shop-cart

Lendo: Memórias para a construção política da Agroecologia (parte I)

Memórias para a construção política da Agroecologia (parte I)

Memórias para a construção política da Agroecologia (parte I)


A meados dos anos 70, no Alentejo e na Andaluzia, emergiam dois processos de lutas agrárias pela terra, da mão de trabalhadores/as rurais e «jornaleros/as». Revisitamos estes processos, num ensaio que também procura indagar as raízes políticas da Agroecologia.

Um artigo em duas partes do coletivo Roseiras Bravas | roseirabrava@disroot.org


Inserido na rúbrica 25 de Abril – outros 50 anos

Parte II AQUI


«Da terra é que sai tudo, da terra é que a gente come, da terra é que a gente vive

E ela também come a gente.» (1)

A terra está no coração de processos de disputa entre quem a trabalha − e com ela estabelece relações de uma força vital − e quem a detém. Os processos de democratização do acesso à terra, geralmente denominados como Reforma Agrária (RA), podem ser desencadeados e legitimados por Estados («de cima para baixo») e/ou forçados por camponeses e trabalhadoras rurais. Neste último caso, os processos de RA têm constituído uma das expressões mais fortes das lutas agrárias. A questão do acesso à terra coloca-se desde que, ao longo dos séculos, esta foi sendo privatizada, ou seja, quando alguém se outorgou o direito de ditar a propriedade desse bem que não é de ninguém. Na Europa, o ápice desses processos foi a revolução agrícola, no séc. XVIII, com as «enclosures»: o cercamento e a apropriação privada das terras comuns.

Pichagem. In: Reforma Agrária. Da utopia à realidade, de Lino de Carvalho.

O acesso à terra − que não implica necessariamente a sua propriedade − possibilita e está imbricado nas formas camponesas de organizar o trabalho (re)produtivo e, logo, possibilita a produção do alimento. Estas dimensões de luta, de trabalho, de alimento, de relação com a terra, de campesinidade, são alguns dos pilares da Agroecologia que nos fazem, desde logo, questionar se se pode construir Agroecologia sem elas. Agroecologia pressupõe também o estudo e a valorização dos conhecimentos agrícolas camponeses existentes num território. Nada disto se vê na Agroecologia nascente em Portugal, onde esses conhecimentos pouco importam face à beleza ecologicamente insofismável da permacultura, da agricultura biodinâmica, sintrópica ou regenerativa, como se a Agroecologia fosse um mero modo de produção. Muito menos se vêm as lutas políticas (o que dizer então de Revoluções!) que, ao longo da História, o campesinato protagonizou.

Apesar de, em conferências e confluências, ser referido que a Agroecologia tem uma dimensão política, social e económica, reparámos que há um grande vazio intuitivo relativamente ao que elas englobam e, quando tais referências aparecem, consistem numa radiografia de contraste com a agroindústria ou a «agricultura convencional» e os seus efeitos no solo, na saúde, no clima, como se estivéssemos a falar de modelos num espaço asséptico e vazio. Há pouco (ou mesmo nenhum) debate aprofundado sobre a natureza política da Agroecologia.

Conseguimos reconhecer essa dimensão porque felizmente existem outras Agroecologias, desde a Andaluzia (tão próxima do Alentejo) até à América Latina. Este artigo é o nosso contributo para insuflá-la, dando-lhe conteúdo, enraizando-a na terra, na luta pelo território. A luta deu-se e dá-se no campo, situada, concreta, ardente. E dá-se por vezes de maneira bem eloquente: atualmente, a norte, na luta pelos baldios, pela pastorícia, pela agricultura tradicional, travada pela população das Covas do Barroso contra a Savannah Resources, encontramos um caso de estudo para qualquer disciplina de Agroecologia. Também durante o PREC, e de maneira intrincada, a RA foi um combate pela terra, pelo direito à agricultura, protagonizado pelo campesinato, nomeadamente o alentejano. Um acontecimento «quente» e controverso, com múltiplas experiências, geralmente, colocadas sob um mesmo chapéu: as UCP, controladas pelo Partido Comunista Português. Para falar deste processo, fomos ouvir vozes de uma experiência um pouco diversa, no Vimieiro, concelho de Arraiolos.

