Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: A revolta da Sérvia
É como o Maio de 68, mas melhor: os protestos estudantis eclodiram a 1 de novembro de 2024 e continuam ininterruptamente até hoje. A faísca foi a morte de 16 pessoas no desabamento de um telhado na estação ferroviária de Novi Sad. A tragédia não foi entendida pela população como um acidente, mas como o resultado de algo que ultrapassa a negligência: um total desrespeito pela perícia necessária para reparar o telhado e pelas vidas humanas. Esta situação foi agravada pelo governo de Aleksandar Vučić quando negou que a renovação tivesse sido feita quatro meses antes, à vista de toda a gente. Não conseguiu responsabilizar ninguém nem fazer justiça, expondo a face mais cruel de um autoritarismo que vê todos os valores como transacionáveis entre o Leste e o Oeste 1. Com uma sociedade submetida ao regime do Partido Progressista Sérvio (SNS) e dos 10 empresários que controlam a economia 2, os estudantes são o único grupo capaz de se mobilizar socialmente: montam barricadas, ocupam as ruas e constroem um movimento legítimo para contestar a corrupção generalizada das instituições públicas. Fazem alianças com agricultores, professores e advogados, enfrentam a repressão e organizam-se com base na democracia direta e na entreajuda.
A sua luta já deveria ter feito história no Ocidente, não fosse o choque entre o genocídio de Gaza e a administração Trump, que ofusca a mobilização de dezenas de milhares de pessoas que ocorre a apenas 3047 quilómetros de Lisboa. Entrevisto para o MAPA Adriana Zaharijević, filósofa, e Tijana Matijevic, académica de estudos literários e culturais, ambas investigadoras do Instituto de Filosofia e Teoria Social da Universidade de Belgrado.

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Começo por perguntar: que repressão enfrentam os manifestantes na Sérvia?
Adriana Zaharijević – É um caso de violência económica sem precedentes sobre todo o sistema educativo de um país – uma vez que todas as universidades sérvias, cinco, foram tratadas de igual forma. Também tenho orgulho em dizer que a maior e mais antiga delas, a Universidade de Belgrado, onde eu e a Tijana trabalhamos, está no topo das universidades mundiais. Os professores, devo acrescentar, foram sempre castigados, uma vez que, a partir de meados de março, não lhes foram pagos os salários. O mesmo aconteceu com os professores do ensino secundário que protestaram. Os professores universitários receberam parte dos seus salários de fevereiro há apenas uma semana 3.
Não só os estudantes, mas também os alunos do ensino secundário, estiveram no bloqueio durante a maior parte do ano letivo e só voltaram às salas de aula em maio, após quatro meses de protestos. Tudo estava incerto – e foi adiado: os exames do final do ensino secundário, bem como a inscrição na faculdade. O Ministério da Educação, atualmente designado Ministério da Vingança (jogo de palavras: (pr) osveta, uma vez que prosveta é educação e osveta é vingança), continua a fazer tudo o que pode para castigar as universidades e as escolas e, através delas, os professores e as crianças, os alunos e os estudantes.
O regime sérvio ofereceu, desde o início dos protestos, negociatas e benefícios aos estudantes e, ao mesmo tempo, difamou-os e amaldiçoou-os.
O regime sérvio ofereceu, desde o início dos protestos, negociatas e benefícios aos estudantes e, ao mesmo tempo, difamou-os e amaldiçoou-os. Não houve repressão aberta e contínua, talvez porque o regime quisesse dar para o mundo exterior uma imagem de tolerância democrática face aos protestos. Mas internamente, a um ritmo diário, as conspirações e a caça às bruxas eram continuamente difundidas pelos meios de comunicação social controlados pelo governo, ou seja, pela maioria dos meios de comunicação social da Sérvia. Desde o início dos protestos, as narrativas mudaram e foram sendo ajustadas, embora nenhum desses ajustamentos tenha dado frutos: os estudantes foram retratados como mercenários estrangeiros, espiões dos países vizinhos, bolcheviques, nazis, fascistas, terroristas. São acusados, recorrentemente, de terem desencadeado a «revolução colorida», financiada pelo Ocidente misteriosamente codificado. Nos primeiros dois meses, os estudantes e os cidadãos que se juntaram a eles para as vigílias comemorativas diárias foram espancados ou atacados por condutores impacientes, alguns dos quais a mando do regime. Alguns dos que foram efetivamente presos foram recentemente amnistiados pelo Presidente e estão em liberdade como heróis.
