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Lendo: Memórias para a construção política da Agroecologia (parte II)

Memórias para a construção política da Agroecologia (parte II)

Memórias para a construção política da Agroecologia (parte II)


Nesta segunda parte revisitamos a luta pela terra na Andaluzia, num percurso histórico que também nos leva às origens da Agroecologia. Evocamos memórias e lutas vigentes, ouvindo Diego Cañamero e Óscar Reina, do Sindicato de Obreros del Campo.

Um artigo em duas partes do coletivo Roseiras Bravas | roseirabrava@disroot.org


Parte I AQUI


«Não há causas perdidas, há causas difíceis. Mas como são tão justas, algum dia as ganharemos.» Diamantino García (1)

 

 O movimento «jornalero» andaluz por «tierra y libertad»

Andaluzia e Alentejo partilham uma história similar de estruturação fundiária – e respetiva estruturação socioeconómica: o latifúndio. A concentração da propriedade foi passando de mãos em mãos. Após a «reconquista cristã», as terras foram distribuídas pelo clero, ordens militares e nobreza. Séculos mais tarde, com as reformas liberais em ambos os países, deram-se as desamortizações, cujo fito era tanto a passagem da propriedade dessas classes sociais para a nascente burguesia como continuar o processo histórico de espoliar o campesinato das suas terras, incluindo as comunais. A história do latifúndio está intimamente ligada à transformação do campesinato – desapossado de terra – em proletariado agrícola, onde cedo o capitalismo penetrou. Desde o século XIX até ao final do século XX, na Andaluzia, os/as trabalhadores/as agrícolas representavam cerca de 80% (2) do setor e, como no Alentejo, trabalhavam até 12 horas seguidas por um salário de miséria. Um regime social desta natureza gera e ancora-se numa violência e conflitualidade estruturantes. De um lado, os proprietários que detinham a terra, controlavam as condições laborais e o poder político local, sendo muitas vezes absentistas (vivendo distantes da propriedade). Do outro, uma grande massa humana cuja única opção era (e continua a ser) vender a sua força de trabalho (passando por grandes períodos de desemprego), por não ter terra, sem no entanto deixar de resistir e de por ela lutar!

Assembleia numa propriedade ocupada em Osuna, Sevilha (1978). Fonte: «Archivo de la Transición.»

Na Andaluzia, as mobilizações pelo acesso à terra ressurgem após a ditadura franquista, em 1976, na forma de expressão sindical, com o Sindicato de Obreros del Campo (SOC). O contexto era o de recessão mundial com a crise do petróleo, que veio afetar sobretudo as regiões do país onde o número de trabalhadores/as agrícolas era maior, como a Estremadura e, especialmente, a Andaluzia devido ao regresso da migração andaluza das regiões do norte do Estado espanhol e da Europa. A situação de desemprego agrava-se, estando na base de novas mobilizações por trabalho e melhores condições laborais, e na reativação da luta pela terra. Como refere Diego, «havia uma situação de pobreza e desemprego alarmante na Andaluzia que incitava a que a terra passasse para as mãos dos “jornaleros”. Era uma luta inevitável, era necessária». Diego participou muito jovem nos inícios do SOC, antes do seu processo constituinte em 1976, em Antequera (Málaga). Com Gonzalo Sánchez, Francisco Casero, Pepi Conde, Sánchez Gordillo, Diamantino García, entre outras pessoas, esteve comprometido nas «comissões de jornaleros» criadas em 1974, que foram a génese do SOC. Estas comissões funcionaram como espaços de organização e articulação das primeiras manifestações nas aldeias e comarcas territoriais andaluzas. Eram espaços sindicais próprios, criados no seio do movimento operário e articulados a nível estatal com outras organizações sindicais ligadas ao Partido del Trabajo de España dentro da Confederación de Sindicatos Unitarios de Trabajadores. Alianças sindicais-políticas que tiveram o seu papel nos primeiros passos organizativos do movimento «jornalero» mas, diz Diego, o SOC «nunca foi correia de transmissão de nenhum partido político, tinha vida própria»; «a ideia era formar um sindicato agrário na Andaluzia, porque a terra estava concentrada, e continua concentrada, nas mãos dos grandes proprietários». Em 8 milhões de hectares de terra, 50% desta está nas mãos de apenas 2% dos proprietários, sublinha.

