Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Quem matou o juiz?… Foi Mortágua!
Na noite de domingo para segunda-feira, 24 de novembro de 1365, o Juiz de Fora, João Menga, foi justiçado por populares de Mortágua. Apesar de inicialmente ter escapado pelas traseiras de sua casa à multidão clamorosa que ali o buscou, não resistiu à perseguição posterior que terminaria nas fráguas do rio Cris, a cujas águas turbulentas foi atirado já cadáver.
Esta informação está fundamentada na versão do poeta, escritor e historiador Tomás da Fonseca 1, natural daquela vila beirã, sobre os factos lendários que constituíram um acto de afirmação da dignidade de um povo face ao poder discricionário de um juiz que perseguia os pobres e protegia os ricos.
Muito provavelmente a notícia não teria chegado aos nossos dias se tivessem sido apontados os autores materiais da morte do Juiz, na inquirição que inevitavelmente se lhe seguiu. O desenrolar dos factos não está documentado, mas a ausência de provas ou documentos coevos sobre o ocorrido não impediu que a “lenda” da morte do Juiz de Fora tenha chegado até aos nossos dias sintetizada na pergunta: “Quem matou o Juiz?”, que os investigadores dirigiram aos populares, e na resposta unânime, que deles arrancaram: “Foi Mortágua!”.
Existem várias versões da “lenda” que sobreviveu até hoje pela tradição oral. A mais inverosímil, atribui a um fidalgo local não a morte mas sim a mutilação do juiz, despeitado pela decisão do magistrado de punir um lacaio seu no pelourinho da praça, e mais parece uma tentativa de desinformar sobre o que realmente terá ocorrido. As outras coincidem no fundamental dos relatos, enfatizando a parcialidade e os abusos no exercício do poder de juiz, que teriam levado os vizinhos de Mortágua a fazer justiça com as próprias mãos e a posterior assunção da morte do modo referido perante os investigadores.
De todas as versões, aquela que se apresenta mais estruturada é a publicada em 1919 por Tomás da Fonseca. Encontramo-la no seu livro “Memórias do Cárcere (Diário de um prisioneiro político)” 2, escrito durante a sua prisão na Penitenciária de Coimbra, em novembro de 1918, quando para ali foi atirado na companhia de outros sete conterrâneos, acusados de organizarem um “complot” em Mortágua por ocasião da revolução de 12 de Outubro, que eclodiu em Coimbra e que foi imediatamente sufocada, durante a ditadura de Sidónio Pais.
O autor conta-nos ter sonhado numa das noites de reclusão que está com os seus companheiros na sala de um tribunal, presidido por Sidónio Pais, na condição de réus do crime de homicídio voluntário na pessoa do Juiz de Fora. Aproveitando as várias fases da audiência de discussão e julgamento, leitura do libelo acusatório, da prova testemunhal e das declarações dos réus, Tomás da Fonseca transporta-nos à época, aos antecedentes, às circunstâncias e aos cenários em que terá sido morto o famoso juiz. Da leitura dos depoimentos fica-se a saber que à pergunta: quem matou o juiz? os declarantes davam uma única resposta: foi Mortágua. Quando o tribunal finalmente lhe dá a palavra, começa por afirmar: “Eu falo a linguagem da história e como historiador estou depondo…”, o que parece querer conferir algum rigor a esta versão ficcionada, a única onde o Juiz de Fora aparece com nome e apelidos, naturalidade e filiação.
No decorrer do julgamento ficamos a saber que os conflitos começaram desde a chegada do novo juiz a Mortágua, obrigando o povo a pagar o imposto agrário, a observar as leis do fisco e a respeitar as determinações do representante do poder real. São narradas as reformas a favor dos fidalgos da terra, que podiam caçar à vontade, por toda a parte, invadir as terras municipais, até então privilegiadas. O clero podia lançar as derramas que julgasse necessárias e, quanto à côngrua, o pároco podia confiscar os bens àquele que a não pagasse. Por outro lado, são descritos vários casos de reclamações de populares não atendidas, de espoliação de bens perante a passividade ou parcialidade do juiz, condenações a trabalho gratuito nas terras dos nobres à mínima falta. As injustiças vão sendo narradas em crescendo até que uma sentença desproporcionada, de condenação a dois anos de prisão e confisco de um terço dos bens de um pequeno proprietário, por ter espancado uma matilha de cães de um fidalgo que lhe tinha invadido as suas hortas, tendo ferido um deles numa pata que gangrenou, de que resultou a morte do animal, acendeu o rastilho da conspiração que se estendeu a todas as aldeias do termo de Mortágua e acabaria com a morte do juiz.
“À hora convencionada, 11 da noite, uma grande vozearia atroou o pequeno burgo, ao mesmo tempo que um grupo de populares lhe invadia a casa, para o lançar pela janela, entregando-o, desse modo, à justiça popular. João Menga, porém, mal sentiu aquele estranho vozear, saltou pelas traseiras, de punhal em riste,conseguindo atravessar os quintais em direcção à ponte”. Segue-se a descrição pormenorizada da montaria que se seguiu, do povo em grupos que acorria de todas as direcções, com lanternas e fachos de palha acesos, armados com alfaias agrícolas, do cerco que se foi apertando e do final da fuga desesperada nos penhascos do rio Cris, quando “uns punhos cabeludos e uns dedos de ferro, que se lhe prendem à garganta, como se fossem varas de aço, o estrangulam”. O cadáver foi lançado na corrente “que o levou e, para sempre, o escondeu, guardando um tal segredo, que, até hoje, nunca mais houve indícios de tal corpo, restos de tal juiz”.