Transporte da sede da Cooperativa para o local de trabalho (anos 80). Arquivo privado.

Um outro processo de luta pela terra, a partir de trabalhadores/as rurais − «jornaleros/as» − ganhava contornos mais ou menos pela mesma altura, do outro lado da fronteira, na Andaluzia. Da confluência do sindicalismo agrário, do ecologismo e de um meio académico militante, surgem ocupações de terra, experiências cooperativas de produção e comercialização e… uma corrente agroecológica que, aparentemente, nunca desaguou em Portugal. Deste caldo, falaremos na próxima edição do MAPA. Decidimos dar luz, voz e memória a dois processos distintos, mas que têm em comum a luta e a resistência contra estruturas capitalistas agrárias semelhantes, traços inequívocos da construção política da Agroecologia.

 

Reforma Agrária: Revolução dentro da Revolução

A estrutura fundiária portuguesa é geralmente apresentada de forma dicotómica: minifúndio, propriedade de pequenos/as camponeses/as, a norte do rio Tejo, e a sul, o latifúndio, propriedade «herdada» por famílias ao longo dos tempos, que emprega trabalhadores/as rurais − um retrato que não corresponde bem à realidade. Mas foquemo-nos a sul do rio Tejo, nos anos 50-60. Vivia-se numa ditadura, retratada como fechada, o que não impediu que a revolução verde e o capitalismo agrário se adentrassem pelo país. O Alentejo seria uma paisagem composta por «herdades» (em 1968, 2% das explorações desta região representavam 57% da superfície agrícola total) que produziam de forma intensiva, sobretudo, cereais. Os proprietários obtinham capital através do arrendamento de terras; de subsídios, da caça e/ou da venda de cereais, azeitona e cortiça. A estrutura agrária era composta por diferentes formas de relação entre os proprietários da terra e feitores, rendeiros, seareiros (agricultores familiares dentro das grandes propriedades), trabalhadores permanentes, trabalhadoras à jorna, alugadores de máquinas. Sendo que os e as trabalhadoras assalariadas representavam 82,2% da população ativa agrícola, nos distritos de Beja, Évora e Portalegre, não obstante as grandes vagas de emigração dos anos 60 e 70. Destes, a maioria eram trabalhadores/as à jorna, que tinham rendimentos miseráveis e viviam à mercê de feitores e proprietários. Nessas décadas, o Alentejo foi palco de diferentes formas de luta, desde a resistência quotidiana, das lutas anarcossindicalistas no início do séc. XX à organização clandestina do PCP, lutas que culminaram nas greves pelas oito horas, em 1962.

O 25 de abril de 1974, um caldo de tensões políticas, partidárias, militares, nacionais e internacionais, abriu rumo a uma explosão de experiências e vontades. A RA, uma revolução dentro da revolução, tem várias versões dependendo de quem a conta: processo imposto pelas forças que tomaram o Estado; processo heroico dos e das trabalhadoras rurais; processo manipulado pelos partidos, em particular pelo PCP.

O PREC − Processo Revolucionário em Curso − potenciou os movimentos populares, entre os quais o movimento da luta pela terra. A partir de abril de 74, formaram-se sindicatos de trabalhadores/as rurais cuja principal reivindicação foram os contratos coletivos de trabalho, os aumentos salariais e a semana de 44 horas de trabalho. Contratos que não foram respeitados por grande parte dos proprietários fundiários, conduzindo à exigência, pela primeira vez, em janeiro de 1975, por parte dos e das assalariadas rurais da expropriação dos latifúndios e da realização da RA. Em fevereiro desse ano, começaram as primeiras ocupações no distrito de Évora, lideradas por seareiros e alugadores de máquinas e não pela massa de assalariados/os rurais, que só mais tarde toma as rédeas das ocupações. Nos meses seguintes, deu-se a concatenação de vários processos: ocupações dos latifúndios, elaboração de legislação para nacionalização e expropriação da terra e reorganização da vida económica e social dos e das trabalhadoras rurais, a sul do rio Tejo.