A história do latifúndio está intimamente ligada à transformação do campesinato – desapossado de terra – em proletariado agrícola, onde cedo o capitalismo penetrou.

Nas origens do SOC há que destacar a ação social desenvolvida por um grupo de padres da Serra Sul de Sevilha, em especial Diamantino García, de ideias progressistas e influenciado pela teoria da libertação, que possibilitou um trabalho comunitário de consciencialização e de organização popular, defendendo os interesses da classe «jornalera». Tal como foi analisado por Javier García em «Tierra y Libertad» (3), o SOC enraizou-se na Andaluzia pela plena identificação social-identitária sentida pela população, com dirigentes «jornaleros», e referências sociais da classe trabalhadora e das comunidades rurais, ao mesmo tempo que recolheu a tradição secular das agitações camponesas no anseio pela terra. As bases ideológicas e políticas na construção da identidade do SOC são diversas (partindo do comunismo-maoísmo e marxismo às influências do anarquismo e do nacionalismo andaluz de esquerda), conformando um sindicato único nas suas ideias e formas organizativas, também com uma visão própria da terra, que incluía: uma dimensão histórica da aspiração da distribuição da propriedade; uma concepção cristã de base, segundo a qual a terra é um bem natural não mercantilizável ou de enriquecimento privado, mas sim de uso e fruição da comunidade que a habita e nela trabalha – «La tierra no es de nadie. La tierra es del pueblo»; e uma reivindicação do marxismo agrário, da terra como bem público, onde os recursos e forças de produção estivessem à disposição do povo. Para o SOC, a Reforma Agrária (RA) deveria basear-se não só na redistribuição da propriedade da terra, e sobretudo no usufruto da mesma, como também na transformação dos meios de produção e canais de distribuição e comercialização.

«Não à mecanização do campo». Manifestação em Bornos (Cádiz) contra o desemprego. Fonte: «Archivo de la Transición.»

 

A luta do SOC pela Reforma Agrária

As primeiras lutas do SOC reivindicavam, fundamentalmente, trabalho, condições de trabalho e um salário justo. Conta-nos Diego que os protestos giravam em torno das campanhas de colheita (como no «verdeo» (4) da azeitona, do girassol, da beterraba ou do algodão) e das convenções coletivas de trabalho, procurando-se distribuir as pessoas desempregadas pelos «cortijos» (5) dos «señoritos» (latifundiários). «Obrigávamo-los [a distribuírem as pessoas porque] senão havia greves e estes tinham de aceitar», e também as mulheres, a quem os “señoritos” recusavam dar trabalho». Foram várias as formas de luta: greves de fome, marchas, ocupação de edifícios públicos, bloqueios de estradas, paralisação do aeroporto e comboios, e as conhecidas ocupações de terras, que retumbaram a nível nacional, despertando a sociedade para a situação do campo andaluz e levando a debate público a questão da RA. As primeiras aconteceram em 1978, em Cádiz e Sevilha. Primeiro, eram ocupações simbólicas, de denúncia – «não podemos estar numa terra com milhares e milhares de desempregados e desempregadas, e um meio rural que morre, que têm de emigrar para conseguir um pedaço de pão fora da nossa terra, havendo tanta possibilidade de riqueza, havendo tanta terra abandonada». A estas seguiram-se as permanentes, «já ocupávamos para lá ficarmos». Na decisão das terras a ocupar «procurávamos propriedades que não tivessem um impacto contrário para nós, um impacto contrário à opinião pública; propriedades abandonadas e propriedades públicas que não estavam bem lavradas». O contexto político era bastante distinto do que se vivera em Portugal, onde as ocupações tiveram o apoio do MFA, no quadro do PREC. No Estado espanhol, não houve rutura com a ditadura, mas sim a chamada «transição política». Todas as ocupações acabavam em despejos e novas ocupações, ao mesmo tempo que as práticas de resistência pacífica pelo SOC iam dando a volta ao mundo.

