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Lendo: Felizmente continua a haver luar (Janeiro 2016)

Felizmente continua a haver luar (Janeiro 2016)

Felizmente continua a haver luar (Janeiro 2016)


 

luarFoi um choque, mas não ficamos surpreendidos.

Anos de guerra e barbaridades, de Guantanamos, de bombardeamentos diários, de sociedades destruídas, arrasadas, com milhões de deslocados e de refugiados, com centenas de milhares de mortos, com milhares de torturados, de espíritos afectados que buscam conforto e vingança no irracional e no fanatismo religioso. Como e porquê seria possível escaparmos à barbárie que os poderes do mundo dito «civilizado» engendraram e alimentam? As «Primaveras Árabes», movimentos novos que conseguiram deitar abaixo duas grandes ditaduras do Médio Oriente, foram vistas com desconfiança. Acabaram cercadas e esmagadas pelos religiosos e os antigos senhores disfarçados de democratas, esses sim apoiados pelos diversos poderes de sempre. Assim, dizia eu, não tínhamos o direito de ficar surpreendidos, ainda que tenhamos também ficado revoltados, porque os mortos foram os mortos de uma guerra que não é a nossa mas que é feita em nosso nome. E que vai continuar. Tínhamos também o dever de perceber o porquê. Preocupação que não foi a de todos, longe disso. Dias depois do massacre realizado em Paris pelo comando do Estado Islâmico em guerra com o Estado francês, o jornal Público saía com o título: «A pergunta que não tem resposta é esta: Em nome de quê ?» [Público, 15/11/15]. Estamos perante um exercício exemplar de jornalismo. Porque a frase anuncia claramente que a pergunta não aceita nenhuma resposta, sugere que há perguntas que não têm resposta e portanto não se justificam? Ou trata-se de mais um caso de controlo das ideias segundo os interesses do poder político-económico dominante? O exercício é arriscado e a sua eficácia frágil, porque sabemos que o espírito, como tudo, tem horror do vazio e procurará sempre resposta. No racional ou no irracional. Neste caso, evidentemente, o objectivo é evitar que se pense de forma crítica sobre os acontecimentos que nos são impostos.

O massacre de Paris fez, num só dia, um número de mortos idêntico ao que é contabilizado, todos os dias e desde há três anos, na Síria… Os mortos, os massacrados, os assassinados, não são termos de comparação para o pensamento humano. O horror não se reduz a números. Não obstante, uma das terríveis evidências do mundo «civilizado», o de hoje como o de ontem, é que os mortos não têm o mesmo valor, dependendo se são mortos dos países «civilizados» ou mortos dos países «a civilizar». Evidência que nos é familiar neste país de brandos costumes violentos onde esta contabilidade desigual tratou os mortos da colonização e, depois, os da guerra colonial.

Pouco tempo depois do massacre, um dos responsáveis deste horror permanente, o Estado francês, instalou o Estado de urgência, que logo se revelou ser um estado policial, uma variante do modelo chinês do controlo social, onde o poder judicial é em parte substituído pela instituição policial. E o projecto do governo socialista – que se candidata a ser um dos governos mais reaccionários do pós-guerra – é agora de o prolongar de forma institucional. Isto é: diluir o que eles chamam «Estado de Direito» num «Estado de Excepção». Isto confirmou que o Estado islâmico atingiu um dos seus objectivos, fragilizar o Estado francês e instalar o medo e a paranóia numa sociedade onde a mistura de populações é uma riqueza humana. A versão oficial do Estado francês é que esta evolução é a única resposta ao terrorismo. Ora, em poucos anos, foram promulgadas mais de dez leis antiterroristas sem efeito numa democracia representativa cada vez mais autoritária. Mata-se facilmente um manifestante pacifista numa mobilização ecologista mas não se encontram os organizadores de um ataque militarmente bem organizado. E qualquer criança sabe que o chamado terrorismo funciona melhor numa sociedade autoritária onde o medo divide e atomiza. Então? Convém saber por que razão as direcções ideológicas dos meios de comunicação social, a do Público entre outros, não fazem a pergunta: «Em nome de quê», o Estado de urgência?