Enquanto durou, a RA alterou profundamente a estrutura agrária – relações de poder, de trabalho, de relação com a terra. Se o não tivesse feito, provavelmente, a reação não teria sido tão dura e rápida.

A superfície gerida pelos/as trabalhadores/as situou-se, em cerca de um milhão e 300 mil hectares (2), em oito distritos, o que representava cerca de 37% da superfície agrícola da Zona de RA e 25% da superfície arável do país. As unidades de produção e/ou cooperativas formadas chegaram às 511. Na sua maioria, tomaram a forma de Unidades Coletivas de Produção (UCP), um modelo de concentração de inspiração soviética. No entanto, nem todas as experiências de gestão coletiva o seguiram, como veremos no caso do Vimieiro.

A luta principal destes trabalhadores era a garantia de trabalho, por salários e condições de trabalho e vida decentes, ou seja, a maximização do emprego, através da gestão coletiva da terra (e não da posse, porque as terras foram expropriadas pelo Estado, a quem as cooperativas de trabalhadores passaram a pagar renda) e dos meios de produção, a que se veio somar a tentativa de controlo da comercialização do que produziam. Uma das principais preocupações na reorganização do trabalho foi a igualdade salarial independentemente do trabalho realizado que, no entanto, nem sempre se estendeu às mulheres.

Relativamente aos processos produtivos, procuraram aumentar a área semeada, as culturas de sequeiro e o efetivo pecuário, bem como recuperar e construir pequenas barragens e charcas para aumentar o regadio. Com o aumento da produção, os e as trabalhadoras começaram também a procurar canais de comercialização, até porque muitos dos canais habituais de escoamento, que discordavam do rumo da RA, recusavam comprar os seus produtos. Começaram a vender para as novas cooperativas de consumo, as comissões de trabalhadores e de moradores/as que surgiam, principalmente, nos centros urbanos. Uma lógica de intercooperativismo que teve muitos entraves internos, não só pela criação de novos intermediários e aumento dos preços, como pelo não pagamento dos produtos. Algumas cooperativas de produção optaram, posteriormente, por vender diretamente às e aos consumidores, como relatado na revista Sementeira de 1977 (3).

A tomada de poder e as novas formas de organização popular, apesar de todas as contradições e incapacidades inerentes a um processo massivo de transformação social, mexeram com a estrutura capitalista agrária que se consolidou durante o Estado Novo. O objetivo institucional da RA − no seu momento mais radical − era que 65% da propriedade rural fosse gerida coletivamente pelos e pelas trabalhadoras agrícolas, 25% pelos pequenos e médios agricultores e apenas 10% pelo capitalismo agrário. Esses números não foram atingidos, em especial pelo facto de o processo ter sido amputado e violentamente reprimido, a partir de «cima». No entanto, enquanto durou, a RA alterou profundamente a estrutura agrária – relações de poder, de trabalho, de relação com a terra. Se o não tivesse feito, provavelmente, a reação não teria sido tão dura e rápida.

 

A RA no Vimieiro

Trabalhos agrícolas nas Cooperativas do Vimieiro. Colheita do feijão. Arquivo privado.

No café da Sociedade Filarmónica União Vimieirense, o som ambiente é o da gravação do concerto da cooperativa de música popular Vento Suão (4), Fausto, Zeca Afonso e Garota Não. À mesa repartem-se, além de «miolos» (5) e «abaladiças», algumas perguntas e memórias sobre a RA no Vimieiro. Em terra de músicos e bons sapateiros, freguesia − dizem-nos − onde não há e nunca houve nenhuma sede de partido, a experiência vivida de autogestão e cooperativismo de base agrícola assume, nestas vozes, a tonalidade do Poder Popular. Em dezembro de 2014, um membro da extinta União de Cooperativas do Vimieiro esteve presente no Fórum de Cooperativas de Montemor-o-Novo. A perspetiva das mulheres participantes (6) foi objeto de estudo de uma investigação académica. O que aqui se conta é a reconstrução de uma conversa solta com quatro habitantes do Vimieiro, que tomaram parte, de maneira diversa, na luta pela RA.

