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Lendo: Fulgor animal

Fulgor animal

Fulgor animal


Escolhi viver muito com animais, não por estar desiludida dos homens, mas por crer nos animais; entre os homens e a terra, encontro neles o meu repouso, descubro que eles têm um código que nos será útil decifrar juntos.
Maria Gabriela Llansol

Os Fulgores de Outono são sobre a convivência: convivência animal, mineral e vegetal. Este texto envereda brevemente pelos trilhos da convivência animal, correndo o risco de mal os aflorar.

Para o Fulgor Animal convocámos dois filmes em que o javali e as javalis são protagonistas: Va, Toto!, de Pierre Creton, e Notes for Les Sanglières, de Elsa Brès. Brès e Creton são autores de gerações, géneros, e estéticas distintas, mas têm em comum uma abordagem situada, e de longo alcance, com as comunidades e os lugares onde escolheram habitar no mundo rural francês. Se os pomos em relação, através destes filmes, é porque nos interessa propor uma convivência interespecífica, através de narrativas guiadas pelo desejo e pela possibilidade de uma partilha entre humanos e animais, a contrapelo de narrativas de discórdia e de dominação.

Pierre Creton, cineasta, agricultor, pintor de domingo, vive em Vattetot-sur-mer, na Normandia, onde filma o seu território e o seu quotidiano. Va, Toto! é da ordem da fábula ou do conto de fadas, e entrelaça três histórias. A primeira, e a que nos parece formalmente mais interessante, com o ecrã dividido em dois (splitscreen), em forma de livro ilustrado, é a história de Tótó, o javali adoptado por Madeleine. Madeleine é vizinha de Pierre Creton, e vinte anos antes tinha-se recusado a ser filmada por ele. Com o aparecimento de Tótó, Madeleine não só aceita como convida Pierre a entrar na sua vida de câmara em mãos. Creton diz-nos que esta longa espera está de acordo com a sua ideia de território: “é preciso paciência, observação, deixar as coisas acontecerem ao seu ritmo e à sua maneira. Incluindo os animais, porque foi a chegada súbita do Tótó que deu início a tudo.” Tótó devém animal de companhia, e vai crescendo em coexistência com o cão, com o cavalo, com as numerosas galinhas, com os humanos ao redor. É possível esta convivência? É, bem o sabemos, mas não é duradoura: logo virá o caçador, virá a lei…

A segunda história é a de Vincent, companheiro de Pierre, que tem uma obsessão com macacos e viaja até à Índia ao seu encontro. A terceira é povoada por gatos, que entram e saem dos sonhos translúcidos de Joseph, outro vizinho de Pierre, trabalhador rural ligado a uma máquina respiratória. O sono e o sonho, as aparições e as desaparições ecoam por todo o filme, bem como a figura do duplo e o corpo.

O elo entre as três histórias é Pierre, com as suas relações de proximidade e vizinhança, mas também o animal, esse outro que nos é tão próximo, e que, com Llansol, intuímos que possui «um código que nos será útil decifrar juntos».

O que seria estabelecer uma aliança com javalis? Quem teria interesse nesta aliança? Talvez aqueles que são excluídos da propriedade privada.

Em Notes for Les Sanglières, a artista Elsa Brès ensaia uma aproximação às javalis, enquanto bando de guerrilheiras, e aos seus movimentos nocturnos pelo território das Cévennes. Encontra nelas a potência de quem não reconhece a propriedade privada. Como o título antecipa, estas notas, ou imagens em fragmentos, pressupõem um filme por vir: Les Sanglières. Agrada-nos que o processo de investigação artística que conduz a este filme (agora em pós-produção), se materialize em diversos vídeos, instalações, cartazes, objectos, que abraçam a sua incompletude e a multiplicam, e são fruto de uma escrita colectiva.

O que seria estabelecer uma aliança com javalis? Quem teria interesse nesta aliança? Talvez aqueles que são excluídos da propriedade privada. Como adoptar o ponto de vista do animal? O que significa adoptar o ponto de vista do javali como espécie? Para Elsa Brès: “o javali pode ser um aliado na reflexão sobre as lutas anti-capitalistas/anti-patriarcais contemporâneas, se nos colocarmos ao seu lado, no seu lugar. Esta ideia de aliança levanta então questões sobre o que liga o homem e o animal, especialmente a partir deste ambiente particular que é a floresta.” Coloca também questões de como filmar javalis, não como objecto de estudo mas como companheiros, a questão essencial de como fazer um filme «com, ou falar perto, e não sobre». Brès envereda por uma abordagem física e sensorial, recorrendo a ferramentas de mapeamento especulativo para antecipar os movimentos das javalis. Figura de recusa nómada e sem fronteiras.

Em Mértola, no Cineteatro Marques Duque, iniciámos o fulgor com Notes for Les Sanglières e continuámos com Va, Toto!. Em São Luís invertemos a ordem. Para o Fulgor de São Luís, no Palheiro da Cultivamos Cultura, convidámos caçadores e o grupo de cooperação com animais da comunidade de Tamera. Ouvimos que há demasiados javalis, que não têm predador, destroem tudo. Ouvimos que também adoptaram um javali que perdeu a mãe, e que depois ao crescer foi à sua vida. Ouvimos que seguem as suas pistas e apanham os seus ossos pela floresta. Ouvimos que caminham lado a lado, no escuro, sem se verem, só ruído e co-presença. Ouvimos que se falarmos com os javalis eles poupam as hortas e até sulcam a terra, preparando-a para a sementeira. Não havia fogueira, mas em torno destes filmes, houve vagar para escutar as histórias de convivência com javalis, que quase todas tínhamos para partilhar.

Num território em que os cães fazem parte das aldeias, e os seus nomes são por todos conhecidos, cabras, ovelhas, porcos e vacas são domesticadas, em que se chega à cooperativa de burro, e se ensaiam processos de cura com cavalos e sapos, selvagens são os lacraus, as ginetas, os saca-rabos, as raposas, os javalis…Os seres que não se deixam domesticar, nem governar. (O almejado lince ainda não vimos.)

Podem animais e humanos coexistir pacificamente, perguntamos, para além das relações de poder, dominação, submissão e domesticação?

Enquanto escrevemos, chegam-nos os uivos do animal companheiro que estamos a curar, mordido por javalis lá para os lados da ribeira do Torgal. Penso em Val Plumwood e no seu encontro com o crocodilo no parque nacional de Kakadu, penso em Nastassja Martin e na sua luta com o urso nas montanhas da Camecháteca, penso em todas as fronteiras implodidas e por implodir entre os mundos, e penso em Lin May Saee, que este ano nos deixou, e que dedicou toda a sua obra artística à libertação animal.

Repetimos que a oferenda destes filmes é a convivência, a potência de uma vida partilhada com os animais. Volvidos dois dias destes fulgores houve em São Luís uma montaria com 50 caçadores. Nenhum javali foi morto.

 


Texto de  Sílvia das Fadas
Legenda da fotografia [em destaque]: cinemafulgor.org, poster do evento.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #39, Outubro|Dezembro 2023.


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