, precisamente para levar a novas reflexões sobre a diferença disfarçada de igualdade. A exclusão que não nos afeta porque vivemos na ilusão da inclusão. Este exercício aqui reproduzido, usando algumas questões tiradas de diferentes publicações 1 e outras da minha autoria, contém apenas algumas das muitíssimas possíveis perguntas:

  1. Já ouviste ou ouves a expressão “cor de pele”? Lápis cor de pele, pensos rápidos e ligaduras em cor de pele, creme base em tons de pele… Essa cor condiz com a da TUA pele?

  2. Se quiseres, estás em ambientes com pessoas da tua ‘raça’ a maior parte do tempo?

  3. Quando ligas a televisão ou abres um jornal, esperas ver pessoas da tua ‘raça’ amplamente representadas? E em instituições públicas, esperas ser atendida/o por pessoas da tua cor?

  4. Mostram-te como as pessoas da tua cor moldaram a história e a civilização para serem o que atualmente são?

  5. Podes estar descansada/o que os teus filhos terão acesso a materiais curriculares que testemunhem a existência e história da sua ‘raça’?

  6. És levada/o a falar em nome de todo o teu grupo étnico? Podes falar publicamente a um grupo poderoso sem pôr a tua ‘raça’ em causa?

  7. Podes ser bem-sucedido/a sem que isso seja atribuído a toda a tua ‘raça’?

  8. Podes facilmente encontrar posters, postais, livros com imagens, brinquedos, bonecos e livros para crianças em que figurem pessoas da tua ‘raça’?

  9. Muitas pessoas da tua cor possuem automóvel próprio, postos de trabalho de chefia, casas no centro da cidade?

  10. Temes que a cor da tua pele afete o tratamento que recebes por parte de autoridades ou instituições? Suspeitas que não te deram trabalho por causa da cor da tua pele?

(Quando se usa aqui o termo ‘raça’ não nos estamos, naturalmente, a referir ao conceito da biologia que se aplica à divisão por grupos de animais da mesma espécie com diferenças genéticas. Nos seres humanos as características genéticas correspondem a uma só raça, mas o mesmo não pode ser dito em termos sociais e culturais, onde se trata as pessoas de modo diferente em função da sua aparência, uma construção social “positiva” para uns e “negativa” para outros, também chamada de processo de racialização.)

E cá em Portugal?

Muita da polémica sobre o privilégio branco tem vindo dos EUA, um território usurpado aos índios americanos e povoado com mão-de-obra escrava africana, onde os negros ainda hoje têm de reclamar que black lives matter, onde atualmente um presidente branco e rico é aclamado pelos seus discursos anti-imigração e onde a extrema direita fez um atentado numa manifestação antifascista, que resultou na morte de uma mulher. Mas cá em Portugal, estarão as coisas melhor? Existe segregação racial em bairros periféricos, morrem miúdos negros às mãos da polícia e mantemos uma imagem do colonialismo que assenta mais nos nossos grandes feitos do que na barbárie que infligimos. Condições perfeitas para que o privilégio branco seja um dado adquirido, mas não assumido.

Em declarações ao jornal Público, no trabalho Racismo à portuguesa de Joana Gorjão Henriques, a artista Grada Kilomba explica o seguinte sobre privilégio branco: “Quando falamos de branquitude estamos a falar de entidades e de estruturas políticas, não de uma pessoa que é boa ou má.” Ou seja, “não tem a ver com moral”. Tem a ver com o facto de, “por questões históricas, sociais e políticas” haver um grupo de pessoas com “acesso a privilégios” (…) “Há um privilégio branco que eu não tenho como mulher negra. Uma mulher branca tem acesso a estruturas, a uma representação, a uma voz que eu não tenho. Quando abro o jornal não me vejo representada, entro num supermercado e não vejo as minhas crianças nos champôs. Sou constantemente confrontada com uma imagem que não é a minha e com a falta de representação. É um privilégio ser representado.”

Mas e nós, @s branc@s ativistas, revolucionários, anarquistas,… @s anti-racistas?

