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Lendo: A internet está capturada

A internet está capturada

A internet está capturada


A rede Indymedia nasceu no final do século XX, nas ruas de Seattle, e rapidamente se alastrou a todos os continentes. Pretendia praticar um jornalismo não profissional, feito pelas pessoas e pelos movimentos em luta. Em Portugal, surgiu já no início do séc. XXI, quando a folha informativa libertária Azine se uniu à rede global e se transformou em pt.indymedia.org. Entre desaparecimentos e reaparecimentos, foi durando até sucumbir ao canto de sereia das redes sociais, à obsolescência dos seus softwares, à incapacidade técnica e à ausência de apoio. Em 2018, parecia uma morte sem remissão. Mas o Indymedia parece ter mais vidas do que um gato, e a verdade é que o Centro de Média Independente português deu lugar a um novo projecto, que é tanto a sua continuação como a assunção da quebra da rede Indymedia internacional, ao alojar-se agora em servidor próprio: indymedia.pt. A decisão foi mais uma consequência do fim dessa rede do que uma opção consciente. Com problemas no servidor antigo e com a incapacidade de contactar a equipa técnica do Indymedia global, o Centro de Média Independente português decidiu seguir caminho próprio.

Em primeiro lugar, importa perguntar «porquê agora»? Ou seja, há características da realidade que fazem com que uma ferramenta como o Indymedia seja especialmente importante numa altura destas?

Torna-se cada vez mais evidente que as notícias são controladas por editoras com base em práticas economicistas. Com a centralização da produção de informação para um público global, por exemplo, através de agências como a Lusa ou a Reuters, cada vez se fala menos das questões locais e dos problemas que as comunidades enfrentam. Isto é uma situação paradoxal, porque, nas últimas décadas, desenvolveram-se precisamente as ferramentas digitais de produção de conteúdo que levaram a que todos os dias as pessoas do mundo inteiro publicassem quantidades imensas de informação na internet. Mas onde é que está essa informação? Muitas vezes, está escondida em perfis dentro de redes privadas, como o Facebook, que não são acessíveis a ninguém que não tenha uma «conta».

Nesse sentido, e com o surgimento destas ferramentas digitais, podemos apropriar-nos delas coletivamente para informar e divulgar informação regional e internacional. O projeto Indymedia, iniciado em 1999, propôs-se criar espaços de trabalho (físicos e digitais) comuns para jornalistas independentes e, além disso, um site acessível a todes, para que qualquer pessoa possa partilhar o que se passa no seu bairro, de forma a amplificar essa voz e quebrar a barreira informativa imposta pelos média corporativos, a partir duma perspetiva de autonomia popular.

Será possível voltarmos a criar fóruns digitais? Ou, com a aparição dos bots e do spam, isso tornou-se inviável?

Porquê uma opção de publicação livre, passível de ser utilizada fora dos objectivos de quem a cria, em vez de, por exemplo, um blog, onde todos os conteúdos fossem facilmente controláveis? Como garantem que,por exemplo, a extrema-direitaos nazis não aproveita para publicar também? E de que forma se previnem as fakes news?

Isto toca numa questão central da Indymedia, que nunca foi consensual, e que depende de imensos fatores sociais e de uma moderação ativa de um coletivo. Mais do que de publicação aberta, é uma questão de discussão aberta. É que os sites Indymedia parecem ter nascido muito de uma discussão digital que ia acontecendo. Pelo menos, visitando a Azine vemos isso; cada post vinha associado a dezenas de comentários, onde se debatiam os assuntos e se discutia sobre o projeto em si. Agora, muita desta atividade digital de debate e discussão já não está em blogues ou sites, mas nas redes sociais… os famosos comentários do Facebook.