 

Da Ocupação de Terras à União das Cooperativas

 

A primeira ocupação de terra no Vimieiro, legitimada pelo comando regional do sul do MFA, anterior ao quadro legislativo que viria a enquadrar legalmente o processo de ocupação e expropriação de terras, ocorreu na Herdade da Carteira, em fevereiro de 1975. Dizem ter sido a segunda de todo o país. Também aqui a iniciativa foi dos alugadores de máquinas e pequenos seareiros, que já estavam endividados no sistema de arrendamento de terras. O movimento de ocupação estendeu-se aos outros assalariados rurais e restantes herdades, sem resistência dos latifundiários. Sucediam-se as declarações de herdades ocupadas. A proteção armada estava do lado de quem ocupava. Numa das herdades, houve resistência por parte dos que arrendavam as terras (apesar de também pertencerem à classe de assalariados/as rurais). Aproximadamente 15 mil hectares passaram para as mãos dos e das trabalhadoras. Formaram-se cooperativas pequenas, em média com mil hectares, ou um pouco maiores, onde já se sabia que as terras eram pobres e davam pouco. A base de cada cooperativa eram as famílias que habitavam os montes, conheciam a terra e já trabalhavam nas herdades. Uma a uma, até esgotarem a capacidade de exploração, 268 homens e 191 mulheres constituíram as 12 cooperativas agrícolas no Vimieiro: Santana, Monte Velho, Tourega, Ilha Fria, Bardeiras, Vale da Pinta, Claros Montes, Nova Luz, Alavaroanes, Monte do Meio, São Gregório e 29 de Setembro, mês em que termina esta primeira fase de ocupação. Mas a terra era tanta que, como numa anedota alentejana, na reorganização do seu uso e posse, sobrou «latifúndio»: duas pequenas herdades sem gente para as trabalhar. Decidiram dividi-las em parcelas iguais de 500 hectares e entregá-las a dois agricultores, os únicos «latifundiários» da RA! Na prática, todas as terras da freguesia foram ocupadas e passaram para gestão das cooperativas.

 

A última ocupação foi a do edifício da Moagem, em outubro de 1977, onde se instalou a União das Cooperativas, que juntava todas as cooperativas agrícolas e agregava mão-de-obra técnica e administrativa ao serviço da União. O engenho de moagem movido com máquina a vapor remonta ao séc. XIX e foi recuperado pelo moleiro da localidade. Passaram a usar um motor a diesel para a moagem de cereais, e além do fabrico «do melhor pão das redondezas», no espaço funcionava a oficina de manutenção de máquinas agrícolas, a «casa da malta», que dava guarida a trabalhadores/as quando não iam dormir a casa e dormida aos estrangeiros que começaram a chegar em 78, espaço de assembleia geral, «apeadeiro» das pessoas que se deslocavam para trabalhar nas herdades ocupadas, sede para a «escrita» das cooperativas, local de festa e praça pública de discussão política.

A ocupação espontânea de terras e edifícios foi uma resposta prática às necessidades quotidianas e aos problemas da fome, exploração e desemprego causados pelo latifúndio e pelo aparelho autoritário e repressivo que sustentava essa estrutura de propriedade.

No fragor inicial, fora derrubado o muro do «Touril». Em vez de touradas para entreter os latifundiários, passou a haver bailes nos jardins do palácio dos condes do Vimieiro. O palácio, hoje parcialmente devoluto, não foi ocupado, apesar de terem aí planeado a construção de uma creche, que não foi concretizada nessa altura. A ocupação espontânea de terras e edifícios foi uma resposta prática às necessidades quotidianas e aos problemas da fome, exploração e desemprego causados pelo latifúndio e pelo aparelho autoritário e repressivo que sustentava essa estrutura de propriedade. Da ocupação passou-se à expropriação, com a intervenção legislativa dos vários governos provisórios. As cooperativas passaram a arrendar as terras ao Estado, nunca se tornando proprietárias delas.