Para além da violência económica mencionada, sem precedentes, tanto quanto sei, na Europa, onde todo o pessoal universitário ficou sem salários durante meses, as pessoas que trabalham em instituições estatais foram ameaçadas de despedimento, tendo as suas contas nas redes sociais sido monitorizadas. Muitos perderam os seus empregos. Os cinco ativistas de Novi Sad foram detidos como presos políticos. Cumprem atualmente a pena de prisão domiciliária. Alguns foram recentemente libertados e aguardam a defesa em liberdade.
No entanto, as formas mais flagrantes de repressão podem ser relacionadas com o dia 15 de março, uma das maiores concentrações da história de Belgrado, quando foi utilizada uma arma sónica. Este incidente já foi esquecido fora da Sérvia, bem como na Sérvia, devido à enorme quantidade de acontecimentos que se sucederam, mas quero salientá- -lo como um ato de terrorismo do Estado contra os seus cidadãos, em que, por pura sorte (ou uma espécie de calma aprendida durante as intermináveis vigílias comemorativas – a arma foi acionada no meio do silêncio pelos mortos), as pessoas não se puseram em perigo. Vejam o vídeo 4.
A repressão foi particularmente persistente nos primeiros dez dias de julho. No final de junho, cerca de 140.000 pessoas concentraram-se em Belgrado. Depois disso, o regime começou a prender os estudantes, colocando-os em carros aleatórios e levando- -os para direções desconhecidas. A resposta dos cidadãos foi a realização de manifestações pacíficas. A 29 de junho, 31 locais em Belgrado e 108 em toda a Sérvia foram bloqueados, o que se prolongou por vários dias. Após a sua dispersão, os bloqueios surgiram noutro local: as pessoas atravessavam incessantemente as passadeiras, cantavam nas ruas ou passavam da rua para a zona pedonal vezes sem conta. Tudo isto na presença da polícia, que ora «vigiava» os protestos, ora espancava ou dispersava. A repressão muito aberta está no auge, por estes dias. Ontem [13 de agosto], 29 cidades e vilas estavam em protesto. Pela primeira vez, o exército manifestou a sua presença.
Tijana Matijevic – A repressão em curso é bastante versátil, variando entre a violência física direta e uma ameaça quase palpável de violência que paira no ar. Isto produz um efeito duradouro de angústia e influencia o nosso comportamento, quer queiramos, quer não. Trata-se de um mecanismo de repressão bastante poderoso. Recentemente, passei algum tempo no estrangeiro e pude aperceber-me claramente das circunstâncias bastante brutais em que vivemos diariamente, que foram levantadas pelo simples facto de residirmos noutro local. No que respeita à violência física, não são só espancamentos pela polícia, na melhor das hipóteses, ou por bandidos ilegalmente fardados, esta começou a escalar para a quebra literal de ossos. Há violações incomparavelmente mais graves dos direitos humanos e das vidas humanas em todo o mundo – mais graves, naturalmente, em Gaza –, pelo que a situação sérvia parece quase serena. Trata-se, no entanto, de uma forma de fascismo. Acredito firmemente que temos de começar finalmente a designar o fenómeno da violência política pelo seu verdadeiro nome, e que este inclui a violência contra a natureza, o património cultural das nossas cidades, a vida urbana e a cultura, até a ameaça à nossa própria vida. É claro que a lógica económica permeia toda esta dinâmica. Os protestos e a reação repressiva do regime marcam o culminar de um processo prolongado de desregulamentação e destruição na Sérvia. A situação agravou-se.
Poderão ser mais bem protegidos se houver atenção internacional?
AZ – A resposta é, naturalmente, sim. Nenhuma das quatro reivindicações iniciais dos estudantes foi satisfeita e a exigência de eleições, agora abrangente, também é ignorada. Os estudantes correram e pedalaram até Estrasburgo e Bruxelas, mas parece que o máximo que conseguiram fazer com estes fortes gestos simbólicos foi despertar a diáspora sérvia que os saudou ao longo do caminho e que desde o início apoiou os protestos, por exemplo, em Lisboa.
Apesar das muitas e variadas tentativas organizadas para chamar a atenção de vários sectores da União Europeia, parece que falhámos. As reações são brandas ou inexistentes. Um grupo de peritos das Nações Unidas em matéria de direitos humanos apelou ao Governo sérvio para que pusesse termo a todas as formas de retaliação e intimidação contra os manifestantes, e isso foi o mais longe que chegámos 5.