Será possível voltarmos a criar fóruns digitais? Ou, com a aparição dos bots e do spam, isso tornou-se inviável? Até porque, aliás, as pessoas já estão todas no Facebook, cada vez mais isoladas, atingidas, espiadas, controladas, atomizadas… Agora, os fóruns são secções de comentários a posts ou grupos de Facebook divididos por tema. Os grupos ambientais, os dos animais, os dos fascistas, os dos caçadores, têm todos imensa gente e imensos comentários! Mas estão todos a usar o Facebook… É uma situação mesmo muito diferente de há 10 ou 15 anos… A internet está completamente diferente, capturada.

O site indymedia.org está inacessível há dois anos e, dos 100 ou 150 sites que havia, hoje sobram uns dez. Então, não há muito para onde olhar no que toca a questões por resolver ou soluções por experimentar… se muito do projeto foi abandonado… Mas talvez este momento, aqui, já seja mais interessante do que a situação anterior, em que nada estava de todo a ser feito ou pensado… Mas não há soluções óbvias à vista, seja do ponto de vista de uma orientação para ação futura, seja a nível de recursos técnicos.

Existem, sim, alguns repositórios atualizados, como o do Indybay, que poderíamos estar a implementar em vez do WordPress, que permitiria fazer essa gestão das publicações, de forma, supõe-se, mais fácil. Mas quem tem capacidade técnica de o implementar ou de traduzir sequer? Ficávamos com o site em inglês e … O código dos sites anteriores da indymedia.pt não parece estar acessível e, mesmo que estivesse, estaria desatualizado há vários anos… Porque isso da publicação aberta para a Indymedia foi uma ferramenta digital nativa aos sites Indy, que foi sendo desenvolvida em código aberto, mas depois é complicado implementar sem um apoio técnico permanente e desenvolvimento comunitário ativo.

Além disso, é preciso gente a fazer moderação. Mas, se nem temos assim tanta gente a produzir conteúdo no próprio site… Na página de publicação aberta que temos vindo a testar, em dois meses, terá havido entre cinco e dez publicações que foram feitas através formulário que temos para publicação livre. O resto foi feito por poucas pessoas, diretamente no site, com a ferramenta de edição nativa do WordPress. A questão é que não dá para permitir aos visitantes anónimos utilizarem essa ferramenta nativa sem fazerem login no site, o que já traria problemas acrescidos de segurança e moderação…

A Indymedia Argentina criou um sistema de login simplificado para isto, que já tentámos testar, mas sem muito sucesso, porque depois vêm outros problemas técnicos associados. Não teríamos de reinventar a roda, se conseguíssemos, por exemplo, sair do WordPress e implementar uma ferramenta nativa à Indymedia, mas era preciso alguém conseguir fazer isso! E, depois, resolver os problemas que daí adviessem… Ou seja, seria necessário que a malta do código livre realmente estar a desenvolver isso ativamente a nível internacional. E está, mas muito menos do que antes e com muitas mais dificuldades, até porque o interesse neste projeto desapareceu, encontraram-se outras soluções, outros projetos. E agora? De qualquer forma, isto não é assim tão interessante…

O outro lado dos Centros de Média Independente passa por abrir espaços de colaboração para jornalistas independentes e, coletivamente, fazer sair a informação. Essa era uma questão social que a Indymedia se propunha solucionar, porque assim as pessoas podiam fazer um trabalho «mediático» para falar a partir de, com e para as diferentes comunidades nas quais participavam, criando uma alternativa forte e concreta aos média tradicionais. Talvez seja melhor começar por aí, tentar que as pessoas que estão a fazer jornalismo cidadão e independente possam abrir este espaço colaborativamente, no sentido de realmente se conhecerem e trabalharem em conjunto, tanto para dialogar como para atuar nos seus âmbitos e espaços. Nesse sentido, talvez seja mais interessante, primeiro, encontrar esses lugares, esses espaços de colaboração.