 

Organização Popular, Cooperativa e Família

A pequena dimensão das cooperativas no Vimieiro (em média, 30 a 40 pessoas), com base nas famílias que habitavam o monte, permitia tomar decisões em assembleia sobre a organização da produção. Em Évora, o CRRA (Centro Regional da RA) teve um papel de incentivo e de apoio técnico. Os CRRA eram dirigidos pelos melhores engenheiros agrónomos do país. Mas, no Vimieiro, mais do que a agronomia no planeamento da produção, as pessoas encontraram elementos-chave para a auto-organização na relação concreta com a terra e na racionalidade da lavoura pré-existentes. O que se produzia em cada cooperativa tinha condicionantes naturais que os e as trabalhadoras rurais conheciam por experiência própria, como a qualidade dos solos ou a água de que dispunham. Por exemplo, a cooperativa de S. Gregório produzia aveia e cevada, porque as terras eram mais pobres. A cooperativa da Ilha Fria tinha muitas «chabancas», que se abriam onde havia juncos, para cultivos de regadio. «Toda a gente se conhecia e sabia de tudo» e para a autogestão coletiva da produção e a organização do trabalho, nem a idade avançada das pessoas envolvidas nem a taxa elevada de analfabetismo foram indicadas como obstáculos. Na cultura popular, seja na agricultura camponesa, na poesia de tradição oral ou na música, resiste um valor intrínseco, prático, indómito, subversivo, que se torna aqui revolucionário. Na União, discutiam e tomavam decisões relativas a todas as cooperativas, como, por exemplo, quanto trigo cada uma tinha de trazer à Moagem para o fabrico do pão. «O poder popular é das coisas mais difíceis, mas esses momentos de politização não se esquecem». A aprendizagem era dia-a-dia, nas assembleias, nas tascas, nas carroças, nas camionetas. As pichagens nos muros, comunicados e jornais de parede difundiam informação e denunciavam sabotadores e fascistas. Na RA, o poder popular ganhou formas variadas. Na sua expressão cooperativista de pequena dimensão, no Vimieiro, este poder organizou-se com base nas famílias, sem pátria, mas com cooperativa. A gestão coletiva na RA teve diversas dimensões, estruturas e formas de ação e participação política. São detalhes que se encontram quando se procura, mas parecem tornar-se insignificantes nos dados oficiais e na correlação de forças que modelaram o contexto político, económico e agrário em que se inseriram estas experiências de autonomia.

           

«Produtividade» vs «Volta da Lavoura»

De 1974 a 1975, a área cultivada no Vimieiro mais do que duplicou. O que mudou na produção e o que persistiu nos usos da terra, e com que objetivo? Passou a decidir sobre o uso da terra quem a ocupa, ou seja, nela vive e trabalha, e não quem a possui. As decisões eram tomadas em assembleia, sem Comissões de Trabalhadores. Na decisão sobre o quê e como produzir, vários fatores se conjugaram.

