Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Acerca da guerra como investimento
Há algo de novo a assinalar. Algumas pequenas e simpáticas livrarias estão a abrir aqui e ali na grande metrópole de Nova Iorque. Acabámos de sair da Lofty Pigeon Books. Três livros na montra tinham despertado a nossa curiosidade: O Direito à Preguiça, um texto de Walter Benjamin e uma história das grandes greves operárias nos Estados Unidos. A poucos passos dali, num bairro a sul do Prospect Park, em Brooklyn, deparamo-nos com uma rua onde reina a animação. O tempo está bom e há uma grande multidão. Tinha passado uma semana desde o ataque do braço armado do Hamas em Israel. De repente, ficamos atónitos. À nossa frente, está uma figura de cartão de um soldado do exército israelita em tamanho real, com todo o equipamento mortífero. Duas pessoas, sorridentes, interpelam os transeuntes. No passeio do outro lado, um grupo de jovens distribui as publicações do Democratic Socialists of America (DSA) e, mesmo em frente, uma banca de apoio aos migrantes da América Central e do Sul angaria assinaturas para uma petição em prol da destruição do muro da vergonha entre o México e os Estados Unidos. Uma banda colombiana toca músicas animadas de Cumbia, que abafam a retórica dos propagandistas do exército de Israel, e atrai uma pequena multidão de dançarinos. Vinte metros adiante, um stand de judeus que se opõem à guerra distribui panfletos. O primeiro stand de guerra é evitado pelos passeantes, na sua maioria famílias com crianças e muitas mulheres muçulmanas com lenços na cabeça. O bairro é um meltingpot, com judeus hassídicos, latino-americanos, paquistaneses e afegãos. A estação de metro mais próxima fica no meio de um bairro conhecido por Little Bangladesh; uma zona de mansões luxuosas completa a paisagem. Depois do espanto, ficámos aborrecidos. Pensando bem, a indiferença óbvia da maioria dos transeuntes pareceu-nos a atitude mais inteligente e digna a adoptar. Transformar o soldado de papelão num soldado invisível. Mesmo sabendo que a barbárie se desencadeia e que a realidade não pode ser ignorada.
O facto de os grupos pacifistas judeus serem parte activa na oposição à guerra clarifica o debate e enfraquece os excessos nacionalistas e racistas.
Nos Estados Unidos, dois factos marcaram as primeiras reacções à guerra e aos bombardeamentos maciços de Gaza. O primeiro foi a presença, pelo menos na Costa Leste e na Califórnia, de uma forte comunidade judaica que se opunha à guerra. As primeiras acções contra a guerra foram conduzidas por esta corrente: a ocupação de uma parte do Congresso em Washington, a ocupação da Estátua da Liberdade em Nova Iorque e, sobretudo, o bloqueio por milhares de pessoas da segunda maior estação de Manhattan, a Grand Central, que terminou com centenas de detenções. Posteriormente, outras acções directas deste tipo continuaram a ser levadas a cabo nas grandes cidades, mas a verdade é que grupos como o Jewish Voices for Peace e o ifNotNow são minoritários numa comunidade judaica que abraçou o nacionalismo sionista e é apoiada por recursos económicos substanciais. Ironicamente, esta comunidade está agora a forjar uma aliança com os seus antigos inimigos, os outros devotos da mensagem bíblica, as correntes evangélicas, os pilares de Trump e do partido republicano. O facto de os grupos pacifistas judeus serem parte activa na oposição à guerra clarifica o debate e enfraquece os excessos nacionalistas e racistas. O movimento sionista tem um poder enorme na comunidade judaica e não faz concessões. Há anos que agências especializadas perseguem os judeus dos meios académicos, intelectuais, científicos, artísticos e sindicais que se opõem à política do Estado de Israel, intimidando-os, denunciando-os publicamente e pressionando para que sejam despedidos dos seus empregos, ou mesmo para que ninguém lhes dê trabalho. Os exemplos são muitos, porque os opositores judeus do sionismo também o