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Lendo: Zapatistas: profissionais da esperança

Zapatistas: profissionais da esperança

Zapatistas: profissionais da esperança


No dia 29 de dezembro de 2023, partimos de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas, em direção a leste onde, após 5 horas, segundo as instruções zapatistas, nos encontraríamos no Caracol VIII «Resistência e Rebelião: Um Novo Horizonte», local da grande celebração do 40º aniversário da fundação do EZLN e do 30º aniversário do levantamento armado de 1 de janeiro de 1994.

Éramos três mulheres a viajar num percurso que se cruza com aldeias paramilitares e rapidamente nos deparámos com situações preocupantes: as estradas eram sinuosas, o nevoeiro era espesso, não havia sinal de telemóvel que nos permitisse informar onde estávamos e o que tornava o ambiente mais tenso era o aparecimento de adultos e crianças com armas e postos de controlo de homens com machetes, bloqueando a estrada com troncos de árvores. Só quando vimos a primeira placa do Território Autónomo Zapatista guardada por milicianos encapuçados com uniformes do EZLN é que respirámos de alívio. A noite estava a cair e, não tivessem lá estado, ter-se-ia tornado bastante perigosa. À chegada, fomos escoltados por quatro zapatistas em motas até outro Caracol, onde passaríamos a noite.

Na manhã seguinte, de volta ao Caracol VIII, local do evento principal, o que vimos retratava claramente a utopia de um mundo em resistência e rebelião. À entrada, cinco ambulâncias do sistema de saúde autónomo aguardavam qualquer emergência e centenas de milicianos zapatistas encarregavam-se da segurança do evento. Os «tercios compas» (a equipa dos meios de comunicação livres zapatistas) documentavam a agitação da celebração e os caldeirões fumegantes de café, feijão e sopa de legumes, e as suas tortilhas artesanais davam as boas-vindas aos convidados. Destacava-se a figura de um chefe zapatista que coordenava maravilhosamente a cozinha como se fosse uma sinfonia. Éramos mais de 10.000 pessoas, entre estrangeiros, mexicanos e zapatistas.

No levantamento armado de 1 de janeiro de 1994, os zapatistas recuperaram grandes extensões de terra das fazendas onde os povos indígenas sofriam exploração, fome, violência e morte, terras que a Igreja e os crioulos lhes tinham tirado durante o período colonial. É quase implausível que o Caracol VIII, onde fomos recebidos para a grande celebração do aniversário, e onde no dia a dia se constrói um sistema zapatista de governo autónomo, fosse, há apenas 30 anos, antes da revolta, a quinta de um latifundiário. Milhares de hectares onde os indígenas locais viviam e morriam como escravos, onde as crianças trabalhavam do nascer ao pôr do sol e onde a vida dos que hoje são zapatistas não valia nada. Esta foi a grande conquista do zapatismo: trazer dignidade e vida onde antes havia humilhação e morte.

Agora as comunidades zapatistas não estão organizadas em núcleos de governo centralizado, agora a base é quem manda diretamente.

Uma nova estrutura de autonomia zapatista: os bens comuns

Para construir este complexo sistema de autogoverno, os zapatistas estão constantemente a fazer autocrítica, porque, como eles dizem, «não há um manual». A sua visão vai para além do futuro que todos nós já conhecemos. Como diria o Sup (agora Capitão Insurgente Marcos): «eles insistem em subverter até mesmo o tempo e erguer de novo, como se fosse uma bandeira, outro calendário». Nos mais recentes vinte comunicados publicados (enlacezapatista.ezln.org.mx), o EZLN declarou, após uma longa consulta a todos os povos zapatistas, que foi decidido alterar a estrutura de autogoverno que tinham até agora. Com efeito imediato, as Juntas de Buen Gobierno (JBG) e os Municípios Autónomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ) fecham e a pirâmide inverte-se. Agora, as Bases de Apoio Zapatistas estão organizadas em GAL (Governos Autónomos Locais) e estes passam a ser o núcleo de toda a autonomia. Ou seja, agora as comunidades zapatistas não estão organizadas em núcleos de governo centralizado (JBG), agora a base é quem manda diretamente. É relevante pensar que, se antes havia doze núcleos de governos autónomos (JBG), agora há milhares de GAL zapatistas num gigantesco exercício de participação política de base.

Outra das mudanças mais importantes é uma nova proposta que aponta para os bens comuns em toda a estrutura zapatista. Neste sentido, parte do território recuperado passa a ser de todos e de ninguém, ou seja, já não é apenas para uso exclusivo dos e das zapatistas, mas, por acordo, é terra de uso comum para quem quiser ir trabalhar nela. Também os seus sistemas de saúde, agroecologia e educação deixarão de estar apenas ao serviço das zapatistas e passarão a estar abertos a toda a comunidade que habita a zona, seja ela zapatista ou não.

Estas mudanças assinalam uma clara expansão do sistema de autonomia e foram uma parte central da celebração. Através de várias peças de teatro representadas por centenas de jovens e crianças zapatistas foram explicadas em maior profundidade. O que está a ser re-planeado hoje, semeando as sementes do comum, destina-se às crianças do futuro. Nas palavras do Subcomandante Moisés, «nós (os zapatistas) temos de lutar para que esta criança, que vai nascer daqui a 120 anos, seja livre e seja o que quiser ser». A semente da autonomia que é plantada hoje é plantada para colher a liberdade na sétima geração que se segue.

No seu longo percurso, o zapatismo manteve sempre a congruência entre o seu discurso, a sua ideologia e as suas ações. Mesmo quando o discurso tende para o realismo mágico, com histórias de homens e mulheres de milho, escaravelhos filósofos, baleias mapuches a nadar na selva e canoas a atravessar oceanos inteiros, as suas palavras, surpreendentemente, encontram sempre uma forma de se materializarem. Os zapatistas dizem que é preciso dar nome às coisas para que elas se tornem reais, e por isso dão nome a tudo o que vão construir. Nomeiam os seus territórios, as suas estruturas de autonomia, nomeiam os seus amigos e sobretudo os seus inimigos, nomeiam o passado e os seus antepassados, e nomeiam também o futuro que vão forjar. Nomear é um compromisso, é uma responsabilidade de que algo nasceu e implicará muito trabalho coletivo. Os Caracóis, os seus centros organizativos, por exemplo, têm cada um deles um nome dado pelo coração do povo. O Caracol Morelia chama-se «Turbilhão das nossas palavras», enquanto o Caracol Oventic se chama «Resistência e Rebelião para a Humanidade». Estes nomes, escolhidos em assembleias comunitárias, expressam em cada palavra a força da sua comunalidade e é através da sua construção do comum que as Zapatistas se afastam do paradigma hegemónico da governação sem coração, sem metáfora, sem esperança.

 


Texto de  Lupita Valdez Castilla
Fotografia [em destaque] de  Abril Rodríguez Cuevas

@caravana.zapatista @slumilcinko


Artigo publicado no JornalMapa, edição #40, Janeiro|Março 2024.


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