Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Aluga e Resiste! A Sobrevivência do Espaço Associativo
SIRIGAITA (Lisboa)
No dia 7 de abril, no Largo do Intendente, em Lisboa, no contexto dos Housing Action Days de 2024 (um apelo internacional lançado anualmente pela European Action Coalition for the Right to Housing and to the City), a dezena de coletivos que ocupam a Sirigaita reuniu-se, juntamente com outros coletivos e espaços da cidade, sob o mote «Somos a vizinhança, somos a resistência, somos a Sirigaita!». Já em dezembro último haviam organizado uma visita guiada por Lisboa, apelidada de Despejados para nada, denunciando os despejos de diversos espaços e associações.
A Sirigaita, na Rua dos Anjos (12F), nasceu há 5 anos no local previamente ocupado pela Associação MOB e está, desde a sua primeira hora, em luta contra o despejo. O senhorio milionário (Bagoandas Imóveis), citado nos Panamá Papers, tem mais de 80 alojamentos locais registados no centro de Lisboa. «Neste momento impende sobre nós uma ação de despejo, já na sua fase judicial, e nós iremos contestá-la não apenas em tribunal mas em todas as outras vertentes. A lei não está feita para nós, para proteger as pessoas que são inquilinas, nem para proteger o direito à habitação, pelo que obviamente não é a única ferramenta que estamos a usar nesta campanha contra os despejos», diz-nos Teresa, com quem falámos.
A concentração pretendeu «mostrar o que cabe na Sirigaita, aquilo que é possível fazer num espaço tão limitado, um rés-do-chão sem janelas. Uma casa onde cabe o nosso imaginário comum sobre aquilo que queremos para a cidade e também para o mundo. É um projeto em construção que tem vindo a crescer e casa de dez coletivos diferentes de lutas que se complementam. Há coletivos pelo direito à habitação, pela Justiça Climática, pela Soberania Alimentar, grupos de apoio mútuo de imigrantes, de mulheres que usam drogas, fazem trabalho sexual e algumas vivem na rua. Um espaço bastante diverso que junta muitas lutas e que é também um espaço cultural, com a sua própria programação e aberto a propostas de cultura, pensamento e discussão política insurgente».
À vizinhança e ao associativismo está ligada a capacidade de resistência e de criar comunidade.
Teresa reforça como linha mestra «a ideia da vizinhança, como um conceito construído. Há obviamente uma questão da vizinhança física, geográfica, daqueles que estão perto de nós; mas também pode ser vista de outra forma – a de quem partilha o nosso imaginário político – e podermos olhar à ideia da vizinhança além-fronteiras, ideia que nasceu dessa coligação europeia» e a que pertencem a Stop Despejos e a Habita, dois dos coletivos que têm a Sirigaita como casa.
À vizinhança e ao associativismo está ligada a capacidade de resistência e de criar comunidade. «Acho que é importante pensarmos que este ataque cerrado a estes espaços de comunhão, de contracultura, onde as pessoas se podem juntar não sujeitas às lógicas normais do consumo – o foco não é de todo o consumo, mas a vivência em conjunto, o conspirarem em conjunto – não acontece por acaso. Não é só porque há interesses económicos na cidade que são completamente vorazes e se sobrepõem a tudo, mas também porque há falta de interesse do poder político em proteger estes espaços onde se pensa um mundo diferente, onde se critica profundamente o estado em que nos encontramos, e em que se pode criar uma consciência política através de coisas básicas, como seja o apoio mútuo. Onde se pode estar num espaço com um concerto de graça, um lançamento de um livro ou comer uma refeição por 3 euros. São espaços de que necessitamos, sobretudo para essa experimentação, para essa conspiração coletiva, ou, de um ponto de vista mais individual, espaços onde nos podemos retirar e aguentar todas as coisas que nos oprimem na nossa vida e no dia-a-dia.»
A renda ainda acessível tem permitido à Sirigaita «organizar semana em função das necessidades do coletivo e não em função de conseguir angariar um certo valor por mês para fazer face às despesas. Pelo que, neste momento, procurando encontrar algo no mercado, vemo-nos numa situação insustentável e que nos iria obrigar a mudar completamente a nossa lógica de funcionamento, a responsabilizar-nos por um valor de encargos mensais muito mais elevado». Como nas demais associações e espaços, há sempre no horizonte o desejo de uma situação estável. «A Sirigaita não pode, de repente, sair dali e ir, por exemplo, para os Olivais, pois tem um trabalho que está muito ligado ao espaço físico que ocupa. Existe ali, porque tem uma relação forte com o bairro, com as pessoas que vivem ali à volta ou ali passam grande parte do seu tempo». Daí resulta a igual certeza de que deveria haver um «reconhecimento também do próprio Estado de que o que a Sirigaita faz é valioso para a cidade, valioso para as pessoas que dela dependem e que, por isso, precisa de um espaço na cidade que lhe sirva em todas as suas vertentes.»