 

O clima de emergente agitação social pelo movimento «jornalero» acabou por pressionar o Governo andaluz, com a chegada do PSOE à «Junta de Andalucía», a promulgar em 1984 a Lei Andaluza da Reforma Agrária (LARA). Para o SOC, que tinha vindo a trabalhar na sua própria proposta de RA, a LARA foi uma deceção, tornando-se um instrumento de desativação do movimento «jornalero» e das suas reivindicações históricas. Como diz Diego: «Se não queres fazer a reforma agrária então o que tens que fazer é agarrar no [seu] nome, esvaziá-la de conteúdo e enganar toda a gente.» Esta lei não visava, de facto, a redistribuição da terra pelos/as trabalhadores/as rurais e aquilo que chamava de expropriação de terras não desmantelava a estrutura latifundiária, antes tinha como fito principal viabilizar a agricultura de grande escala (6). Para esse fim, o Governo andaluz expropriava temporariamente partes do latifúndio (terras improdutivas, geralmente as de pior qualidade) e efetuava melhoramentos: acessos, infraestruturas e sobretudo instalação de regadios. Findo o período de expropriação (12 anos), as terras eram devolvidas ao proprietário, mediante pagamento do investimento público realizado para as tornar produtivas, o que em grande parte dos casos era feito com as próprias terras (pois ao grande latifundiário nunca interessou o trabalho da terra…). Da propriedade tornada pública através deste mecanismo, apenas uma parte passou para o uso coletivo dos/das «jornaleros/as». Mas isso nunca teria sido conseguido sem a pressão das ocupações de terra pelo SOC. Marinaleda é a experiência mais conhecida, referência de luta pela terra com a ocupação de «El Humoso» – 1200 hectares, resgatados aos 5000 ha tornados públicos pela expropriação do Duque do Infantado (possuidor de 17 000 ha!).

«Jornaleros/as» numa ocupação em Osuna, Sevilha (1978). Fonte: «Archivo de la Transición.»

Sindicalismo agrário e ecologismo popular                   

É interessante olhar para outras mobilizações do SOC que ampliavam a sua ação na defesa das comunidades rurais, em sinergia com outros movimentos sociais, como o movimento ecologista. Nos anos 80 dá-se um processo de convergência entre ambos, inicialmente à volta da recuperação das áreas florestais e do monte público (8), e da sua relação com a população rural, cortada durante a ditadura e as políticas florestais produtivistas. Aos valores conservacionistas do movimento ambientalista alia-se a defesa destas áreas como fonte de sustento e de trabalho, podendo reativar modos de vida no meio rural. Mobilizações sob o lema «Monte: vida e trabalho» procuravam reivindicar medidas de geração de trabalho, através da reflorestação, pastorícia ou aproveitamento de recursos florestais. Desde o Pacto Andaluz pela Natureza (1986), onde convergem estes movimentos, à fundação do Comité de Agricultura Ecológica (1991) vão-se tecendo ligações que influenciaram o pensamento do SOC.

Todas as ocupações acabavam em despejos e novas ocupações, ao mesmo tempo que as práticas de resistência pacífica pelo SOC iam dando a volta ao mundo.

