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Lendo: Um rendimento básico universal ou a prestação da barbárie

Um rendimento básico universal ou a prestação da barbárie

Um rendimento básico universal ou a prestação da barbárie


O próximo congresso da BIEN (Basic Income Earth Network) realiza-se em Lisboa na última semana de Setembro. Vem promover a ideia de que o Estado deve pagar a cada cidadão uma quantia monetária, “independentemente da sua situação financeira, familiar ou profissional, e suficiente para permitir uma vida com dignidade”. Os partidários do Rendimento Básico Incondicional (RBI) argumentam que este permitiria às pessoas recusar empregos humilhantes, ao arbítrio da exploração, podendo optar por actividades ou profissões mais aprazíveis. Sustentam também que é um instrumento eficaz no combate à pobreza, e que permite ajustar a sociedade para a crescente automatização, resultante das inovações tecnológicas.

A ideia tem tido um interesse renovado desde a crise financeira de 2008, quando milhões de pessoas perderam os seus empregos. Tornou-se popular a ponto de suscitar petições, referendos e provas de conceito. Em 2016 a Suíça vetou, por sufrágio, uma proposta que atribuía a todos os cidadãos residentes no país há mais de 5 anos o pagamento mensal de cerca de 2300 euros por adulto, e 585 euros por criança. Na Finlândia está em avaliação desde Janeiro um projecto piloto que inclui dois mil cidadãos desempregados, aos quais será paga em exclusivo, e sem outras condições, a quantia de 560 euros mensais. Iniciativas tendo por base a mesma ideia têm sido levadas a cabo noutros países.

Uma dessas experiências está a transformar várias povoações do Quénia rural num laboratório do RBI. Iniciada em finais de 2016 pela GiveDirectly, organização não-governamental financiada em boa parte pelo Silicon Valley[1], pretende dar a 6000 pessoas cerca de 1 dólar por dia, durante um período de 12 anos. Para receberem mensalmente esse valor, os utentes necessitam apenas de um telemóvel. Apesar da desconfiança inicial, da recusa do dinheiro por alguns dos seleccionados, ou dos atritos que, entretanto, emergiram no seio dessas comunidades, os promotores do programa afirmam o seu sucesso.

Os partidários do RBI não constituem, em todo o caso, um grupo homogéneo. Não se trata apenas de milionários com necessidades filantrópicas ou académicos à procura de temas interessantes. As suas motivações são diversas, bem como a previsão dos resultados desses programas. Não deixa, porém, de ser curioso, que debaixo da mesma ideia, se possam encontrar figuras tão díspares como o ex-ministro grego Yanis Varoufakis, o músico Brian Eno, o multimilionário Elon Musk, o filósofo e activista Antonio Negri, ou Mark Zuckerberg, fundador do facebook.

Os fundamentos de uma velha ideia

O RBI não é um conceito novo, teve no passado diferentes designações. O esboço dessas medidas pode ser encontrado em diversas fontes e referências, apregoadas pelos seus promotores. Em quase todas, a medida surge com o intuito de aperfeiçoar o sistema vigente.

No livro “Utopia” (1516) de Thomas More, a ideia de “providenciar a todos algum meio de subsistência”, surge durante o texto[2]. Esta seria uma proposta para a prevenção do roubo, como alternativa à ineficácia da pena de morte, a qual resultava numa elevada taxa de execuções. Na mesma época, Juan Luis Vives elaborava vasta argumentação[3], baseada em considerações teológicas e morais, sobre a responsabilidade do governo em garantir a todos os residentes um mínimo indispensável à sua subsistência. A “assistência aos pobres” era então motivada pela caridade.

Mais tarde, Thomas Paine, o filósofo e político que influenciou a revolução americana, desenvolve um argumento de natureza diferente. No seu panfleto “Justiça Agrária” (1797), sustenta que “a terra, no seu estado natural, inculto, era… propriedade comum de toda a raça humana” e, por conseguinte, cada proprietário “deve à comunidade uma renda base”, para compensar os desapossados pela sua perda. Partindo deste princípio, propunha a obrigatoriedade do governo em garantir um “dividendo” a todos os cidadãos. A Inglaterra deste período tinha já um sistema de ajuda social[4], destinado aos pobres incapacitados de trabalhar, por oposição aos vagabundos e mendigos. Os preceitos de Paine eram distintos: sustentavam-se na necessidade de justiça, bastando estar vivo para adquirir esse direito.

