
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Mandar recursos ao ar, ou pôr os pés na Terra?
Falo de uma justiça bem distante desta sala do Juízo Local Criminal de Lisboa, com as suas caricatas vestimentas, hierarquias e formalidades, onde o estado me obriga a vir pela quarta vez.
Ao cabo dum mês de julgamento e dum processo judicial de quase três anos, sinto pena e raiva, sinto ansiedade e cansaço. Sinto-me incrédulo com a quantidade de recursos mandados ao ar. Sinto-me, sobretudo, cercado de apoio e solidariedade. E sinto-me exatamente onde escolhi estar.
Este julgamento convida-me a estar presente com um dos temas mais importantes na minha vida, e um dos mais importantes do nosso tempo: a forma como nos deslocamos sobre a Terra.
Ação “Içar as velas pelo estuário do Tejo – não ao aeroporto do Montijo!”, em 2018
Descolagem
Quando, em 2018, soube que o governo português chegara a acordo com a multinacional Vinci para expandir o aeroporto de Lisboa, não pude acreditar. Depois, não pude dormir.
O objetivo anunciado era ter um avião a sobrevoar a cidade a cada 50 segundos, e receber 50 milhões de passageiros aéreos a cada ano. Isto é dez vezes mais do que o número de passageiros de 2004. E é cem vezes mais do que o número de habitantes de Lisboa – uma cidade a rebentar pelas colinas de turistas e de sem abrigo.
O transporte aéreo tornou-se um exemplo fundamental para entendermos até que altitude pode chegar a demência capitalista.
Trata-se da fonte de gases com efeito de estufa que mais rápido cresce: em apenas vinte anos as emissões da aviação dispararam 70%. De todos os transportes, é aquele que mais polui e aquele que menos impostos paga, o que permite voos a preços fantasiosamente baixos. Também é o mais injusto e elitista. A nível mundial, 90% da população nunca pôs os pés num avião. Serve uma minoria privilegiada de pessoas, enquanto as mais vulneráveis não voam e são as primeiras a sofrer com as alterações climáticas. E metade das emissões da aviação são provocadas somente pelos 1% mais ricos do planeta.
Curiosamente, a pandemia da Covid conseguiu algo notável para a saúde pública e planetária: aterrar grande parte dos aviões. Só que, em vez de aproveitarmos para os manter em terra, está tudo a acontecer ao contrário.
O governo suspende a única forma ecológica de sair e regressar ao país – os históricos comboios noturnos Lusitania e Sud Express – e isola Portugal da rede ferroviária europeia. Em 133 anos, só aconteceu na Primeira Guerra Mundial e na Guerra Civil espanhola.
As elites políticas e económicas juntam-se pela 26ª vez numa cimeira do clima onde negoceiam e assinam acordos para reduzir emissões. Depois, voltam nos seus aviões e jets privados e prosseguem provocando o aumento de emissões.
Os estados usam o dinheiro público para resgatar as empresas da aviação – as mesmas que andam a voar isentas de impostos e fizeram fortuna com a destruição ecológica – sem sequer pôr contrapartidas ambientais.
As companhias aéreas usam esse dinheiro para operar dezenas de milhares de voos fantasma, sem levar um só passageiro e provocando toneladas de emissões, só para manter slots nos aeroportos.
Quantos recursos mandados ao ar?
A badalada “retoma da aviação” não seria “voltar ao normal”. Seria voltar a esta loucura:
25 de julho de 2019 entrou para a história por dois recordes: mais de 230 mil voos num só dia (a grande maioria sobre os céus dos países mais ricos), e as temperaturas mais altas alguma vez registadas no Reino Unido Alemanha, Luxemburgo, Bélgica e Países Baixos. Imagem: Flightradar24
Felizmente, a solução permanece simples e suave:
menos avião e mais imaginação.
Ponto de não retorno
Numa noite de primavera de 2019, dirigi-me ao palco onde discursava o primeiro-ministro, enquanto participava numa ação de denúncia audaz, divertida e absolutamente necessária.
Lá em cima, descobri-me ofuscado por luzes e câmaras. Tantos meios de comunicação encavalitando-se para cobrir o mesmo discurso político banal, que um só poderia cobrir e partilhar! Quantos recursos mandados ao ar? Felizmente, desta vez, puderam registar de ângulos ligeiramente diferentes aviões de papel esvoaçando em frente a um primeiro-ministro boquiaberto e um “capitão tofu” a tentar ler um comunicado.
Para ser eleito Presidente da Câmara de Lisboa, António Costa propôs desativar o aeroporto da Portela e criar ali um “pulmão verde” da cidade. Anos mais tarde, chefiava o governo que aumentava em 33% a capacidade da Portela, contra a vontade das lisboetas e fugindo à obrigação de uma avaliação ambiental.
Para impor um segundo aeroporto, em pleno estuário do Tejo, parece valer tudo: afirmar à partida que o projeto será “irreversível” e que “não há plano B”, mudar leis democráticas, inquinar estudos ambientais. E perseguir ativistas.
Intimidar defensoras de direitos humanos e da Terra através de processos legais é uma prática comum por parte de grandes empresas, conhecida em inglês por SLAPP. São acusações legal e moralmente descabidas – o objetivo da empresa nem é vencer o caso, mas silenciar a crítica, mantendo as ativistas de mãos atadas enquanto se arrasta o processo.