Os e as trabalhadoras tinham, na sua maioria, 40-50 anos, tendo sempre trabalhado da mesma maneira − «Não dava para mudar a forma de fazer agricultura» −, numa convivência entre o modelo agro-silvo-pastoril e o modelo agroindustrial em plena expansão e desenvolvimento global. Continuaram a fazer searas de trigo, cevada, forragem, leguminosas como grão-de-bico e feijão, pastorícia e criação de gado, a cuidar do olival e do sobreiral, fazendo predominar as culturas de sequeiro sobre as de regadio. Persistiam práticas de manejo da fertilidade da terra, alheias à imediatez de um imperativo da produtividade máxima, como as incluídas na «volta da lavoura»: rotação de culturas, em que as terras deixadas em pousio eram adubadas com estrume animal; cultivo de tremocilha depois do trigo para adubação verde. A maior área de cultivo das várias cooperativas no Vimieiro era dedicada a esse cereal, usando as estruturas deixadas pela «campanha do trigo», a política agrícola do Estado Novo, para o Alentejo. A produção aumentou: esgotaram os silos do tempo de Salazar e tiveram de comprar mais. No que respeita à mecanização, falam da resistência inicial dos alugadores de máquinas à coletivização de alfaias agrícolas reivindicada pelos/as trabalhadores/as manuais e da chegada de tratores «Ursus» de países da URSS. Não se fala do uso de pesticidas, mas refere-se o fornecimento de adubos químicos pelos antigos Grémios da Lavoura e que a maior parte da semente vinha da EPAC (Empresa Pública de Abastecimento do Cereal), embora uma das cooperativas tivesse uns «trigos porreiros» de que mantinha e distribuía a semente. Fizeram-se plantações de tomate que, dizem, antes não se faziam. A garantia de escoamento e pagamento por uma fábrica nas imediações justificava a nova cultura. Nos dados sobre a produção das cooperativas do Vimieiro, há também registo de plantação de girassol. Na criação de gado e pastorícia, aumentava o tamanho das manadas e dos rebanhos.

O acesso ao uso da terra por quem dela necessitava para a sua sobrevivência resultou num aumento de produção. Havia múltiplas causas por detrás deste fenómeno, a começar pelo próprio aumento da área cultivada e do número de pessoas a trabalhar. A conclusão de que a RA na sua multitude de experiências se possa definir como essencialmente produtivista e antiecológica é, a nosso ver, um passo demasiado largo. No campo alentejano vivia-se, de acordo com Afonso Cautela (7), uma batalha entre a mentalidade produtivista − de um modelo de crescimento capitalista orientado para a sociedade do consumo e do desperdício − e a mentalidade camponesa, «núcleo de resistência ecológica», espírito inventivo em evolução e contínua adaptação ao meio em que vive, da qual, defende Cautela, a Agricultura Biológica poderia ter sido a melhor aliada para a realização do projeto revolucionário da RA.

Na cultura popular, seja na agricultura camponesa, na poesia de tradição oral ou na música, resiste um valor intrínseco, prático, indómito, subversivo, que se torna aqui revolucionário.

A Luta pelo Alimento

A RA teve uma forte componente de luta pelo alimento. Era preciso exorcizar o fantasma da fome que tinha assombrado o assalariado rural alentejano, sobretudo a massa dos e das trabalhadoras «temporárias» durante o jugo latifundiário, que «iam para casa, passar fome» quando não havia trabalho. O acesso direto à terra estava também ao serviço da autossuficiência alimentar das pessoas e não apenas da obtenção de um salário. Para quem pertencia às cooperativas agrícolas, havia nas herdades ocupadas pequenas hortas para o abastecimento alimentar das famílias. Para quem não pertencia, existiam pedaços de terra para fazer melão ou melancia, os chamados «meloais» ou «meloeiros». As cooperativas preparavam o terreno, dividiam esse espaço por números e sorteavam os talhões por essas pessoas. O dinheiro também não era o único meio de pagamento de salário ou de troca comercial. Eram frequentes os pagamentos «à maquia» aos moinhos e lagares (para receber farinha e azeite), as trocas diretas entre cooperativas − o pão do Vimieiro era trocado por vinho de Cortiçadas − ou os pagamentos com «a terça ou a quarta da produção». Isto mostra outras formas de racionalidade económica, baseadas em necessidades concretas e orientadas mais para o fortalecimento de laços sociais, através por exemplo da reciprocidade e da solidariedade, e menos para a acumulação de lucro.