são. A filha de uma amiga, activa no boicote aos produtos israelitas, viu ser-lhe recusado um lugar de professora para o qual tinha qualificações. Um funcionário do principal sindicato de professores de Nova Iorque, que tem fortes ligações ao Partido Democrata, foi despedido depois de ter assinado uma declaração apelando a um cessar-fogo. Isto apesar dos veementes protestos da tendência de esquerda do sindicato a que pertence a nossa jovem amiga Mary. Um historiador meu amigo, feliz reformado, especialista da antiga organização revolucionária internacionalista judaica Bund, do início do século XX – que foi combatida pela corrente sionist, (ver Henri Minzczeies, Histoire générale du Bund, l’échappée, 2022), viu-se na lista negra de uma dessas temíveis organizações. Nas suas palavras, «se criticas, discordas ou te opões a Israel, és classificado de “anti-semita”.» E acrescenta: «Para eles, um judeu que critique Israel é um “anti-semita”!» Nas universidades, as pessoas que afirmam pertencer à corrente judaica antiguerra são ostracizadas e, aqui e ali, os jornalistas são despedidos e o seu trabalho censurado. Os patrões das empresas financeiras de Wall Street pedem à Universidade de Harvard que lhes sejam remetidos os nomes dos estudantes que assinaram um texto de crítica a Israel (New York Times, 19 de Outubro de 2023). Comentário do nosso amigo historiador: «Que ironia extraordinária, judeus a perseguirem judeus porque protestam contra o Estado judaico!»
Um segundo aspecto esclarece a situação. Do outro lado do Atlântico, esta guerra é claramente vista como uma nova guerra americana. As acções e declarações do governo norte-americano sobre a questão não deixam margem para dúvidas. Além disso, a administração Biden tem feito questão, desde o início, de ligar a guerra na Palestina à guerra na Ucrânia, «ameaças diferentes» que, na sua opinião, estão a convergir para enfraquecer o poder americano. Esta retórica é também utilizada para uso interno: procura enfraquecer os opositores republicanos, que se opõem cada vez mais à ajuda ao governo ucraniano, que ultrapassou os 113 mil milhões de dólares (mais de metade dos quais em ajuda militar directa). Estas guerras são essenciais para «a segurança da América», porque «é a América que preserva a segurança global». (Biden, 19 de Outubro de 2023).
A um nível mais concreto e menos ideológico, a administração norte-americana associa directamente as actuais guerras aos interesses capitalistas. A intervenção dos EUA é, nas palavras de Biden, «um investimento inteligente que pagará dividendos para a segurança das gerações futuras»; mais especificamente, as armas fornecidas à Ucrânia e a Israel são «um bom investimento para os Estados Unidos, porque uma boa parte do dinheiro voltará para as empresas americanas responsáveis pela substituição do stock de armas». E Biden acrescenta: «Hoje, os patrióticos trabalhadores americanos estão a construir o arsenal da democracia e a servir a causa da liberdade». A guerra como um investimento capitalista, tinha de ser dito, agora estão a dizê-lo!
Então, não é surpreendente que, durante a sua visita a Israel após o ataque do Hamas, Biden e a sua corte tenham assistido ao primeiro gabinete de guerra e dito à imprensa que os membros da máquina militar americana permaneceriam no gabinete para «evitar que os israelitas se precipitassem numa invasão desproporcionada» (citado no NYT de 20 de Outubro de 2023). E também não podemos ficar admirados por saber que as negociações sobre a troca de prisioneiros estão a ser conduzidas entre os serviços secretos da região sob a supervisão da CIA, The Company. É a América que supervisiona e governa o massacre. A presença nas costas de Gaza e de Israel de uma armada de porta-aviões e de submarinos nucleares confirma-o.
Fotografia [em destaque] de Jewish Voice For Peace
Artigo publicado no JornalMapa, edição #40, Janeiro|Março 2024.
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