Na relação com a ecologia, dá-se ainda uma significativa aliança. No seio das ocupações, e posterior desenvolvimento de experiências cooperativas de produção, por vezes em terras de má qualidade, de sequeiro, ou que não tinham sido lavradas durante décadas, apresentava-se o desafio da produção. Fazê-lo de uma forma mais sustentável, e que gerasse emprego, era uma preocupação. Para algumas cooperativas primava, de facto, a geração de emprego. Procuravam-se «cultivos sociais» que garantissem mão de obra, refere Diego. É o caso de Marinaleda, de gestão mais vinculada a uma conceção operária do movimento «jornalero», dando prioridade à criação de trabalho em relação ao modelo de produção agrícola (3). Outras cooperativas procuravam modelos produtivos que conferissem maior sustentabilidade ecológica, surgindo a necessidade de orientação técnica na implementação de outras práticas. Aqui, o papel do Instituto Social de Estudios Campesinos (ISEC) foi fundamental.

ISEC, investigação militante e a Agroecologia emergente

Fundado em 1978, em Córdoba, por Eduardo Sevilla Guzmán, o ISEC surge no âmbito da nova corrente de estudos camponeses na Europa e da necessidade de evidenciar o papel do campesinato no contexto internacional da segunda metade do século XX. Orientou-se para o estudo histórico e social das transformações no mundo rural, especialmente da estrutura agrária, e para a análise dos processos de resistência camponesa face ao desenvolvimento do capitalismo. Foi um ponto de convergência interdisciplinar no meio académico, de reflexão e construção teórica de uma via «campesinista», paralelamente a uma praxis militante, apoiando e cooperando com outros movimentos sociais na Andaluzia e com movimentos camponeses na América Latina.

«A luta pela terra continua vigente». Ocupação da propriedade Somonte em Córdoba (2012). Fonte: Arquivo SAT-SOC.

Na colaboração com o SOC, além de o apoiar e participar ativamente nas suas ações de protesto e ocupação, houve uma estreita interação em algumas das terras ocupadas e assentamentos. «O que me chamou mais a atenção foi que, começando a conversar com eles, ao começarmos a ser amigos, eles definiam-se como “camponeses sem terra” e diziam que eram camponeses sem terra porque aquela terra era dos seus avós, dos seus antepassados, e eles sabiam-no e estavam a tentar recuperá-la porque lhes tinha sido tirada» (9). Gerou-se um processo de aprendizagem, reflexão e intercâmbio entre investigadores/as do ISEC e as pessoas «jornaleras» de diferentes cooperativas, sendo definidas no V Congresso do SOC (1993) as bases do modelo de cooperativismo que perseguiam. A sustentabilidade ecológica, social e económica das cooperativas fica refletida neste momento, destacando-se como objetivos: a procura de formas de produção alternativas; o poder viver do trabalho, viver da terra; serem rentáveis mas não lucrativistas; assegurar o autoconsumo; gerar reciprocidade; praticar a venda direta; praticar uma vida comunitária, com base no apoio mútuo, na solidariedade, no assemblearismo (10).

Neste processo coletivo, no que toca ao desenvolvimento do modelo produtivo pelas cooperativas, era requerido ao ISEC um assessoramento em agricultura de base ecológica, que estivesse vinculada à sua identidade. Aquilo que Eduardo SG chamou, mais tarde, primeiras experiências agroecológicas do ISEC e jornaleros/as partiu da consciência destes sobre a perda de conhecimento local e a expressão da necessidade de reapropriação de recursos dos lugares que ocupavam. Por exemplo, a vontade de usar sementes tradicionais levou à pesquisa e ao encontro com «las personas mayores». O conhecimento dos agroecossistemas andaluzes torna-se uma força motriz das experiências cooperativas. Abordagem que nos parece relevante ressaltar como matriz diferenciadora do que questionamos estar ausente em Portugal. Primeiro, porque não se tratou de uma abordagem de cima para baixo, em que «técnicos/as» ou «especialistas» da academia (e não só) impõem os seus modelos, e sim um processo «sentipensado» pelas pessoas que dele fizeram parte, decidindo sobre a sua maneira de trabalhar a terra. Segundo, porque não foi uma abordagem exógena, trazendo um modelo de maneio ecológico de qualquer outro lugar do mundo, ou descontextualizado da realidade socioeconómica e cultural andaluza. Foi procurar o conhecimento local, as práticas pré-industriais, sobretudo pré-Revolução Verde, vendo nessas raízes e nas lutas do campesinato (com e sem terra) o caminho da luta contra o sistema agroalimentar capitalista. A esta abordagem podemos chamar Agroecologia!