MUSAS (Porto)
O Musas é uma associação que fez agora 80 anos e tem o seu espaço no número 998 da Rua do Bonjardim, no Porto. Criado em março de 1944 por jovens que queriam basicamente jogar futebol, o Musas é hoje bastante diferente, com três vertentes de igual importância: de associação cultural, de associação desportiva (xadrez) e de associação agroecológica. Foi nesta última vertente que, com o passar do tempo, foi conquistando terreno ao abandono até conseguir construir uma espécie de quinta de agricultura biológica no centro do Porto.
Ao longo da sua história foi sofrendo várias ameaças, como uma ação de despejo tentada em 2012 pelos senhorios e uma ameaça ainda mais decisiva a pairar, em 2017/2018, com a decisão daqueles de vender a propriedade. A associação via-se perante a possibilidade de perder a sede e uma parte importante dos terrenos. Nessa altura, a resistência começou por um braço de ferro jurídico-burocrático que arrastou o processo para além da paciência de um potencial primeiro comprador.
O projeto do Musas é muito claro. A sua natureza resulta precisamente de não abdicar de nenhum dos seus três pilares de atividade.
Os senhorios puseram, então, o processo de venda na mão de uma promotora imobiliária e, pouco tempo depois, começaram a chover propostas, sendo a definitiva de um consórcio israelita que deixou claro que iria pôr um fim ao projeto agroecológico do Musas. Como, nestes casos, o inquilino tem direito de preferência, mesmo sem dinheiro foi possível encontrar uma solução em que o Musas comprava, ele próprio, a propriedade com os fundos de um futuro proprietário que, entretanto, se lhe associou. O acordo entre a associação e esse investidor (que afirmou querer o edifício – a remodelar – para habitação própria e que garante ao Musas, pelo menos, o acesso às suas hortas e um pequeno espaço para fingir de sede, por mais cerca de 10 anos, no rés-do-chão da sua sede histórica) foi a solução mínima então encontrada.
No seu 80.º aniversário o Musas defronta-se com muitas questões no que respeita ao seu espaço de atividade. Para começar, saber se é ou não integralmente cumprido o acordo celebrado entre partes (no que diz respeito a área útil de sede, natureza do caminho de acesso às hortas, local alternativo provisório de sede enquanto decorrerem as futuras obras, etc.). Caso não seja, saber se partiria para um novo braço-de-ferro jurídico ou para um novo processo de negociação (por exemplo, sobre a duração do contrato). Não há ainda datas certas para o início desses trabalhos, que poderão eventualmente começar dentro de um ano ou dois. Paralelamente, o Musas tem vindo a reivindicar junto da autarquia que, pela importância das atividades que desenvolve, na cultura, no desporto, na agroecologia, mereceria, no mínimo, a anuência desta para a construção de uma sede que permitisse albergar o conjunto das suas atividades, num terreno camarário junto das hortas que criou, ao resgatar o espaço do abandono e do lixo. O projeto do Musas é muito claro. A sua natureza resulta precisamente de não abdicar de nenhum dos seus três pilares de atividade. Isso tornaria o Musas um outra coisa, que não quer ser.
PALHA DE ABRANTES (Abrantes)
No interior do Ribatejo, a Palha de Abrantes está perto de celebrar os seus 30 anos. Teve início nos idos anos 90, em resposta à falta de dinamização cultural em Abrantes, e foi impulsionada pelo lançamento do Festival Imaginário, que se realizou em 1996 e 1999. A esse marco inaugural sucederam-se, ao longo dos anos, inúmeras atividades: animando debates com o Café com Letras, dando início à Universidade da Terceira Idade de Abrantes, à Escola de Artes Plásticas, ao Grupo de Teatro (que depois se autonomizou), à livraria Contracapa e a um vasto trabalho editorial, em parte associado ao seu Centro de Estudos de História Local de Abrantes e à revista Zahara. A partir de 2002, formou o cineclube Espalhafitas, que passou a dinamizar uma programação no Cine-Teatro. O cinema adquiriu um papel cada vez mais central na Palha de Abrantes, tendo nascido o projeto Arquivo de Imagem, oficinas de vídeo e animação, e o projeto Animaio, levando a associação às escolas do município e aos concelhos vizinhos, nomeadamente o Sardoal, com o qual mantém uma estreita parceria. Do persistente e contínuo uso dessa ferramenta que é o cinema, resultou mesmo na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes um curso na área do Audiovisual, que permanece até hoje.
