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Lendo: Power Rangels e um grande amor-monstro-sonoro

Power Rangels e um grande amor-monstro-sonoro

Power Rangels e um grande amor-monstro-sonoro


Power Rangels, um coletivo a construir um Soundsystem ou um Soundsystem que construiu um coletivo.

No Brasil, sistemas de som estão a ser usados para desligar drones. Na Colômbia, desde os anos 50 que a cultura Picó e os seus sistemas de som garantem que todos têm acesso à música e à festa. Um pouco por todo o mundo, os sistemas de som são indispensáveis nas ruas: animam paradas carnavalescas, dão voz a manifestantes e prolongam a vida de manifestações, reclamando para si as ruas, as vozes e a dança. Neste artigo, não vos venho falar sobre música ou frequências elétricas. Não por não ser curiosa ou não gostar, mas porque percebo pouco do assunto e sei de pelo menos 15 mulheres que o poderão fazer melhor do que eu: as Power Rangels, um coletivo a construir um soundsystem ou um soundsystem que construiu um coletivo.

No princípio era o soundsystem
Na sala de cinema da Casa do Comum, em Lisboa, num evento organizado pelas Power Rangels para angariar fundos para a construção do seu sistema de som, sentam-se à conversa alguns membros do coletivo.

Explicam-nos que a conversa funcionará nos mesmos moldes que as suas reuniões: com ordem de trabalhos, tempos para cada um dos temas e uma moderadora. Haverá momentos para falar e intervir, mas também tempo para ouvir.

Descrevem o início rápido e espontâneo do coletivo e como tudo começou num cenário familiar a todos nós: um grupo de amizades, uma ideia louca e vontade de avançar:

«Toda a gente já teve uma ideia maluca à volta de uma mesa a beber jolas. Há ideias que ficam para trás e outras que… De repente, se transformam num grupo de whatsapp, com uma de nós a dizer que arranja drivers e horns com 60% de desconto, isto foi um boost».

Explicam-nos que existem diversas formas de começar um soundsystem, mas que na maioria das vezes sabe-se pelo menos o que se quer: se o objetivo é ter um sistema de som para música Dub, então vão procurar-se as peças mais adequadas, as que melhor potenciam esse género de música. As Power Rangels começaram noutro lugar:

«Queremos construir um sistema de som, não percebemos nada do assunto, mas temos uma janela de oportunidade para comprar [o material], então acabamos por comprar o que nos foi aconselhado. De um sistema de som boutique acabamos com drivers de 18 polegadas, cada um a pesar 13kg, e um sistema de som impossível de ser mexido apenas por uma de nós. Aí percebemos: isto não vai ser coisa pequena».

Falar de soundsystem é falar de rave e a rave é política. É sobre coletivização do prazer, auto-organização, desconstrução das normas sociais do lazer, resgatar a diversão das lógicas capitalistas

Algo do Género, Rave
Falar de soundsystem é falar de rave e a rave é política. É sobre coletivização do prazer, auto-organização, desconstrução das normas sociais do lazer, resgatar a diversão das lógicas capitalistas: é falar de diversão grátis, sem porteiro nem venue, do gesto hedonista de escolher dançar em conjunto em vez de trabalhar.

Num fim de tarde de abril, em 2023, no rescaldo de uma free party, acontece, sem as próprias saberem, o primeiro encontro das Power Rangels. Por obra do acaso, um grupo de dez pessoas, todas elas identificando-se como mulheres, sentam-se a uma mesa e falam sobre o potencial empoderador da rave, os seus contornos políticos e as questões de género na organização da mesma.

Na conversa, torna-se claro para todas que, na maioria das festas, o trabalho de produção – controlar o som, montar o sistema de som… – é um trabalho predominantemente masculino, e que o trabalho reprodutivo da festa – manter o espaço organizado, preparar comidas… – é um trabalho cumprido pelas mulheres.

Esta conclusão espoletou uma espécie de «disforia coletiva», como descreve uma das Power Rangels. Um desconforto com o facto de, mesmo num lugar que se supõe dissidente, se continuarem a cumprir as mesmas regras e padrões sociais. Este desconforto, um gatilho, rapidamente se transformou numa vontade de agir, de mudar as regras e de aprender, em conjunto, a fazer parte de todos os momentos da construção de uma festa. E então alguém sugere: «e se construíssemos o nosso soundsystem?».