Trabalho coletivo em Somonte. Fonte: Arquivo SAT-SOC.

O apoio do ISEC deu lugar a processos de investigação-ação-participativa, em que se procurava redesenhar o sistema produtivo, através de práticas ecológicas de maneio e do desenvolvimento de mercados alternativos. «Tierra y Libertad» foi a primeira cooperativa a ser criada, em Cádiz, e a implementar este processo participativo. Seguiu-se a cooperativa «La Verde», em Villamartín, numa propriedade ocupada por um grupo de jovens do SOC, um espaço pioneiro de produção ecológica, envolvendo a recuperação de tecnologias e saberes tradicionais. E ainda as cooperativas «El Romeral», «El Indiano» e «Esperanza Verde», com as quais o ISEC também colaborou, numa abordagem metodológica multidimensional. Desde o redesenho do agroecossistema e a recuperação do conhecimento tradicional ao desenvolvimento de redes alternativas de distribuição e comercialização, com a criação de associações de consumidores nas cidades próximas. É o caso da experiência de «Almocafre» em Córdoba ou de «La Breva» em Málaga, articuladas hoje com outros grupos e associações na Federación Andaluza de Consumidores y Productores Ecológicos. Segundo Eduardo SG, da praxis sociopolítica à volta do maneio ecológico participativo que se deu nestas cooperativas resultou a «agroecologia andaluza».

Paralelamente ao apoio das cooperativas do SOC, desde o final dos anos 80, o ISEC tinha vindo a trabalhar na construção da sua própria proposta teórica – da Agroecologia – no campo das ciências sociais (e sociologia rural em particular), integrando aspetos ecológicos e sócio-económicos da atividade agrária. Combinando diferentes contribuições do pensamento social agrário e do estudo das formas de agricultura camponesa no maneio dos recursos naturais, surge uma nova abordagem de sustentabilidade agrária, dotando a Agroecologia de uma forte componente social e política, como ilustram M. González de Molina e Gloria Guzmán sobre as suas origens (11). A partir da discussão engajada e da construção coletiva no âmbito académico, desde a Andaluzia à América Latina, o corpo teórico da Agroecologia foi sendo conformado, assim como enriquecidas as suas bases epistemológicas. Marcava-se o início da sua disseminação no Estado espanhol, e também na América Latina, fruto de diferentes programas e colaborações com continuidade até hoje.                                        

O que ficou da Reforma Agrária?

Retomando o fio cronológico das lutas do SOC, eis alguns acontecimentos que nos permitem entender qual foi a continuidade da LARA de 1984, e como se foi adaptando o SOC e reconfigurando a sua agenda de luta, numa conjuntura política, social e económica em mudança. Em 1986, Espanha (como Portugal) entra na então CEE, ficando as políticas agrárias estatais submetidas à Política Agrícola Comum, ao mesmo tempo que se consolida o processo de industrialização da agricultura andaluza, iniciado nos anos 50. Por sua vez, e no âmbito da LARA, o governo do PSOE implementa, em 1984, um sistema de subsídio agrário, acompanhado de um Plano de Emprego Rural (PER). «Sabiam perfeitamente que [com] a luta pela terra estávamos a tocar diretamente na propriedade privada dos meios de produção, e então eles preferiam dar-nos esmola do que a propriedade». Este sistema de subsídio, vigente atualmente, aumentou a dependência económica das e dos trabalhadoras/es agrícolas, sujeitos muitas vezes às redes clientelares dos empresários, e diminuiu as mobilizações «jornaleras» pelo acesso à terra. Contudo, para Diego, se não fosse a luta do SOC não teriam conseguido as convenções coletivas de trabalho que passaram a ser assinadas, nem teriam sido possíveis apoios como o PER, e «se nem [os subsídios] existissem, hoje Andaluzia estaria como Castilla y León, haveria aldeias desertas, teríamos ido embora, não poderíamos viver…». Diego assume a contradição em que o SOC teve que se mover, destacando a importância dos apoios, «queremos a luta pela terra [mas] as pessoas tinham que comer todos os dias; a terra é a longo prazo mas amanhã o que é que eu como?». Sobre o que fica, acrescenta ainda: «Ser “jornalero” na Andaluzia era um insulto. Demos-lhe nome, enchemos de dignidade esse nome. Com a nossa luta, fizemos com que a gente se sentisse digna de trabalhar no campo, que as nossas mãos e o nosso esforço fossem reconhecidos.»