A conversa com Lurdes Martins nasce do mesmo problema vivido no associativismo das metrópoles lisboeta e portuense. «Chegamos a um ponto em que as cidades pequenas já são um recurso. Lisboa e Porto estão atulhadas, chegamos a Abrantes e temos uma cidade com muitas casas devolutas e espaços por preencher que estão todos à venda. Com pessoas a comprar casas à dúzia e a impossibilitar a habitação das pessoas ou a sobrelotá-las». A especulação imobiliária também aqui é a primeira causa do problema. Mas, como antes referido, a atenção pública que é dada ao associativismo secunda, ou antecede mesmo, esse problema. Abordar a relação do associativismo com o poder – e eminentemente com o poder local – é, em si mesmo, traçar um retrato do país.
A Palha, depois de convidada a sair do Cine-Teatro, no final de 2014, foi sentindo cada vez mais na pele afastamento e falta de acolhimento por parte da autarquia. Desde então, passou pelo Convento de São Domingos e pelo Edifício Carneiro para, em 2013, acabar por se instalar por sua iniciativa no centro histórico da cidade, no espaço Sr. Chiado, cedido por comodato pelo proprietário, de forma a garantir a continuidade do trabalho cultural desenvolvido e em face da recusa da associação em sair do centro da cidade. «A cidade não pode ser descapitalizada de tudo, tal como tem acontecido ao longo dos anos. Não podemos esvaziar a cidade de tudo o que ela tem, e isso é uma posição nossa sobre aquilo que pensamos sobre a cidade. Nós não queremos ir para um lugar entre os supermercados ou para aqueles lugares que são não-lugares».
As associações não podem desaparecer. O mais importante nelas é serem o espaço do pensamento autónomo, livre e independente. Que possam ser um lugar da discórdia, que nós estamos fartos de lugares de concórdia.
Onze anos depois, com a cidade à venda, o espaço cedido na Praça Raimundo Soares seguiu o mesmo caminho. «Perante isso estamos há meses em situação de saída. Das reuniões com o município, o mesmo dispôs-se a pagar uma renda se encontrássemos um espaço, mas isso é quase impossível, primeiro porque já temos algum património que exige um espaço grande, segundo porque hoje ninguém quer alugar a uma associação, pois está à espera de vender o que tem. Essa era uma alternativa para a qual se sabia que não ia haver saída. Para os muitos espaços públicos vazios que apresentámos como alternativa, todos já tinham um qualquer projeto, sendo que, entretanto, algumas associações ocuparam as escolas antigas; mas, claro está, associações com outra forma de estar. Aquilo que se fez rapidamente para alguns não está a ser feito para nós e, mesmo agora, com a possibilidade de vir a ter um espaço numas antigas instalações do ministério da defesa, tudo isto foi um processo demonstrativo».
Essa demonstração é o tal retrato de um país e de um poder local erguido e tomado como uma das conquistas do 25 de Abril. Quando toca às «muitas escolas e espaços camarários que foram ficando vazios e quando chega o momento de os ocupar, vem a escolha do “quem precisa”. Primeiro, os amigos que suportam os poderes locais. Isso é visível em todo o lado. As associações, seja elas recreativas ou culturais, são todas elas muito reféns e contaminadas pelo poder, porque há uma ideia de que todo o dinheiro que se consegue daqui e dali é um dinheiro que tem de ter retribuição de alguma forma. Fica tudo com medo de que se vá ser penalizado. Depois, uma das formas do poder local se manter é exatamente tornar estas associações reféns de si, colocando-se nas direções de quase todas, pelo que os muitos espaços que há são distribuídos dessa forma em primeiro lugar e deixando para último lugar aquelas associações que são mais incómodas, que fazem um trabalho mais marginal ou que não fazem parte de uma família, seja ela política ou outra. Penso que isso se está a passar em todo o país.»