«Desconstruir a ideia de que é impossível alcançar coisas»
Se esta aventura surgiu de alguns acasos e espontaneidade, surgiu também de uma vontade emancipadora, da busca por autonomia e empoderamento. A construção de um sistema de som, que era o primeiro objetivo, rapidamente se tornou no objeto que materializa vontades mais profundas:

«Nas primeiras conversas, o delírio coletivo do soundsystem trazia também uma vontade de aprender sobre a parte mais técnica, sobre o som. Todas nós, de uma forma ou de outra, estávamos ligadas ao som, mas na verdade tínhamos poucas ferramentas e conhecimentos, queríamos muito aprender, mas sentíamos que não tínhamos muito espaço em determinados lugares para o fazer. Então decidimos aprender em conjunto», partilha uma das Power Rangels.

Com os materiais básicos comprados e o grupo formado, que, por razões logísticas, se fechou nas 15 pessoas, o delírio tornou-se real. Agora, restava-lhes perceber o que fazer com o que tinham em mãos e por onde começar.
Por coincidência ou não, uma das companheiras do grupo é eletricista e, no primeiro encontro intensivo, começaram pelo início: uma aula sobre eletricidade e sistemas elétricos básicos. A segunda foi sobre o som, como o sentimos no corpo, como o percepcionamos.

A partir daí foram aprendendo juntas, espantaram-se em conjunto. Perceberam umas com as outras que a «eletricidade não explode» e que o conhecimento não está encoberto e «guardado pelos homens», que existe na internet, em livros, à nossa volta e que afinal não é assim tão intimidante.

Neste processo, continuaram a cruzar-se com as várias expressões de uma sociedade hiperespecializada e «genderizada», e com a forma como ela nos sujeita a determinadas funções, encurtando-nos assim a capacidade de ver para lá das suas normas. Sobre isto, uma das Power Rangels partilha:

«Uma coisa que este processo nos tem ensinado é que as coisas nos são passadas enquanto muito difíceis. Sempre que fazes perguntas é-te dado a entender que é muito difícil, que não vais conseguir perceber ou fazer. Isto está muito ligado com a sociedade em que vivemos, mas também com questões de género. Este projeto está-nos a ajudar a desconstruir esta ideia. As coisas são difíceis e complexas, mas passo a passo temos sempre vindo a desbloquear tudo e a conseguir avançar juntas: desconstruir a ideia de que é impossível alcançar coisas.»

Mais adiante, outra companheira continua: «começamos a perceber que em muitos casos, nós enquanto mulheres, somos educadas a perguntar, a pedir ajuda. Então e se aprendêssemos juntas? Então e se criássemos esse espaço de aprendizagem para nós? E se juntássemos as skills que já temos e agíssemos sobre elas? Gostávamos que no final todas soubéssemos que soundsystem temos e como operá-lo».

Tomaram então a decisão de que não era muito relevante que o soundsystem estivesse construído no final do ano ou só no próximo verão, mas sim que todas acompanhassem todos os pontos do projeto e que soubessem o que estava a acontecer em cada momento.

A organização e modo de operar do grupo passou a refletir estes objetivos. Formaram-se grupos de trabalho, cada um com objetos de estudo distintos, trabalhos de casa e a função de encontrar soluções para os problemas que iam surgindo.

Depois, são marcados encontros e reuniões, alguns online, dado que muitas das Power Rangels não vivem no mesmo sítio, sessões intensivas nas quais são partilhadas as aprendizagens de cada grupo garantindo que tudo é explicado e transmitido devidamente.

Destas sessões surgem questões, são percebidas as limitações técnicas ou práticas e, a partir daí, definidas novas direções: é decidido que assuntos aprofundar, transformando as limitações em guias orientadoras.

O Pessoal é Político
Se o entusiasmo inicial de uma ideia brilhante, tida e levada avante coletivamente, é uma força capaz de mudar marés, fazer parte e viver um coletivo é um feito sisífico. Da gestão de conflitos, às subjetividades de cada uma, o objetivo de aprender mais sobre som e as suas questões técnicas transforma-se em algo maior: aprender a estar num coletivo, neste caso só de mulheres.

Na intimidade confortável dos primeiros encontros, não sentiam necessidade de se afirmar politicamente ou de ter uma posição conjunta sobre a sua própria constituição. Foi quando precisaram de organizar o seu primeiro benefit e criar uma identidade pública, que o privado se tornou realmente político e deixaram de ser apenas um grupo de amigas para se transformarem nas Power Rangels, um coletivo.