Os “motins do pão”[5] de 1795, bem como a violência revolucionária em França, e a possível influência destes eventos nas classes sem terra, assustaram os magistrados de Speenhamland, na Inglaterra rural. De sobreaviso, decidiram implementar um novo esquema de ajuda pública. O sistema Speenhamland estipulava que o vencimento dos jornaleiros deveria ser completado com um suplemento, calculado com base no preço do trigo, de forma a garantir um mínimo de subsistência. Motivada pelo apaziguamento social, a medida revelou-se um subsídio encapotado, oferecido à nobreza rural.

A ideia de um “dividendo nacional” foi desenvolvida, depois da primeira guerra mundial, pelo engenheiro C. H. Douglas, como parte da sua teoria interdisciplinar, designada por “crédito social”. Propunha que cada cidadão fosse um “accionista” da nação, recebendo um dividendo, criado a partir da emissão de crédito sem juros, com base no Produto Interno Bruto (PIB). Um dos seus argumentos prendia-se com a necessidade de ajustar a discrepância entre o poder de compra e os preços dos bens de consumo. Segundo o autor, as políticas do pleno emprego estavam obsoletas numa economia moderna, industrializada, que pela eficiência produtiva, era incapaz de absorver toda a força de trabalho disponível. Reformas semelhantes foram posteriormente defendidas pelo poeta Ezra Pound, pelo inventor Buckminster Fuller, ou por Timothy Leary, ícone da contracultura dos anos 60. Este último alegava que o Estado, em vez de extorquir os cidadãos com impostos, deveria ser gerido como uma empresa, repartindo por todos os seus lucros.

Milton Friedman, economista da escola de Chicago, e fervoroso defensor do capitalismo de “livre”-mercado, que ele reconhecia nas políticas de Reagan, Thatcher e Pinochet, tinha a sua versão do RBI. No livro “Capitalismo e liberdade” (1962), propunha que todos os programas de assistência social fossem substituídos por um “imposto negativo sobre a renda”, o que na prática significa um rendimento mínimo garantido. Friedman defendia a eficiência deste modelo face ao “Estado social”, porque reduziria custos e burocracia.

Da teoria sueca do amor

A realização de um rendimento básico universal, na sua versão mais utópica, coincide com o programa de um “Estado social” perfeito, e com os objectivos da social-democracia, resgatada actualmente pela maioria dos partidos de esquerda. Varoufakis foi claro ao afirmar que o rendimento básico é um instrumento indispensável para a social-democracia hoje, tal como a “segurança social” o foi no pós-guerra, de modo a regular a economia e evitar o ressurgir de conflitos sociais[6]. Os países escandinavos, onde este modelo tem vingado, são geralmente vistos como exemplos de organização, segurança, igualdade de oportunidades, baixos níveis de pobreza, entre outros elogios que habitualmente definem uma “democracia avançada”.

No documentário “A teoria sueca do amor”[7], o realizador Erik Gandini retrata a sociedade sueca, muitas vezes apontada como exemplo de progresso e prosperidade. Com sentido de humor, revela o lado mais obscuro de uma cultura individualizada, suportada pelo estado-providência, e que ao promover valores como “independência”, “autonomia”, “realização pessoal”, origina isolamento e alienação. O documentário começa por mostrar imagens de arquivo dos tempos do governo de Olof Palme, que nos anos 70 iniciou um programa de políticas sociais, incentivadas pelo manifesto “A família do futuro: uma política socialista para a família”[8]. Este centrava-se na ideia de que as relações humanas, para serem verdadeiras, deveriam assentar num princípio de independência entre as pessoas, assegurada pelo Estado.

Durante o documentário são mostrados exemplos caricatos do suposto resultado dessas políticas: o caso de um suicídio que só foi descoberto anos depois, porque as contas pendentes do morto se pagavam automaticamente; o crescente número de mães solteiras que recorrem à inseminação artificial, fomentando o negócio dos bancos de esperma, existindo já empresas que oferecem serviço ao domicílio; a dificuldade dos funcionários estatais em encontrarem os familiares mais próximos do crescente número de idosos que morrem sozinhos; ou o caso dos refugiados sírios que para fazerem amigos têm de chegar a horas. Na parte final, o realizador dá-nos a conhecer o exemplo de uma sociedade oposta, a partir dos relatos de um cirurgião sueco, que reaprendeu o valor da comunidade quando se mudou para a Etiópia, onde apesar das privações e dificuldades, encontrou mais alegria e felicidade do que no seu país.