Todas as ocupações acabavam em despejos e novas ocupações, ao mesmo tempo que as práticas de resistência pacífica pelo SOC iam dando a volta ao mundo.    

A partir dos anos 90, a política de redistribuição de terras é abandonada pelo Instituto Andaluz de Reforma Agraria (IARA; criado no âmbito da LARA), que não só não procura adquirir mais terras como, pelo contrário, começa lentamente a liquidar o seu património. O SOC denunciava a venda em leilão das terras pela «Junta de Andalucía» pois, como explica Diego, «se uma propriedade se vende, não a compra nenhum “jornalero”, nenhum cooperativista, nem nenhuma entidade municipal, [quem] a vai comprar [será] um especulador, um latifundiário». Insistiam que «pelo menos estas terras, que o Governo expropriou, pudessem passar a cooperativas ou projetos municipais». Uma reivindicação que se mantém até hoje. O IARA chegou a adquirir mais de 20 000 hectares de terra, onde se formaram as cooperativas do SOC. É uma quantidade considerável de terra pública, ou não tanto, se considerarmos a extensão de terras na Andaluzia. O processo de venda acelerou-se com o desmantelamento oficial do instituto em 2010, e com um novo decreto em 2011 que pôs à venda todas as terras expropriadas. As cooperativas que até então usufruíam da cedência do uso da terra pública viram-se obrigadas a comprar as terras, arriscando-se a ficarem sem elas. Houve condições favoráveis para as cooperativas, tendo prioridade na compra e podendo pagar em 20 anos, a um valor mais baixo (60%) do que o do mercado. A exceção foi Marinaleda, com as suas oito cooperativas, onde o «ayuntamiento» se negou a comprar as terras de El Humoso, pesando atualmente sobre as cooperativas uma ordem de despejo que ameaça a sua experiência e história de luta.

Mural na propriedade ocupada Cerro Libertad (2017). Fonte: Arquivo SAT-SOC.