«Muita energia foi focada na questão de como nos vemos, consumiu-nos imenso. Os nossos maiores embates, as nossas conversas mais longas têm a ver com isto: como nos identificamos para o exterior. Cada corpo tem uma história diferente, somos 15 mulheres, mas não somos um coletivo queer, temos um range de idades gigante. Então o que somos?».

Outra conta-nos: «estar pela primeira vez num grupo só de mulheres fez-me perceber as diversidades e subjetividades dentro disso [ser mulher], e que é possível encontrar um lugar de discussão saudável».

Ao longo da conversa refletem sobre como as dinâmicas de poder se constroem à volta de questões como o género, mas que existem para lá dele: «neste processo damos por nós a replicar as mesmas dinâmicas que criticámos “lá fora”, nas quais são sempre os mesmos a fazer as mesmas coisas, e então percebemos que para lá do género há outras camadas, de personalidade e outras. Mas se temos consciência de que replicamos as mesmas dinâmicas que estamos a criticar, então podemos ter agência sobre elas e tentamos mudar, e para a próxima trocar de funções. Este é um dos powers das Power Rangels. (…) Desafiar–nos: muitas vezes quando gostamos de um lugar e nos cingimos somente a ele é porque estamos confortáveis nesse lugar e então é importante desafiarmo-nos. Se não sabes nada sobre eletricidade, este é o lugar para aprender. Diferenciar entre gostar e estar confortável».

Cada corpo tem uma história diferente, somos 15 mulheres, mas não somos um coletivo queer, temos um range de idades gigante. Então o que somos?

A ecologia do parafuso
Na mesma sessão da Casa do Comum, refletem sobre as opções tomadas ao longo do percurso e concluem que o sistema de som que estão a construir não é o mais sustentável. Com madeiras vindas da Polónia, parafusos da Alemanha e peças da China, poderiam ter feito de outra forma?

«Havia tanta pressão pelo facto de sermos mulheres a fazer isto sozinhas (…). Claro que existem pessoas que sempre nos apoiaram e continuam a empoderar, mas no início houve muita resistência, questionamento e dificuldades nesse sentido. Então estas opções que tomamos eram uma espécie de garantia de que isto ia acontecer, porque se falhássemos ia ser um grande falhanço e não queríamos falhar porque escolhemos a madeira errada. Isto também levantou uma série de questões entre nós no sentido de nos relembrarmos (…) de onde partimos: sobre o processo, sobre aprendermos, sobre trocarmos ideias e empoderar-nos enquanto mulheres com interesse em aprender sobre som».

Apesar das circunstâncias das quais partiram as ter levado a tomar determinadas opções, ressalvam que, com algum conhecimento de construção, outros caminhos mais criativos e sustentáveis são possíveis: da reciclagem das «colunas da aparelhagem do avô» à utilização de materiais menos convencionais como o cartão ou a cerâmica.

Hora de aquecer o corpo
Quase dois anos após a sua formação, várias festas de benefit e um longo caminho de discussão e aprendizagem, o futuro do coletivo é incógnito. Não sabem se continuará a existir após a construção do soundsystem ou se passará a existir apenas para o gerir. Para o futuro, guardam a vontade de partilhar o que aprenderam, de fazer ouvir o sistema de som na rave e para lá dela: nas ruas, em manifestações e que possa ser usado por outros coletivos que precisem.

Concluem que um dos pontos de financiar o soundsystem através de benefits é também o de diluir a propriedade privada sobre ele. Têm noção das horas de trabalho e tempo investido na sua construção, mas agradecem o que este «delírio coletivo» lhes tem trazido e que «no fundo é um sistema de som coletivo. Não sabemos ainda como vamos gerir isto, mas não temos o objetivo de ter propriedade sobre o som, sobre o conhecimento».

A nós resta-nos esperar o convite para a primeira festa, que preveem para breve. Ir aquecendo o corpo para dançar em conjunto e manifestar mais ideias loucas e amizades sentadas à mesa com vontade de lhes dar vida.

As Power Rangels deixam o seu contato para os que ficaram curiosos: powerrangelss@gmail.com


texto publicado no Jornal MAPA nr. 45 [AbrilJunho2025]
FOTOS: POWER RANGELS


Written by

Inês Vegetal

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