A partir daí, tomar decisões: como abrir o espaço comum a mais e mais gente, como fazer a moderação, como criar ferramentas de produção de informação jornalística num modelo «DIY-DIT-DIWO» 1, como gerir o conteúdo que vem parar ao site depois… como gerar formas colaborativas e coletivas que sejam saudáveis e seguras para todes… Esse mundo em que pensamos as coisas a fundo e as medimos coletivamente está aí, o MAPA existe por isso também! Mas, lá está, ou há uma comunidade ativa em torno deste projeto, ou isso não vai surgir.

É inevitável ter um espaço de publicação livre, mas é também importante que consigamos encontrar um modelo comunitário e coletivo que torne isso viável, porque depois as contribuições não caem do céu – elas são feitas pelas pessoas que acabam por estar em torno do projeto e que vão querer lançar as suas reportagens de rua, etc… Então, essa ferramenta de publicação tem de ser vista nesse sentido, de ser útil para jornalistas na rua, de ser útil para quem está a tentar quebrar a barreira da informação… E tem de ser debatida neste contexto, não tanto no de permitir uma total abertura a qualquer pessoa abstrata que queira publicar só porque sim. Para isso, podem abrir uma conta no Facebook ou no Twitter. Temos mesmo de encontrar outra forma de enquadrar esta questão! Para quê criar uma ferramenta digital que vá atrair nazis e dar-lhes sequer espaço para falar? Nisso temos mesmo de ir procurar inspiração aos medios libres em todo o mundo, porque é neste contexto que vivemos hoje, e tentar adaptar a ideia do centro de média independente ao tempo presente, se possível.

Então aí, sim, talvez já não faça tanto sentido falar no contexto histórico da Indymedia, no sentido de um projeto fixo ou fechado em si mesmo, mas pensarmos num projeto que pegue naquilo que era interessante do projeto antigo e que possa inspirar-se nas formas atuais de trabalho dos chamados medios libres, que é algo difícil até de descrever, porque não é rígido, pelo contrário. Mas, para isso, temos também de trazer mais gente a bordo , e gente que traga esse pensamento sobre o que é que são os meios alternativos, que sentido fazem, como se fazem, em que contexto, etc.

A ideia tem sido de estabelecer uma tecnologia para que as pessoas que colaboram no Centro tenham acesso a uma ferramenta mais completa de publicação, porque a vão usar mais frequentemente. Ainda estamos à procura dessas ferramentas e de as potenciar com mais gente e que possa também para tentar criar uma espécie de «modelo» ou «kits» que possam ser adotados por quem venha a ter interesse em experimentá-los. A noção de código aberto pode ser interessante aqui, neste sentido de partilharmos e desenvolvermos as ferramentas em conjunto. Além disso, a ideia antiga dos «indy-pontos» talvez pudesse vir a ser abordada de novo, abrindo espaços físicos de onde as pessoas possam trabalhar diretamente no site, usando diversas ferramentas digitais desenvolvidas para esse trabalho jornalístico. Depois, talvez fosse interessante tentar criar uma coluna de publicação livre no site, separando-a de certa forma das publicações «destacadas», à semelhança do que acontecia nos modelos anteriores de Indymedia. Mas são decisões que têm de ser vistas coletivamente, no sentido de desenvolvermos, de facto, ferramentas que possam ser mais úteis e práticas para mais gente. Se houver gente interessada em pensar nisso connosco… de momento estamos numa situação parecida com a do gato de Schrödinger… está, ao mesmo tempo, vivo e morto… até que abras a caixa… Precisamos de mais gente a usar o site para perceber o que necessitamos coletivamente, o que as pessoas estão à procura, o que faz sentido para elas, de que ferramentas precisam e como podemos encontrá-las, fabricá-las, ou adotá-las…Talvez tenhamos de refazer coisas, adotar outras tecnologias entretanto, talvez este site em WordPress não seja adequado para isso (da publicação completamente aberta) … Será talvez necessário ver o que se passa com outros centros (Argentina, Grécia, Alemanha, Indybay) que continuam em funcionamento e tentar perceber como fazem, porque não é assim tão simples, mesmo do ponto de vista tecnológico… São coisas em que estas pessoas trabalharam durante muitos anos, mas não está na ponta dos dedos, é preciso gente que saiba também como implementar estas soluções na prática… Ou seja, sim, é só ter um formulário de publicação, mas depois vem tudo desformatado, ou fica com um aspeto estranho, ou fica vulnerável a spam, ou tem pouca gente a usar e depois torna-se desnecessário… mas tem de ser visto coletivamente… se é que alguma vez esse coletivo vai existir, esperemos que sim…