A crítica que emerge dos exemplos anteriores é antes de mais uma crítica ao modo de vida nas sociedades capitalistas modernas, assentes na centralidade do trabalho, no “bem-estar” e na “autonomia individual”. Estes são os valores recomendados pela ideologia dominante, e que na prática reduzem o indivíduo às relações de mercado e aos protocolos definidos pelo Estado. Tudo o que diverge deste modelo é obliterado. Não admira, portanto, que experiências como a GiveDirectly tentem seduzir as populações do Quénia rural, com os dólares provenientes do Silicon Valley. A expansão do império e a sua globalização implica a substituição dos laços comunitários, das práticas de sobrevivência e entreajuda, pela mercantilização e dependência financeira.

A prestação da barbárie

Os defensores do RBI costumam apresentar o “Fundo Permanente do Alaska”[9] como um exemplo de sucesso, ou um modelo possível, do que poderá ser o financiamento de um rendimento básico universal. Este fundo de investimento foi criado em 1976, anos depois da descoberta de petróleo na região, a partir de uma percentagem das receitas provenientes da exploração dos recursos petrolíferos. Desde 1982 que os seus dividendos são distribuídos anualmente pelos residentes legais do Alaska. A quantia monetária varia de acordo com o preço do petróleo, o retorno dos investimentos, e as condições económicas gerais. Este exemplo demonstra bem o modelo económico, social e ambiental em que se sustenta a ideia de um RBI hoje: envenenar o ambiente, destruir modos de vida sustentáveis, em troca de um cheque ou transferência bancária para todos. Amanhã distribuir-se-ão dividendos das centrais nucleares, dos eucaliptais, da exploração Onshore, ou das barragens.

O programa Bolsa Família no Brasil, implementado por Lula da Silva em 2003, é tido como exemplo de sucesso no combate à pobreza, especialmente nas favelas. Embora seja uma transferência monetária condicionada, por ter em conta os critérios financeiros dos utentes, e implicar algumas obrigações, é usado como argumento sobre os benefícios de uma renda básica. Para que esse debate faça sentido, é importante perceber como surgiram nos subúrbios das grandes cidades esses bairros superlotados, em condições extremas de insalubridade e poluição. Esse amontoado de gente que perece em condições de extrema pobreza são, na sua maioria, os desapossados da terra e dos recursos naturais, que o sistema excluiu e quer agora integrar, convertendo um problema numa mais valia.

Tão bizarro como isto é pensar que a distribuição de dinheiro pode ser uma medida útil no processo de transição para uma sociedade pós-capitalista. Acontece precisamente o contrário, pois estas reformas em nada questionam a estrutura e delegação do poder. Os actores do modelo económico actual continuarão a ser os mesmos, e continuarão a ser os mesmos a tomar as decisões que dizem respeito a todos.

O RBI tem um papel importante na manutenção do sistema capitalista. Ao criar subsídio-dependentes, resolve vários problemas de uma só vez: mantém os níveis de consumo necessários ao seu funcionamento; reafirma o mito do progresso e do crescimento; diminui a necessidade de os excluídos questionarem o sistema como um todo, tornando-se, inclusive, um incentivo para que este se reproduza. Ironicamente, Robert Van Parijs, um dos teóricos mais influentes na defesa do rendimento básico, assume que este é a única forma de legitimar o capitalismo[10].

[1] – A GiveDirectly tem como principal parceiro a Good Ventures, uma fundação privada criada por um dos co-fundadores do Facebook. A Google.org é outra das empresas que suporta a GiveDirectly. O bilionário Pierre Omidyar, fundador do eBay, é também um dos mecenas do projecto.

[2] – Conversa entre Rafael Hitlodeu e John Morton, arcebispo de Canterbury.

[3] – De Subventione Pauperum Sive de Humanis Necessitatibus. Tratado escrito por Juan Luis Vives, publicado em 1526, e destinado ao presidente do município de Bruges, onde é discutido o problema da pobreza urbana, bem como algumas sugestões para a sua atenuação.

[4] – Poor Laws no original. Este sistema, desenvolvido a partir do fim da idade média em Inglaterra e país de Gales, perdurou até ser substituído pelo Estado social, depois da segunda guerra mundial.