Neste interior do país, de que Abrantes é exemplo, jogam-se atualmente diversos problemas. Desde logo, como refere Lurdes, «nestes lugares pequenos, um dos grandes problemas é a falta de gente jovem com espírito crítico ou com prática de trabalho coletivo». E este aspeto prende-se com o problema central de que uma associação não sobrevive sem espaço, uma questão que não é monopólio o interior.
«Era ótimo que as associações pudessem ter o seu próprio espaço, uma forma de poderem comprar um espaço, uma forma que desse às associações a autonomia e a independência que devem ter; ou então que, ao lhes serem atribuídos espaços que são do município, espaços públicos, isso não implicasse aquele pensamento submisso de dizer que “se estou aqui, tenho de fazer de alguma forma um trabalho consentâneo com”. Não me parece que valha muito a pena existirem espaços onde vamos perpetuar essa linha. Aí, mais vale que as coisas vão morrendo e aparecendo.»
Acresce o facto de a dinamização cultural e associativa ter sido esvaziada pela imediatez do evento, no qual «os municípios querem muito ser eles os fazedores e promotores, e não perceberam ainda que o papel deve ser sobretudo de facilitadores e parceiros, e que a sociedade civil tem de funcionar, o que não acontece, pois foi-lhe tirado esse papel. É quase um contrassenso, hoje que falamos muito em processos colaborativos, sermos cada vez menos colaborativos. Porque há muito dinheiro, tudo se compra, naquilo que é toda uma “desaprendizagem”. Começou-se no 25 de Abril com uma linha e, quando aparece o dinheiro em barda, é isto: o objetivo é sempre fazer um espetáculo, sempre tirar umas fotografias. Toda a pedagogia que está nos entretantos passou ao lado.»
Pelo que observa a partir do seu trabalho com as escolas e extrapolando para o que pode ser o papel de uma associação, como «não se está a tirar proveito dos recursos que se tem nas mãos, como o Plano Nacional de Cinema, onde se vai mostrar o filme mas sem debate a seguir, sem os professores verem os filmes com os alunos para conversar… Um gasto de recursos humanos, como materiais, cujo produto não vai ser nada de significativo. Decidimos encher as escolas de tudo, menos de tempo. Pelo que é preciso dar tempo às coisas e sobretudo dar tempo vazio, pois estamos assoberbados em preencher tudo e não damos tempo ao vazio. É por isso que as associações precisam de um lugar físico, onde caiba o espaço para o tempo vazio, naquilo que na própria Palha chamamos a Escola do Ócio, em que o espaço vazio é também para nos aborrecermos e com isso fazermos alguma coisa.»
O tema dos espaços associativos é, conclui Lurdes, algo «que tem de ser falado ao nível do país, porque esses lugares de pensamento, de reflexão, de discórdia – porque estes são lugares de discórdia – não podem desaparecer. Estamos a correr demasiados riscos por eles desaparecerem. A questão das associações como lugares independentes é uma questão central nisto tudo. É a questão central. Os lugares de independência, os lugares de criação, são algo fundamental.»
«Por isso as associações não podem desaparecer. O mais importante nelas é serem o espaço do pensamento autónomo, livre e independente. Que possam ser um lugar da discórdia, que nós estamos fartos de lugares de concórdia, todos numa coisa, com medo de dizer o que for. Uma discórdia de conversa, que argumenta que serve ela própria de lugar de encontro, de construção e não de destruição. É preciso que as associações não fiquem sem esse espaço. As associações têm um papel fundamental, até mesmo na saúde mental das pessoas, e não se lhes dá o devido valor. Não o valor como veículo de poder, mas como lugar do encontro. Imaginemos um país onde as associações fossem banidas: não seria o mesmo país.»
Vamos comprar a Disgraça!
Ponto de encontro na Penha de França (Lisboa) ao longo da última década, este Centro Social Anarquista, afamado pela sua cantina, concertos, clubes de leitura, debates ou pela livraria Tortuga, decidiu assegurar o espaço a longo prazo em vez de ficar à mercê dos senhorios. Para a compra do espaço foi lançada uma angariação de fundos. Todo o apoio em https://www.gofundme.com/f/disgraca
Autoria: Filipe Nunes (filipenunes@jornalmapa.pt) e Teófilo Fagundes (teofilofagundes@jornalmapa.pt)
publicado no #41 do Jornal Mapa, edição impressa
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