Ao ler algumas das perguntas acima enumeradas, é possível sentir “mas eu não me identifico com os brancos e com esta sociedade; critico os jornais e televisões pelos seus discursos, estejam eles cheios de pessoas de todas as cores ou não, porque o conteúdo não muda; questiono a História ocidental e critico todo o domínio sobre outros e não acho que o colonialismo tuga tenha sido menos mau do que os outros.”

Nós que queremos um mundo com privilégios para tod@s, sem divisões de ‘raça’ ou outras, e em que a diferença seja celebrada, podemos e devemos continuar a falar de privilégio branco. Primeiro, porque ao acharmos que a sociedade não nos condicionou ou que já desconstruímos o racismo, estamos a permitir que certas injustiças, mesmo que nos pareçam micro-injustiças, persistam. E também porque apesar de umas poucas pessoas transgredirem a norma social, não quer dizer que a norma social esteja vencida. Uma pessoa por não se identificar com os brancos não quer dizer que não seja identificada como branca. Segundo Harry Brod, um sociólogo norte-americano, “é preciso que fique claro que não existe tal coisa como abdicar do seu privilégio para estar “fora” do sistema. Estamos sempre dentro do sistema. A única questão é se estamos dentro do sistema para desafiar o status quo ou fortalecê-lo. O privilégio não é algo que eu use e escolha, portanto, não usar. É algo que a sociedade me e, a não ser que eu mude as instituições que mo dão, irá continuar a dar-mo e eu continuarei a tê-lo, por muito nobres e igualitárias que sejam as minhas intenções.” 2

Quando fazes certas escolhas de vida, quando optas por desafiar o status quo, é verdade que também sofres discriminações, perseguições policiais, desconfiança por parte de vizinhos e mais uma série de abusos de poder, com os quais as pessoas de outras cores têm de lidar quotidianamente. A grande diferença está, precisamente, em “escolher”, em “optar”. Não levaste com isso desde que nasceste só porque sim. Mesmo nos casos de outras faltas de privilégios, por exemplo o caso da pobreza, não se sofrem uma série de discriminações que só sofrem as pessoas cujo tom de pele é mais escuro que o dos europeus. De facto, várias pessoas brancas admitem que, mesmo não sendo normativas ou privilegiadas em vários aspetos, usufruem de uma série de condições à priori que pessoas não-brancas não têm. É importante falar sobre isto porque esse privilégio só existe para um grupo porque há outros grupos a serem subjugados.

Existem muitos tipos de injustiças sociais, ambientais e animais, e o racismo é uma delas. Audre Lorde, uma escritora que se definia como negra, feminista e lésbica, afirmou que “A rejeição institucionalizada da diferença é uma necessidade absoluta numa economia de lucro que precisa de excluídos como pessoas excedentes.” 3

Isto é, a sociedade como a conhecemos só se mantém precisamente porque se alimenta da exclusão e da exploração, seja do sexo mais fraco, da classe mais fraca ou da etnia “menos evoluída”. Outro modo de articular este pensamento pode ser afirmando que o racismo é um produto do capitalismo e para acabar com um é preciso acabar com o outro.

Dizer que todas as pessoas brancas são racistas pode ser um erro e pode ofender muita gente, embora eu como mulher branca e ativista anti-racismo esteja disposta a admitir que a minha socialização, o meu crescimento, enquanto branca em Portugal me condicionou de tal modo que é provável que involuntariamente o seja. É a minha opinião que expresso com tristeza embora sem sentimento de culpa. Mas dizer que todas as pessoas brancas são privilegiadas não é uma opinião, é um facto. Esse privilégio só desaparecerá quando houver uma mudança profunda e estrutural na sociedade. Mas é possível abdicar já de outro privilégio que é o do silêncio. 

Ilustração: Daniela Rodrigues

Notas:

  1. Perguntas retiradas e reformuladas a partir de “UNDERSTANDING WHITE PRIVILEGE” por Francis E. Kendall, 2002 e “White Privilege: Unpacking the Invisible Knapsack” de Peggy McIntosh
  2. Tradução literal do parágrafo do autor Harry Brod
  3. Tradução literal da frase “Institutionalized rejection of difference is an absolute necessity in a profit economy which needs outsiders as surplus people.” da autora Audre Lorde

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Written by

M. Lima

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