O Sr. Nacer, operário numa empresa da multinacional Veolia, perto de Marselha, tem alguns elementos para esta interrogação. O homem é um sindicalista activo e radical, tem agitado tanto quanto pode a empresa local onde trabalha e não é bem visto pela direcção, que o denunciou à polícia como alguém de estranho, radical, francês de origem imigrante. Atributos suspeitos nos tempos que atravessamos. Uma noite, dias após o massacre de Paris, a sua casa foi objecto de uma investida nocturna protagonizada por um comando, não do Estado islâmico mas do Estado francês, que arrombou a porta e deixou apavorados os seus filhos e a mulher. Os polícias do antiterrorismo vasculharam tudo, encontraram um Corão e, mais grave, uma foto suspeita de um barbudo que se encontrava pendurada numa parede. Al-Qaeda, o Nacer estava feito! Verificou-se depois – após análise por especialistas intelectuais ao serviço do Ministério do Interior – que se tratava de uma gravura que reproduzia Leonardo de Vinci! Um erro, explicou o dito ministério. Os filhos de Nacer estão com apoio psicológico, Nacer está sem trabalho e pensa mudar de casa pois os vizinhos não lhe falam. Não foi erro nenhum. É a nova maneira de tratar o pessoal mais insubmisso, a maneira «Estado de Urgência» de «gerir», como eles dizem, as relações sociais. Levar a luta antiterrorista para dentro das empresas, para o campo da luta social. O que o caso que se passou recentemente nos dois grandes aeroportos de Paris, que são hoje uma das maiores concentrações de proletários da grande região urbana, veio confirmar: Cerca de 100.000 trabalhadores e empregados foram controlados e interrogados individualmente pela polícia antiterrorista, mais de 30.000 cacifos de trabalhadores foram abertos e revistados. E os que tinham nos cacifos leituras como o Corão, Marx ou Bakounine… passaram um mau bocado e tiveram de se justificar. Porque esta gente com barbas é suspeita e a polícia tem um nível intelectual limitado. Enfim, uma operação que veio no momento oportuno, logo após a greve combativa do pessoal da Air France, onde um dos directores perdeu a camisa. Perante esta evolução, as burocracias sindicais manifestam-se com um silêncio amedrontado e apoiam as políticas de «segurança».

A conclusão que se impõe é que o chamado «terrorismo» é um terreno muito bem aproveitado pelos poderes que se reclamam do antiterrorismo para governar com as suas formas de terror de Estado. Antes de mais com o medo, que varre todo o espírito crítico. Não é necessário recorrer a teorias «golpistas» ou outros malabarismos intelectuais para lá chegar. Não o é porque, de uma certa maneira, os poderes ditos civilizados não têm muitas alternativas. Sem determinismos, poder-se-á argumentar que, na impotência total em que se encontram para governar a crise profunda de um sistema que reproduz desemprego, empobrecimento geral e concentração acelerada de riqueza, as classes dirigentes fazem política com as consequências dos desastres que produzem. No respeito pelos interesses dos potentes complexos militar-industriais e do capitalismo do petróleo aos quais estão enfeudadas.