Evolução e reconfiguração das lutas do SOC

Desde os anos 1990 até à atualidade, o SOC foi-se adaptando aos diferentes contextos e reconfigurando a prioridade da luta pela terra que, após o fracasso da LARA, acabou por passar para segundo plano. Em 1993 muda o seu nome para Sindicato de Obreros del Campo y de Medio Rural, incorporando uma nova filosofia de desenvolvimento rural alternativo e abrindo-se a outros setores laborais. Em 2007, integra-se no Sindicato Andaluz de Trabajadores/as (SAT). À conversa com Óscar Reina, filho de «jornaleros» e atual porta-voz do SAT-SOC, centramo-nos na atualidade das lutas do sindicato e voltamos a situar a luta pela terra hoje, num território onde continua o latifúndio, a privatização da terra e a espoliação dos recursos. «A luta pela terra continua vigente. Há quem a veja como algo do passado, mas tentamos que não se perca e estamos em lutas importantes como Somonte, que continuamos a ocupar depois de quase 12 anos». Somonte, na província de Córdoba, é uma propriedade de 400 hectares que pertencia ao IARA, foi posta à venda a 5 de março de 2012 e ocupada um dia antes pelo SAT-SOC, juntando cerca de 500 pessoas, «jornaleras» e apoiantes. No âmbito da crise sistémica dos anos 2010-15, em que dispararam o desemprego, a pobreza e os despejos, «aproveitámos o contexto para vincular [a ocupação] ao que considerávamos ser a raiz do problema». Decidiram que era uma ação que «tinha de se manter no tempo, gerar uma contradição no sistema, gerar um debate sobre o que se está a passar na Andaluzia». Outros 1200 ha de duas propriedades públicas perto de Somonte foram postas à venda, e vão «passar para fundos de investimento, que o que querem fazer é pôr centrais fotovoltaicas». Ao caso da Somonte somaram-se outros processos de ocupação e resistência nos últimos 10 anos, como as da propriedade militar «Las Turquillas», em Osuna e Écija, ou a do «Cerro Libertad», em Jaén. São ações e outras formas de desobediência que têm uma repercussão mediática importante, mas o sindicato está ativo na ação diária, no compromisso com a defesa dos/das trabalhadores/as agrícolas, nas campanhas de trabalho temporário, na denúncia de contratos irregulares e das condições de exploração. Há mais de 100 000 pessoas a trabalhar debaixo dos plásticos de Almería, a maioria migrantes, em condições infra-humanas de trabalho e alojamento, como reconhecemos também no Alentejo. Outras 100 000 em Huelva, maioritariamente mulheres, na recolha dos morangos. Acontece nas estufas e nos olivais intensivos, mas a «jornalerización» (12) do trabalho tem vindo a ampliar-se a muitos outros setores produtivos na Andaluzia, como comenta Óscar. O SAT-SOC tem estendido, assim, o seu âmbito de ação, na defesa da classe trabalhadora e «desapossada», mantendo essa caraterística da «ação direta, de chegar onde mais ninguém chega, de estar a pie de tajo (13)». Um sindicato que insere o seu contexto de luta anticapitalista na Andaluzia, sem perder a perspetiva de outras lutas no mundo, nessa relação e aliança com organizações irmãs dentro de La Vía Campesina.

 

Articulação camponesa e dissidente face à globalização neoliberal 

A luta que o SOC desenvolveu no contexto andaluz foi sendo também retroalimentada na América Latina, em diálogo com outros sindicatos e movimentos (14). A primeira convergência dá-se em 1981, em Manágua (Nicarágua), na Reunião Continental da Reforma Agrária e Movimentos Camponeses. Nesta, o SOC contacta com o Movimento Sem Terra (MST), descobrindo a semelhança das suas formas de luta e evolução ideológica, iniciando-se uma interação que se intensifica nos anos seguintes, no contexto das experiências cooperativas que o SOC estava a desenvolver. Seguiram-se outros encontros internacionais, inclusive numa das propriedades conseguidas pelo SOC («Encuentro Intergaláctico Contra el Neoliberalismo y por la Humanidad» convocado pelo EZLN, em 1997). Já nesta altura tinham sido criados, no seio do SOC, os primeiros comités europeus de apoio ao neozapatismo e ao MST. Fruto deste processo de convergência internacional, consolida-se um discurso rural antagónico à globalização e ao neoliberalismo, que esteve na génese da formação do Movimento Internacional La Vía Campesina em 1993, no qual o SOC esteve presente desde os seus inícios, assim como na coordenadora europeia (ECVC).

 

Que lugar ocupa a Reforma Agrária na construção política da Agroecologia?