[5] – Também conhecidos por “motins da fome”, foram um conjunto de revoltas populares ocorridas em Inglaterra em 1795, resultantes da escassez e do elevado preço de provisões, em particular do trigo e do pão.

[6] – Entrevista realizada pelo jornal The Economist (2016-31-03).

[7] – The Swedish Theory of Love (2015).

[8] – Familjen i framtiden – en socialistisk familjepolitik, SSKF (1972).

[9] – Alaska Permanent Fund

[10] – Real Freedom for All, What (if anything) can justify capitalism, Philippe Van Parijs (1995)

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Júlio Silvestre

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4 People Replies to “Um rendimento básico universal ou a prestação da barbárie”

  1. Li o artigo com interesse e considero que constitui um excelente pretexto para reflectir sobre um tema que deveria ser mais debatido no espaço público. Concordo com algumas das reservas e críticas em relação a alguns modelos do RBI mas alerto para existência de outras propostas que integram o RBI em programas de transformação social mais amplos como o do decrescimento. Aliás faz muito pouco sentido implementar um RBI sem promover em simultâneo alterações profundas no sistema económico e financeiro que garantam a sustentabilidade ambiental, económica e social.
    Saudações,
    Álvaro Fonseca
    Lisboa

  2. P.S. Notei que, por lapso, a referência 11 está indicada no texto com o número 15.

  3. Zapata Durruti da Silva

    Na minha bola de cristal…

    Consigo imaginar os neoliberais a aproveitarem o RBI como desculpa para privatizar Saúde, Educação e mais, afinal (dirão eles), o cidadão poderá agora usar o RBI para pagar a uma empresa que lhe trate da saúde e lhe eduque as crianças. Todas as outras prestações sociais poderão também ser esvaziadas. Os empresários mais empreendedores vão aproveitar para baixar os salários. Depois da euforia inicial (uns 4 ou 5 aninhos) os preços da saúde e educação vão disparar e a qualidade dos serviços antes assegurados directamente pelo estado, e que agora estarão na mão de empresários muito empreendedores, vai deteriorar-se de tal forma que a maioria dos trabalhadores (que os puderem pagar com o seu RBI) terá saudades do antes.
    Em conclusão e depois de feitas as contas, o estado providência sai de cena, a classe trabalhadora e/ou desempregada fica mais na merda, os empresários empreendedores fazem bons negócios com as antigas infraestruturas do estado compradas ao preço da uva mijona!

    RBI é um brilhante Cavalo de Tróia!

  4. Não obtive feedback quando publiquei o seguinte comentário na publicação do artigo no FB e porque o comentário do Zapata da Silva demonstra bem a falta de debate que ainda está por fazer em relação à ferramenta que é o RBI, volto a deixar a minha reflexão sobre a posição demonstrada pelo autor do texto: “Este exemplo demonstra bem o modelo económico, social e ambiental em que se sustenta a ideia de um RBI hoje: envenenar o ambiente, destruir modos de vida sustentáveis, em troca de um cheque ou transferência bancária para todos. Amanhã distribuir-se-ão dividendos das centrais nucleares, dos eucaliptais, da exploração Onshore, ou das barragens.” Lamento imenso ter que ler um artigo tão moralista, demagogo e com falta de contraditório, num jornal como o Mapa. Se fosse noutro pasquim, não me surpreenderia, mas aqui… Tomaste uma posição contra o RBI (tens mais que direito a isso, como é óbvio, faltaria mais), mas pelo menos, podias ter mais respeito e reflectir sobre este tema sem misturar Milton Friedmans e multimilionários com milhares de pessoas que, tal como vós, queremos e lutamos por um mundo melhor e que não caminhe para a destruição… É óbvio que os neoliberais vão usar, manipular, distorcer todas as ferramentas criadas pela sociedade – afinal de contas é esse o seu propósito na vida: agarrar as melhores ferramentas e usá-las no seu proveito. Agora, isso não faz da ferramenta má, por si só. A RBI, acompanhada de outras ações e políticas tem tudo para ser um eficaz modo de distribuição de riqueza, pois impede a reacumulação contínua de capitais. Se a humanidade continuará a ser consumista ou não, isso dependerá de outras políticas e não de quanto uma pessoa recebe. Enfim, apelidar a RBI como “prestação da barbárie”…