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Lendo: Salvo-conduto II

Salvo-conduto II

Salvo-conduto II


(Continuação da edição anterior)

«Um monge, que me observava, perguntou-me:
– Porque alimentas os corvos e varres as formigas do caminho?
– Porque gosto de corvos e não gosto de formigas.»
Tenkei Denson (1647-1735)

“Eichmann em Jerusalém”, de Hannah Arendt, é obra de relevo, não tanto por registar o holocausto judeu e/ou o linchamento do nazi alemão, mas por assinalar a relação entre o burocrata e a instituição da tirania. Eichmann não é só um indivíduo que cometeu crimes numa determinada época e nação, mas passa a ser o modelo representante de todo um sistema civilizacional, cujas possibilidades de aplicação foram desenvolvidas até à náusea: a “banalidade do mal”. A burocracia reproduziu-se exponencialmente e aperfeiçoou os seus dispositivos de poder: tornou-se tecnocracia. Eichmann é o tipo que mata à distância, sem sujar as mãos de sangue, um mero funcionário obediente ao seu superior hierárquico, cumprindo ordens, telecomandando e telecomandado, relegando a acção em extensões e drones tecnológicos. Aquilo que o compromete e o torna culpado não é a violência directa sobre as vítimas, mas o mero facto de ser um intermediário que não se opõe a trâmites cujo fim é o extermínio de uma determinada classe de seres.

Eichmann está no meio de nós. A buro-tecno-cracia acarreta ainda outras ameaças: o perigo da ocultação por detrás de nomes de código. O mesmo truque foi usado na “Solução Final”, na “Operação Tempestade no Deserto”, numa imensidade de químicos industriais do tipo do ZetaFlow (marca sonante que esconde fortes poluentes usados na fracturação hidráulica e que contaminam as águas subterrâneas), no “Banco Insular” (a máscara do BPN e respectivas construções na Aldeia da Coelha)… Um nome apelativo mascara tudo, serve para vender tudo. Por isso, na escola, aprende-se mais a copiar nomes do que a questioná-los, a revirá-los do avesso, a investigar o que escondem. Pretende-se formar bons cidadãos, quer dizer, bons consumidores e replicadores dos nomes que a máquina de propaganda mediática põe em circulação. Por exemplo, os partidos em que a população vota são aqueles cujos nomes aparecem nos grandes meios de comunicação social, repetidos até à exaustão; os outros não são ninguém, não têm nome na praça. A lavagem cerebral é evidente.

Por que é que, no Governo, abundam indivíduos com o curso de Direito? Não é, por excelência, o treinamento que prepara o burocrata-legislador? O fascismo burocrático impõe-se como uma lei transcendente sobre o socius. Você, funcionário de Banco ou de um serviço público, que julga estar apenas a cumprir a sua tarefa sistemática para receber um ordenado miserável ao fim do mês, é um Eichmann em potência. Ou você, juiz e senhor da lei, que assina e dá seguimento a dezenas de processos e condenações em série, usando apenas papel e tinta, é um Eichmann realizado, mesmo que nem se chame Eichmann. Ou você que, ouvindo dizer que um cão de raça perigosa abocanhou até à morte um bebé de poucos meses, reclama o fuzilamento canino para desencorajar a impunidade é um Eichmann esquecido de que a raça mais perigosa de todas é bem capaz de ser a sua. Ou você que acha que a Suíça tem um sistema muito melhor que Portugal, porque os inspectores fiscais entram em casa para averiguar e conferir o que cada um tem… Este tipo de discurso indicia que são os próprios cidadãos a submeterem-se ao jugo dos burocratas estatais: é o “Zé-Ninguém” que deseja o fascismo, perversão que Reich tão bem descreveu. A pedido dos civis – “mais trabalho, mais segurança, mais fiscalização!” – o Estado-Sanguessuga foi-se instalando em todas as articulações do nosso corpo social, pré-paralítico, apertado entre torniquetes, em que quase todos os fluxos são mediados por um imposto de passagem (o salvo-conduto pago a peso de ouro, em tempo de guerra). Seja o que for que pense em empreender no domínio material – colocar um anúncio, estacionar uma viatura, pedir um livro de cheques, registar uma escritura, etc., etc. – o Estado tem de comer. Então, as palavras de Alejandro Jodorowsky ganham um tremendo sentido: «Qualquer pessoa com um ofício conhecido – sapateiro, padeiro, médico, pintor, engenheiro, etc. – é uma presa para o Estado. Ter um ofício normal é perder a liberdade. Temos de exercer ofícios desconhecidos, que não tenham interferência na vida material, mas sim que produzam estados de consciência». O Estado é como o porteiro que exige um suborno para deixar alguém passar ou autorizar que determinada operação se realize. Interessa-lhe tornar tudo propriedade privada e segmentar esta ao máximo, porque é entre-segmentos que ele se coloca como cobrador de imposto, portanto, quantos mais segmentos houver, maior o seu proveito. Arendt, em “O Sistema Totalitário”, expôs de que forma a compartimentação dos indivíduos servia aos regimes totalitários. Os domínios parasitados pelo Estado são hoje inúmeros e as malhas estreitam-se diante das infinitas possibilidades de cruzamento de dados (CRM e business intelligence como armas de predação): é o trabalho, a família, a habitação, o ensino, a saúde, o consumo, a património, a circulação viária, o inves- timento, etc. Diante de tais estratagemas, Isabelle Eberhardt é ainda mais crítica do que Jodorowsky: «Há um direito que só muito poucos intelectuais cuidam de reivindicar: o direito à errância, à vagabundagem. E no entanto, a vagabundagem é a emancipação, e a vida ao longo das estradas, a liberdade. (…) Ter um domicílio, uma família, uma propriedade ou uma função pública, meios de existência definidos, eis outras tantas coisas que parecem necessárias, indispensáveis quase, à imensa maioria dos homens, incluindo até mesmo os intelectuais que se crêem mais emancipados. Todavia, todas essas coisas são apenas formas variadas da escravidão (…)».

O que nos choca não é que a taxa de desemprego seja cerca de 20%, mas que não seja muito maior…

As formigas são uma sociedade milimetricamente organizada e silenciosa. Por comparação, os corvos formam um bando barulhento e desorganizado. Ambos são negros como a noite. A rainha das formigas segrega uma hormona que serve para manter um número massivo de operárias sob o seu controlo hipnótico, trabalhando automaticamente em prol do ninho imperial. Pelo contrário, o corvo é uma ave de comportamentos irregulares, pouco conivente com uma homogeneidade de grupo. Quando voa em bando, com quanta descontinuidade o faz: há sempre um corvo que ficou para trás, outro que se deteve a furtar comida, moedas, ovos de outros ninhos… São várias as tribos, nomeadamente norte-americanas, que fizeram do corvo um animal de elevado grau totémico. O corvo é como o índio: recusa trabalho que não seja por sua própria conta e risco. Os colonizadores europeus das Américas tiveram de importar escravos africanos, porque os índios nativos consideravam grande indignidade trabalhar por conta de outrem, preferindo a morte. No folclore português, o corvo foi popularmente tipificado como ladrão, ave de olhar arguto, sensível ao mínimo brilho das coisas a longas distâncias. Não são estas características que fazem os bons ladrões? “Ladrões” deriva originalmente do latim “laterones”, laterais, vigias que ladeiam o imperador, nada mais fazendo do que estar atentos, para preveni-lo ou protegê-lo com o seu corpo no caso de eventuais ataques. Um crocitar de corvo o avisa.

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Jornal Mapa

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