luar2Voltemos à tal pergunta que, segundo a direcção ideológica do Público, não tem resposta. Num excelente pequeno livro publicado recentemente, Le piège Daech (A armadilha Daesh), o estudioso do Médio Oriente Pierre-Jean Luizard aborda de forma esclarecida e esclarecedora a questão do Estado Islâmico na história recente e o papel confuso dos poderes do capitalismo ocidentais nesta nova configuração [Livro que, abro um parêntesis, deve ser em breve editado em português pela Antígona.]. P.-J. Luizard mostra como a emergência desta nova formação política e territorial, o Estado Islâmico, é uma resposta histórica às recentes guerras e destruições levadas a cabo pelos poderes ocidentais na região. Ele mostra que, qualquer que seja o desfecho dos acontecimentos sangrentos, toda esta zona do Médio Oriente que os ocidentais (Ingleses e Franceses) criaram em 1916 com os acordos de Sykes-Picot, está hoje definitivamente alterada. Os Estados criados na altura foram destruídos pelas guerras recentes, e o Estado Islâmico é uma nova configuração territorial e política baseada, em termos religiosos, na comunidade sunita e assente concretamente nos restos do Estado baasista de Saddam Hussein. O futuro, ou o provável desaparecimento, do Iraque e da Síria, estão ligados a esta alteração. Uma configuração geopolítica nova que os ocidentais, os Russos e outros, terão, mais tarde ou mais cedo, de reconhecer. «O que distingue o Estado islâmico de todos os outros movimentos jihadistas é a vontade de aplicar a charia a um território específico dotado de um Estado e de instituições. Trata-se de uma ruptura fundamental com a prática de Al-Qaeda na medida em que ele oferece às comunidades sunitas que atrai uma «saída por cima». A Al-Qaeda, pelo contrário, apenas oferece o terrorismo e uma guerra sem fim, com uma perspectiva longínqua pouco realista de instauração do califado.» Segundo P.-J. Luizard, a armadilha Daesh é justamente a implicação militar actual dos ocidentais e dos Russos contra o Estado Islâmico, numa tentativa desesperada de reconstruir, preservar, a partilha original desta região em Estados que estão hoje condenados, a Síria e o Iraque em primeiro lugar. Estados que lhes permitiam conservar o controlo da região e as suas riquezas petrolíferas. «As diplomacias ocidentais não parecem medir o carácter irreversível do que acontece aos Estados do Médio Oriente. (…) É evidentemente difícil de prever o futuro do Estado islâmico. (…) Mas a sua derrota militar não seria em absoluto uma solução se as causas do seu sucesso inicial não forem tomadas em conta. (…) A «missão civilizadora» da Europa serviu de cobertura a apetites coloniais sem limites. Esta recusa de assumir o passado explica a dificuldade das diplomacias ocidentais em prever um futuro para o Médio-Oriente».

Aqui está: «Em nome de quê» tem uma resposta. Os mortos de Paris e os do Médio Oriente morrem em nome deste afrontamento. Dizia Anatole France a propósito da Primeira Guerra Mundial, que se pensava morrer pela pátria quando finalmente se morria pelos industriais. Infelizmente, não saímos muito deste engano. Explicam-nos que morremos não se sabe porquê e afinal morremos por interesses capitalistas que eles conhecem bem. O capitalismo francês está implicado no controlo do Médio Oriente desde o fim da Primeira Guerra Mundial, apoiou e participou em todas as guerras recentes que desestabilizaram a região, da Líbia ao Afeganistão, tem mais de 9.000 soldados em operações de guerra exteriores, vendeu e continua a vender armas a todos os poderes da região, bombardeia dia apos dia o Iraque e a Síria. Durante anos não houve no discurso oficial a palavra guerra. Ela não existia! Agora, que a guerra saiu da televisão e se transformou em cadáveres nas ruas das cidades francesas, o discurso mudou e a fórmula é: «Eles fazem-nos a guerra!». A mentira é gigantesca e destina-se a fazer aceitar o curso político das coisas. Segundo Hitler, que era um astuto conhecedor da manipulação de massas, as grandes mentiras são as mais fáceis de fazer aceitar, porque «as massas» só praticam as pequenas mentiras e não imaginam sequer que as grandes mentiras sejam possíveis. A democracia autoritária e de leis de excepção pratica sem vergonha o princípio do antigo inimigo, do qual muitas das ideias acabaram finalmente por ser recuperadas pelos vencedores. Mais uma ambiguidade que estamos hoje a pagar num sistema económico e político monstruoso que tem os dias contados e que, uma vez mais, nos arrasta para o abismo.

Para já, é evidente que a única maneira de nos opormos ao terrorismo, do qual a guerra é a forma sofisticada, é opormo-nos à deriva autoritária democrática, às paranóias e aos medos, ao ódio do Outro, às separações entre os explorados. Tudo isto produzido pelo mesmo sistema que produz a guerra e o terrorismo. Uma proposta difícil em períodos em que o horror paralisa os espíritos e a acção colectiva. Mas é a esperança contra a morte.


Written by

Jorge Valadas

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