É inevitável ter um espaço de publicação livre, mas é também importante que consigamos encontrar um modelo comunitário e coletivo que torne isso viável.

No meio de tanta informação, nomeadamente no mundo electrónico, porque é que acham que o Indymedia não vai ser apenas mais uma fonte do «excesso de informação» que nos cega tanto quanto a sua ausência?

Mais do que criar mais informação, a Indymedia pode ser uma plataforma onde diferentes coletivos de média independente e jornalistas individuais partilhem o seu trabalho, facilitando assim a navegação pelo excesso de informação, sabendo que aqui se podem encontrar informações do que se passa a nível das coletividades, manifestações e outras ações contra o poder instituído. De resto, não seria um projeto viral, pelo que dificilmente conseguiríamos sequer chegar à massa da população para lhes «encher» a cabeça. Talvez tenhamos conseguido pelo menos que algumas pessoas dentro dos «círculos ativistas» já tenham ouvido falar do projeto, agora fica também nas mãos dessas pessoas decidir se lhes interessa ou não o que temos vindo a fazer. E, se, sim, precisamos de vocês!

E o que se pretende com a rede estabelecida com outros projectos já existentes (Rádio Paralelo, Pt Revolution TV, Coletivos.org)?

A Rádio Paralelo, a Pt Revolution TV e o Coletivos.org são apenas os primeiros dos muitos projetos de média independentes que esperamos que se juntem a nós. Estes três coletivos em concreto permitem, com o seu trabalho de nicho, oferecer mais diversidade, porque são de naturezas diferentes mas complementares.

Nestes meses iniciais que conclusões positivas já tiraram? E negativas?

É muito cedo, para estarmos a falar em nome do projeto, o que talvez sirva para explicitar algumas coisas e trazer mais gente a bordo…

Nesta altura, já contávamos ter uma participação mais ativa de elementos novos, mas talvez ainda não tenhamos encontrado a forma certa para criarmos, de facto, um projeto descentralizado e participado. Mas também é importante ver que isto não é um «jornal», no sentido em que as pessoas nunca poderão dedicar-se a tempo inteiro a isto nem dizer que trabalham aqui. Vamos colaborando à medida que podemos…

Temos vindo a apoiar e a manter o eventos.coletivos.org atualizado, um calendário colaborativo que serve de ponto de partida para as reportagens nos territórios e ajuda a perceber o que se está a passar em cada momento.

Notámos também um crescimento das redes de contactos que temos e dos coletivos que interagem com o projeto desde o surgimento do mesmo, e esperamos conseguir que mais pessoas se interessem pelos média independentes, além de chamar mais gente para formar um coletivo empenhado e que possa atuar nos vários territórios de forma mais profunda.

Conclusões negativas: temos alguma dificuldade em envolver mais pessoas no projeto, de forma que se entenda que faz sentido para todes, na medida de perceber o que cada pessoa pode fazer, porque, na verdade, é uma coisa que estamos a começar agora, não há um plano já feito…

Depois há questões que ainda estão por resolver, como a tal coisa da publicação aberta…

Contactem-nos para continuar o debate…

 


Versão completa da entrevista publicada no Jornal Mapa, edição #40, Janeiro/Março 2024.

Notas:

  1. DIY: Do it yourself; DIT: Do it Together; DIWO (Do it with others)

Written by

Teófilo Fagundes

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