A Vinci, multinacional com um sinistro historial de crimes contra as pessoas e o planeta, conforme descobri e revelei numa investigação para o jornal Mapa, acusou por exemplo de difamação as associações que denunciaram as condições de escravatura em que os seus trabalhadores construíram os estádios para o Mundial do Qatar.
O estado português parece seguir a mesma estratégia. Para além deste meu caso, decorre um processo legal contra 29 pessoas que participaram na ação “Em Chamas”, junto ao Aeroporto da Portela, para defender três coisas: menos aviação, mais ferrovia e uma transição justa.
A elite política adota a prática e o discurso da elite económica e ameaça com um novo aeroporto, mas também com mais minas, centrais solares e monoculturas.
A demência capitalista caracteriza-se por estar viciado em mega projetos e em crescimento económico mesmo que isso signifique destruir a casa comum. Por mastigar a beleza do mundo e cuspir dinheiro. Por alegar constantemente preocupações ambientais e constantemente cometer crimes ambientais. Por rodear-se de privilégios ao ponto de perder a capacidade de sentir o mundo e de sentir os outros.
As pessoas que dela sofrem surgem frequentemente à frente de empresas, de instituições públicas e de câmaras de televisão. Precisam do nosso apoio. Mas, antes, precisam de ser travadas. Como tiraríamos uma caixa de fósforos das mãos de uma pessoa que sofre de piromania – é fundamental tirarmos das pessoas que sofrem de demência capitalista qualquer instrumento de poder. O microfone é um deles.
Aterragem
Passei uma grande parte da minha vida a calcorrear o nosso planeta, numa demorada e misteriosa coreografia com as estrelas. Fazer a escolha de viajar com os pés na Terra aproximou-me de vivências que, chegada a minha hora de morrer, me recordarão como viver valeu a pena.
Do último voo que apanhei, recordo o prazer nervoso percorrer-me a espinha. Lá fora: a doçura do céu. Dentro de mim: a vontade de gritar “estamos a voar!”. Nos assentos em meu redor: a apatia e o aborrecimento…
O avião é uma tecnologia preciosa que pode estar ao serviço, não de “bullshit flights”, mas do bem-estar de toda a humanidade e das espécies com quem coabitamos.
O capitalismo vendeu-nos a ideia de que tínhamos o direito de voar em qualquer momento, por qualquer razão, a qualquer destino do mundo, mas escondeu os seus impactos. Pode ser duro abdicar desse conforto. Pode ser maravilhoso.
Algumas de nós têm a escolha maravilhosa de abdicar de um voo (por exemplo, um casal que iria gozar um fim de semana numa capital distante) para permitir a outras fazê-lo (por exemplo, uma pessoa migrante visitar um familiar doente).
O relatório “Decrescimento da aviação”, que em 2020 a campanha ATERRA apresentou ao público e aos deputados da Assembleia da República, aborda sete passos simples e sábios para uma mobilidade mais justa.
Mudar a forma como nos deslocamos é parte de uma transformação maior e fascinante do sistema em que vivemos – da energia à alimentação. Seja qual for o teu contexto, a tua responsabilidade ou o teu poder, venho pedir-te que, perante “o meio de transporte mais rápido para fritar o planeta”, faças o teu melhor para não seres cúmplice, para resistires e para recriares a realidade.
Peço-te que denuncies os hábitos de viagem dos super ricos.
Peço-te que dês o primeiro passo para a mudança da política de transportes do teu clube, empresa, cooperativa, universidade, partido ou município – evitando reembolsar viagens de avião, preferindo videoconferências e viagens em comboio.
Peço-te que te mobilizes pelo regresso do Lusitania e do Sud Express, para que, como já está a acontecer em vários recantos da Europa, possa haver na Ibéria cada vez mais pessoas a escolher o comboio noturno em detrimento do avião.
Peço-te que espalhes esta maravilhosa notícia aos teus vizinhos, aos media, aos empresários do turismo, ao novo governo: não vai haver nenhum aeroporto no Montijo, nem mais nenhum aumento da capacidade aeroportuária.
Peço-te que me ajudes a dar o meu melhor. Que assumamos juntas o nosso poder e a nossa liderança, para sonhar e construir um futuro de viagens menos frequentes, menos distantes e muito mais ricas. Um futuro que nos leve a apaixonar pelas histórias, comunidades e ecossistemas de que somos parte. Em que as Covas do Barroso, o castelo de Mértola ou a rua de cima são lugares mais apetecíveis do que Barcelona, Bali ou Berlim. Em que os pés, os pedais e os carris nos levam por novos e velhos recantos. Em que milhares de veleiros se libertam das docas do luxo e embarcam todo o tipo de pessoas e bens até todo o tipo de destinos. Em que a arte nos leva a viajar, a bordo de antigos aviões convertidos em salas de cinema.
Sim, os recursos do planeta que permitem propulsar um avião têm limites. Mas a nossa imaginação não.
Convido-te a fazermos a maior viagem das nossas vidas:
Pôr os pés na Terra e deixar a imaginação voar.
Texto de Francisco Colaço Pedro – jornalista e ativista da ATERRA – campanha pela redução do tráfego aéreo e por uma mobilidade justa e ecológica
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