Na Andaluzia e no Alentejo, a RA foi um processo de luta contra a estrutura fundiária e as formas de violência e exploração que o dispositivo latifundiário instalou. É precisamente no seio da classe de trabalhadores/as rurais, «jornaleros», espoliados/as da terra e da sua campesinidade, que nasce a RA, encarnando este conflito redistributivo da terra e utilizando a ocupação como forma de ligação à terra baseada no seu uso coletivo e função social (soberania alimentar!). Se isto é comum aos processos coevos de RA no Alentejo e na Andaluzia, em territórios que partilham muitas semelhanças, um enorme fosso diferencia o lugar da luta pela terra na construção política da Agroecologia em ambas as realidades. Neste ensaio sugerimos que o compromisso com a terra que a RA realiza sob forma de luta de classes, por justiça social, situa e enraíza politicamente a Agroecologia e define-a (até do ponto de vista ecológico!) enquanto luta contra sistemas de opressão e, nesse sentido, constitui-se como alternativa ao sistema agroalimentar capitalista (a Agroecologia será anticapitalista ou não será!). Enquanto na Andaluzia a construção política da Agroecologia acompanha temporalmente, se alia e se mistura a este movimento social de luta pela terra, local e internacional, tanto através da academia (ISEC) como da sua estrutura sindical (SOC-SAT), no Alentejo não conseguimos encontrar um caminho «percorrido» entre esta luta pela terra durante o PREC e a Agroecologia atualmente em construção. Verifica-se um corte, e até um palimpsesto, da memória «revolucionária» (15), um arraigamento apolítico da ecologia na permacultura/sintropia ou na legitimidade científica de uma academia não militante, e uma aliança com a institucionalização banal da Agroecologia. O que nos atrevemos a sugerir neste ensaio é o lugar fundamental da luta pela terra, enquanto raíz política, na Agroecologia. A reforma agrária, com os seus relativos sucessos e fracassos, enquanto «compromisso com a terra», atuando como uma memória viva, não inerte, uma memória com futuro.


Autoria: Roseiras Bravas | roseirabrava@disroot.org

publicado no #40 do Jornal Mapa, edição impressa


Notas

1. Padre «jornalero». Figura querida no SOC, com um importante papel na ligação com os movimentos camponeses na América Latina e com o ISEC.

2. Eduardo Sevilla Guzmán, «El latifundio como constante historica», El País, 11 de agosto de 1981.

3. Javier García Fernández, 2017. Tierra y Libertad. Sindicato de Obreros del Campo, cuestión agraria y democratización del mundo rural en Andalucía. Editorial Icaria.

4. Apanha da azeitona verde.

5. Propriedade que inclui os terrenos e as casas de habitação.

6. Transnational Institute, 2013. «Land: Access and Struggles in Andalusia, Spain», in Land Concentration, Land Grabbing and People’s Struggles in Europe.

7. Em Marinaleda nasce a cooperativa Humar, que é ainda hoje o principal tecido produtivo e de emprego nesta localidade, transformando e comercializando produtos hortícolas e azeite, em circuitos alternativos da economia social e solidária.

8. Tipologia de propriedade florestal, pertencente ao Estado e de domínio público.

9. David Gallar e Rosemeire de Almeida. «Revisitando la agroecología: entrevista a Eduardo Sevilla Guzmán». Revista NERA, 27, jan-jun. 2015

10. Eduardo SG, 1999. «Asentamientos rurales y agroecología en Andalucía». De sur a sur: Revista andaluza de solidariedad, paz y cooperación.

11. González de Molina e Gloria Guzmán, 2017. On the Andalusian Origins of Agroecology in Spain and Its Contribution to Shaping Agroecological Thought. Agroecology and Sustainable Food Systems.

12. Precarização das condições laborais, onde o trabalho «à jorna» (associado ao trabalho temporário no campo) se estende a outros setores, com contratos por dia ou horas.

13. No lugar do trabalho.

14. Eduardo SG e Joan Martínez-Alier, 2005. New Rural Social Movements and Agroecology.

15. A tal ponto que assistimos, no seio do Alentejo, à designação PREC ser usada pela associação Terra Sintrópica como nome de um projeto «agroecológico» de vanguarda… e ser rebatizado de Processo Regenerativo em Curso.


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