Fechar ciclos. Frigoríficos e Salgadeiras

O salário, enquanto condição para uma vida digna, foi uma das principais lutas da RA. Mas após as ocupações não havia reservas de dinheiro para assegurar o seu pagamento. O Instituto da Reforma Agrária (IRA) pagou apenas os primeiros meses, a fundo perdido. Para poder continuar a pagar salários e garantir a sua regularidade, não bastava aumentar a produção, era preciso completar e fechar os ciclos de trabalho e produção sazonal com a comercialização. Para o fundo de maneio da tesouraria, vendiam lenha e cortiça. Na primavera, vendiam gado em leilão. Durante o inverno, vendiam a azeitona para os lagares dos «latifundiários». Vendiam cereais à EPAC (do Estado) e outros produtos a fábricas privadas. Ou seja, a ocupação de terras não significou que a pequena indústria de transformação ou a rede comercial para escoamento estivesse na mão das cooperativas. Na venda dos produtos, o sistema era sensível à ausência de pagamento e não podiam subsistir no «arame», sem serem pagos. Por falta de pagamentos, a tentativa de ligação campo/cidade através de uma cooperativa de consumo não foi bem sucedida. A venda direta nos centros urbanos não era possível porque não tinham transporte próprio e a quebra de confiança nos circuitos de comercialização direta bloqueou o seu desenvolvimento.

O capital necessário ao pagamento de salários continuava nas mãos das estruturas capitalistas, tornando o sistema cooperativo vulnerável a várias ameaças. Para financiar salários e outros investimentos, as cooperativas obtinham empréstimos, o que criava dívida e dependência em relação ao sistema de crédito. O apoio à autogestão dos e das trabalhadoras passava pela solidariedade musical e internacional. Fausto, Zeca Afonso e Vitorino deram um concerto na Alemanha para a compra de um torno mecânico… Com Fausto, a solidariedade foi ainda mais longe, e deu na plantação de um batatal (mas, fora de época, nem a solidariedade agrícola dá batatas). Nos finais de 77, as pessoas foram fazendo mealheiro para construírem a sua habitação, porque já conseguiam ter salário regular e com um empréstimo adicional construíram um bairro inteiro. Tinham vivido sem condições, por vezes um quarto para famílias inteiras, arrendados aos latifundiários. A conquista da habitação foi um aspeto fundamental da melhoria de condições de vida. Equiparam as casas com eletrodomésticos e passaram a ter frigoríficos em vez de salgadeiras. Apesar do frigorífico simbolizar essa conquista de bem-estar social, guarda-se a memória do sabor da carne conservada na salgadeira num prato tradicional e contam-se histórias do zelo com que as avós as defendiam. Na luta pelo salário igual entre homens e mulheres das cooperativas, outra grande batalha da RA, houve melhorias, mas a igualdade não foi atingida, admitem. Foi, ainda assim, uma luta, levada a cabo pelas mulheres, resultado da sua emancipação política e cultural, também na conquista do espaço público e no direito à autodeterminação da sua saúde sexual e reprodutiva.

Parte do engenho da moagem utilizado pela União de Cooperativas, no espaço que hoje é uma hospedagem, chamada apenas «Antiga Moagem». Da Reforma Agrária nem uma miragem.

O que sobra da RA no Alentejo?

Quando se fala do fim da RA, as causas externas misturam-se com fatores internos que se tornaram desfavoráveis quando o ambiente político mudou. Com a perda do apoio político e militar após o 25 de Novembro, as pessoas traumatizadas pelo passado recente pressentiram que era preferível o certo ao incerto e agarraram-se à possibilidade de serem indemnizadas. A proteção militar adiou durante algum tempo a aplicação da «Lei Barreto» (1977), mas a perda desse apoio e o regresso da GNR aos campos força a entrega de reservas aos latifundiários. «Eles aí vêm. Vêm a cavalo. E são muitos e muitas são as armas que trazem. Querem as terras da cooperativa e a cabeça dos trabalhadores. Fujam, são muitos.»(3). O medo sobreveio e não houve resistência à restituição de terras. Aos latifundiários foram perdoadas as dívidas que tinham com os extintos Grémios, receberam de volta as terras ocupadas e os edifícios melhorados, e ainda foram indemnizados pelo Estado por cada ano de expropriação, ou seja, acabaram por multiplicar as fortunas que tinham e por ser «os mais beneficiados». Ao mesmo tempo, do outro lado, os créditos das cooperativas tornavam-se fontes de debilidade e asfixia, num ambiente que se tinha tornado hostil e que fazia passar a gestão desses créditos para mãos privadas dos bancos. E, para alguns, o problema foi também o facto de o processo agrário não ter sido acompanhado por uma mudança de mentalidade e por uma revolução cultural. Ainda faltava um espírito cooperativista autêntico, que não duvidasse de si próprio, com uma noção de partilha adequada, que pensasse em todos e todas − e para o futuro.