Um século mais tarde, no país vizinho, os habitantes de Fuenteovejuna, perto de Córdova, cansados dos abusos de poder e atropelos, revoltaram-se contra a autoridade representada pelo Comendador da Ordem de Calatrava e fizeram justiça pelas suas próprias mãos, matando-o. Lá como em Mortágua, os investigadores encarregados pelos reis católicos de averiguar os factos depararam-se com a mesma atitude dos populares: “Quién mató el Comendador? Fuenteovejuna, señor.”. No princípio do século XVII, Lope de Vega, poeta e dramaturgo espanhol, adaptaria estes acontecimentos numa obra teatral, dando-lhe a publicidade que os factos de Mortágua nunca tiveram. Claro que as circunstâncias foram muito diferentes, em Fuenteovejuna a morte do Comendador serviu para o reforço do poder centralizado da monarquia contra os senhores feudais, o ocorrido em Mortágua não servia os interesses de nenhum poder, antes pelo contrário. Esta talvez seja a explicação para a inexistência de referências documentais sobre os acontecimentos.
A lenda do Juiz de Fora, motivo de conflitos e picardías entre os da terra e os de fora, que, das janelas do comboio ou quando a ocasião se proporcionava, provocatoriamente perguntavam: “quem matou o juiz?”, (obtendo normalmente como resposta: “foi o teu pai com os cornos”, acompanhado do lançamento de tudo o que tivessem à mão), é hoje considerada património cultural de Mortágua. No início dos anos noventa foi pela primeira vez dramatizada e levada à cena tendo como protagonistas centena e meia de mortaguenses.
Aqueles que puseram a guarda a lavrar
Aproveitando o contexto deste artigo, vale a pena referenciar um outro episódio menos conhecido, com menor dimensão e diferente, que questiona a autoridade automatizada, quando o povo de Loisa, Moncorvo, no final dos anos 20 do século passado, já em ditadura, se dispôs a pôr dois GNRs a lavrar, com canga e arado, por se terem atrevido a dar voz de prisão a um aldeão que encontraram na taberna da povoação, onde tinham coincidido a comer e beber, com dois coelhos bravos pendurados do cinto em época de defeso. “Os loiseiros, que na sua terra se sentiam livres e donos dos seus recursos (incluindo os cinegéticos, está bom de ver), não podiam submeter-se a tal vexame. Poderiam lá consentir que um dos seus fosse preso por dois bichos-caretos, apenas por haver caçado uns laparotos como complemento à pobre dieta, láparos esses nados e criados no seu país?” 3 Desarmados os guardas, foram buscar a dita canga e o arado e está por se saber se apenas os ameaçaram que os poriam a lavrar ou se de facto tal aconteceu. A partir daí, os Loiseiros passaram a ter a fama de ser “aqueles que puseram a guarda a lavrar”, a repressão chegou a seguir…
Notas:
A story about
Mortágua
Muito interessante.
Quando parecia que estava tudo dito e esquecido…surpreendente esta inusitada “investigação”! Parabéns!
Bom artigo! se quiserem aprofundar mais um pouco mais a dramatização da lenda efectuada em 1992, podem obter imagens e informação no seguinte link: http://www.youtube.com/user/gojd8591/videos
Parabéns
Mortagua tem “CRIADO” bons exemplos de pessoas tanto ilustres como atleticas.Que a estoria continue a ser escrita!Fui e sou um grande admirador de:TOMAS DA FONSECA (um santo que nao acreditava em deus).Talvez entrasse na minha lista dos bons quando passava por Pala (a cavalo) em direcao das Laceiras…me atirava (dois mil e quinheitos) 2.50 escudos e dizia:E para os rebucados!…Em 1968 eu era a pessoa (entre uns 150)que estava presente no cemiterio de Mortagua onde estavam recitando a sua memoria…E, do lado de for a os GNRs de Mortagua e S.Comba Dao..todos eles armados rpontinhos para nos levarem preso caso fosse dito algo contra SALAZAR. Boas recordacoes de um GRANDE MORTAGUENSE… Aqui Sydney 30-5-2013….”GAIO”
excelente, gostei muito de ler e conhecer.
Andei na tropa com um camarada de Mortágua,e ele jogava a bola na minha equipa, e de vez enquanto ouvia-se do publico ao meu camarada que era da terra aonde se matou o juiz e ele não gostava muito,agora fiquei a saber que era duma terra dum povo que não se deixou humilhar.
Longe vai esse tempo, em que os Mortaguenses eram unidos e não se deixavam espezinhar. Agora não temos Juíz de Fora, mas há vinte e tal anos Presidente de Fora… Que sobre falsos lemas “Por Mortágua” aproveitam para meter algum ao bolso…
Ja ouvi contar essa historia em Angola ha mais de 40anos.Noutra versao,claro.Gostava de saber se o autor do nome de Juiz de Fora dad a uma cidade no Brasil,seria natural da regiao de Mortagua.Se sim teve muito exito porque e uma cidade com uma certa importancia para pais.
otimo site