TM – Sem dúvida. Por vezes, sentimo-nos muito sós na nossa luta, apesar de esta se basear em princípios universais de liberdade, igualdade e paz. Várias iniciativas, especialmente as organizadas nas universidades da Sérvia, conseguiram chamar a atenção para a nossa causa. As redes académicas são inestimáveis a este respeito; de facto, também esta entrevista é o resultado desse apoio colegial e amigável de Portugal à Sérvia.
Creio que parte da dificuldade em garantir um apoio mais amplo reside na natureza autónoma e quase não alinhada das nossas reivindicações. Estamos a defender direitos humanos e políticos básicos, mas a nossa causa não está ligada a nenhum bloco político ou interesse maior. E, infelizmente, é muitas vezes difícil ganhar apoio quando os outros não conseguem ver os seus próprios interesses refletidos numa determinada luta.
O que é que os manifestantes conseguiram até agora e o que é que estão a tentar alcançar?
AZ – O que estamos a tentar alcançar agora é a realização de eleições. Ainda não parece estar ao virar da esquina e é aí que o apoio externo a este regime deveria culminar. A principal conquista é, sem dúvida, um forte sentido de agência. Após 13 anos no poder, o regime está a desmoronar-se lentamente. Infelizmente, não estamos nem perto do seu último suspiro e é difícil imaginar como é que isso vai acabar por acontecer. É quase inacreditável que, durante estes meses, ninguém tenha recorrido à contraviolência. No início, os estudantes afirmavam que lutavam contra o sistema, não contra o regime em si. Entretanto, isso mudou à medida que se tornou claro que, sem a mudança de regime, o sistema permaneceria incólume. Mas a ideia da mudança de sistema só agora se torna verdadeiramente significativa: o “sistema” – o sistema de valores e como as instituições funcionam – foi revelado e foi preciso muito tempo, muita energia e reuniões pacíficas em todas as cidades e mesmo em muitas aldeias para expor o estado da repressão de décadas e a oposição que se lhe seguiu.
TM – O movimento estudantil que lidera os protestos na Sérvia demonstrou o verdadeiro poder das instituições democráticas, que não está reservado apenas ao aparelho de Estado e à autoridade institucionalizada. Mostraram – de forma bastante graciosa, diria eu – o poder da rua como instituição, o poder da reunião e, em última análise, o potencial de novas (e velhas) formas de vida comunitária e de sociabilidade.
Qual é o papel do lítio nesta luta?
AZ – Possivelmente, um papel muito importante. Por muito que a UE, e sobretudo a Alemanha, se interesse pelo lítio, a questão torna- -se cada vez mais forte na Sérvia e não é negociável. A hipocrisia da Comissão Europeia e dos principais atores que têm apoiado o regime, apesar do facto de o Parlamento Europeu ter, por vezes, expressado que os estudantes lutam pelos valores europeus, fez com que muitos verdadeiros europeístas na Sérvia se opusessem a estes acordos nada sinceros. TM – Esta resposta está relacionada com uma das perguntas anteriores sobre o olhar do mundo. O lítio é a questão da desigualdade, pois revela que as transições ecológica e digital são futuros projetados apenas para os privilegiados. Os cidadãos da Sérvia não parecem dispostos a sacrificar o seu próprio bem- -estar – ou o bem-estar da natureza – por essa causa. Quem é que não percebe isso? Em Portugal, vocês também têm a vossa própria resistência local à corrida ao lítio. A transição verde tem de ser justa, isso é muito claro.
Que alianças internacionais podem ser forjadas?
AZ – Algumas. Entre os académicos, com certeza, porque nestes atuais tempos precários para o mundo académico, o caso sérvio pode ser um sinal do que poderá ser o futuro. Uma academia livre, pela qual todos lutamos, pode ser séria e facilmente comprometida pela violência económica. No entanto, para além do mundo académico, parece-me que qualquer pessoa descontente com o rumo que o mundo está a tomar, e a Europa tem a sua quota-parte nisso, pode encontrar inspiração em nove longos meses de luta persistente contra a usurpação do Estado – e das mentes e almas do seu povo – por um grupo de indivíduos mal-intencionados e poderosos. Embora a Sérvia tenha um contexto e uma história particulares, esta situação acaba por soar familiar a muitas pessoas em todo o mundo.
TM – E se as organizações de ativistas ecologistas e os progressistas de todo o mundo se juntassem, então – com plena consciência do carácter potencialmente utópico da ideia – poderia ser forjada uma espécie de nova internacional de esquerda. Afinal de contas, as utopias não denotam apenas o impossível, mas também o que ainda está para vir.
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Entrevista de Borboleta Azul
[publicada na edição nr. 47 do Jornal MAPA – Out.-Dez. 2025]
Notas:
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Sérvia
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