Sem as cooperativas agrícolas, sem a União, sem as terras, então o que é que fica? «Fica a gente». As memórias, as histórias, algumas fotos. A cultura popular e a vontade de tocar e cantar. O pensamento crítico, alimentado pela experiência prática da luta coletiva pelo acesso à terra, e por uma vida melhor.


A ecologia do grão-de-bico anticapitalista
 

O Alentejo na Reforma Agrária, de Afonso Cautela (1975) discute e ilustra a RA desde uma perspetiva militante ecológica. Com as vozes da pequena agricultura, Cautela dramatiza a encruzilhada revolucionária do campo alentejano e ilustra-a com vários episódios, num dos quais personifica o conflito agrícola com o latifúndio no confronto entre cártamo e grão-de-bico que se inicia, note-se, antes do 25 de Abril: «Por que é que o grão-de-bico, a “leguminosa dos pobres” deixou de interessar o grande agrário, o senhor da cultura extensiva, e em sua substituição vai para cinco anos, o cártamo e o girassol invadiram o latifúndio alentejano?» O cártamo presta-se à total mecanização e dispensa a mão-de-obra (e a luta de classes) que a colheita do grão (feita de madrugada) requer. O mercado do grão é pouco rentável, de consumo popular. As leguminosas dão azoto aos solos enquanto as oleaginosas esgotam-no e forjam aliança com os adubos químicos. Dá ainda voz às acusações do povo ao cártamo: «cegar animais, matar perdizes e contagiar o piolho ao trigo» e defende que o grão-de-bico deveria estar «no centro de qualquer Reforma Agrária».
 


Continuar para PARTE II do artigo

Autoria: Roseiras Bravas | roseirabrava@disroot.org

publicado no #39 do Jornal Mapa, edição impressa


Notas

(1) Documentário Lei da Terra (1975). https://www.youtube.com/watch?v=9b_4ogTU4Ys

(2) Oliveira Baptista, Fernando (2010). Alentejo a questão da terra. Loulé: 100 Luz

(3) A sementeira n.º 1 Maio – 1977. Disponível em: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2013/04/12/um-texto-anarquista-produzido-de-dentro-da-reforma-agraria-em-portugal-1976/

(4) Vento Suão (ao vivo no Vimieiro 2018)

https://www.youtube.com/watch?v=fcC0xC9KiSA&t=29s

(5) Receita tradicional alentejana de migas servidas com rodelas de laranja e carne frita.

(6) Inès Morales, La Reforma Agraria portuguesa (1974-1976): una visión de las mujeres participantes. Maio 2004. Tese mestrado. Universidad de Madrid e ISA/UTL.

(7) Cautela, Afonso (1975). O Alentejo na Reforma Agrária. Lisboa: Diabril Editora.


Com este ensaio, homenageamos Eduardo Sevilla Guzmán − sociólogo fundador do Instituto Social de Estudios Campesinos em Córdoba − pelo seu compromisso com as lutas pela terra e pela vida, num legado de pensamento crítico da Agroecologia, que nos inspira. Deixou-nos a 20 de setembro de 2023.


Written by

Jornal Mapa

Show Conversation (1)

Bookmark this article

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

One Person Reply to “Memórias para a construção política da Agroecologia (parte I)”