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Lendo: De Gaza a Odemira

De Gaza a Odemira

De Gaza a Odemira


Com o 7 de outubro e o genocídio em Gaza, o cessar-fogo urge para, em oposição à guerra, enfraquecer os excessos na­cionalistas e racistas. Em trauma e sob vigilância sionista, as famílias e comunidades israelitas, que fizeram de sua casa o sudoeste alentejano, temem juntar a sua voz na defesa pela vida e com a Palestina. A realidade não pode ser ignorada, e perante a barbárie, o silêncio pode ser ensurdecedor.

Odemira, primeiro sábado de 2024. Três meses depois do horror da incursão ter­rorista do Hamas de 7 de outubro em Israel e con­tabilizada a perda de cerca de 30.000 vidas palestinianas, entre mortos e sepultados nos escom­bros, depois da resposta do exér­cito israelita em Gaza. Dirijo-me a AlmaOhana, uma pequena comunidade de israelitas e pes­soas de outras nacionalidades, criada em 2021: uma mais das que veio repovoar o sudoeste alente­jano com o sonho de um estilo de vida regenerativo. A fogueira na rua do monte alentejano já aquece do frio invernal quem vai chegando para um «Círculo de Partilha para o Luto, Conforto e Compreensão em relação a Israel e à Palestina».

Joey, Eva, Noy e Matthias, os anfitriões, juntam pela ter­ceira vez quem procura enten­der «como é que esta guerra está viva na comunidade local e internacional aqui no Alentejo, com o objetivo de fomentar uma nova cultura de apoio e união em pequenas comunidades que enfrentam conflitos globais». Já entre as paredes de taipa, aque­cidas pelas salamandras, a dança fluirá inicialmente por entre os 26 participantes aí reunidos. Confidencialmente, ouço quem toma a voz para expor o que vive e sente. Sobretudo, recolho em mim os medos, angústias, deses­pero e vergonha nas vozes israe­litas. Mais ainda porque, pela pri­meira vez, há duas palestinianas no círculo, cujas vozes, embar­gadas ou iradas, nos atingem em profundidade e sem concessões. A intensidade da dor e da perda, e a incompreensão absoluta da desumanidade em Israel e Gaza, une o círculo numa base comum, resumida ao mais básico: a defesa da vida e da paz.

Tenho-me cruzado com gente que tem moldado este território, propondo modos de vida alterna­tivos, demonstrando a viabilidade de outras relações com a natureza, e garantindo um futuro saudável aos novos alentejanos, nascidos das mais de oitenta nacionali­dades registadas só no concelho de Odemira. Na última década, nos mercados entre a Aldeia das Amoreiras ou São Luís, o hebreu quase subsituiu o ecoar das vozes em inglês. As famílias e as comu­nidades israelitas chegaram em força aos vales e lugares recôn­ditos que pautam a cartografia hippie do território.

Construir esta nova comunali­dade, tão empolgada na sua ves­timenta eco-alternativa, solicita aos israelitas, mais do que nunca, uma palavra sobre o drama humano em curso. Porém, o silên­cio imperou desde o 7 de outubro e tornou-se um peso demasiado incómodo face à inominável atro­cidade que fez do horror terro­rista um pretexto para aniquilar o povo palestiniano a uma escala sem precedentes nestes 75 anos de ocupação da Palestina. Nesse silêncio, compreensível na sua dor e trauma, o ódio abria cami­nho, forçando as pessoas a esco­lher lados, como se só pudesse haver dois lados. Sem se ouvir um afirmativo apelo ao cessar­-fogo. E foi deste incómodo que parti para escutar palestinianas, israelitas e quem mais se propôs viver no Alentejo o sonho de outro mundo, fugindo, outra palavra não haverá, da barbárie humana.

Silêncio quando as crianças dormem, não quando são mortas.

Eva, com quem falamos antes de nos encontrarmos na AlmaOhana, empenhou-se em criar um espaço de escuta e de fala sobre este tópico. «Como alemã, criticar as políticas de Israel coloca-te muito rapidamente na gaveta do anti-semitismo. As pessoas estão muito assustadas em falar». Cres­ceu com esse desafio e a sua pri­meira viagem fora da europa «foi a Israel, para tentar tirar um sen­tido disso». Aqui, no Alentejo, «vemo-nos uns aos outros na nossa dor, em círculos de partilha e nos mercados», mas «não falar­mos sobre isto não é natural. De que comunidade se trata afinal? Será que quando chegamos ao ponto de a questionar face a con­flitos globais ela simplesmente colapsa, porque apenas se reúne num nível light?». Daí o desafio de abordar em comunidade «tópicos pesados, onde podemos come­çar a construir uma nova cultura de apoio».

Na busca de um «consenso básico sobre o que se está a pas­sar na nossa comunidade», o pri­meiro círculo de partilha teve lugar três semanas após o início da guerra. «Foi muito agitado, vivo e doloroso». O segundo decorreu mais calmamente, mas em ambos pesava a falta de duas palesti­nianas convidadas, a residir na zona. Não se sentiam à vontade, desde logo, pela diferença numé­rica com israelitas. Joey, nascido em Israel, contou-nos, por isso, que o grupo entendeu tomar uma posição contra o que se está a passar em Gaza, assim como pelo resgate dos reféns: «perce­cionar a dor em ambos os lados». «Por isso gostaria que os israe­litas ouvissem as vozes pales­tinianas, e claro que não estou a falar de todos os israelitas… Há muitos que não querem ouvir o outro lado».

Estes encontros intimistas não escondem a intenção de se projetar na comunidade local, fortalecendo as iniciativas que, pese tardiamente, saíram à rua como a concentração pelo cessar-fogo que, uma semana antes, na vila de Odemira, a 29 de dezembro, reuniu dezenas de portugueses, israelitas, palestinianos e outras nacionalidades no largo frente à câmara municipal.

Trauma. Culpa. Solidariedade.

Essa concentração foi uma demonstração pública há muito aguardada pelas duas palestinianas residentes em Odemira com quem falámos. Aida, uma conhecida ativista pela paz da comunidade Tamera, coletivo que desde a primeira hora veio a público exigindo o cessar-fogo; e Haneen, uma jovem mãe de Gaza, com dois filhos, a residir na zona há cerca de 5 anos.

Para Haneen «têm sido tempos muitos desafiadores, mas procuro estar rodeada de pessoas com quem posso falar, que compreendam a situação e mostrem solidariedade. Mas não posso mentir, houve muitos momentos em que me desliguei, pois vivi este tipo de atrocidades. Sobrevivi a quatro grandes agressões em Gaza. Estive em várias situações perto da morte, nem me lembro de todas…»

Não lhe é fácil o exercício de equiparação, na escala dos horrores, entre o 7 de outubro e o genocídio que se passa em Gaza, razão pela qual não consegue lidar com o silêncio à sua volta. «Há pessoas que eu tenho como amigas na comunidade israelita e que não tomaram qualquer posição. A um deles perguntei se podia, ao meu lado, erguer um cartaz de cessar-fogo e respondeu-me que não o podia fazer. Como manténs a solidariedade se não és capaz de um tal ato? Desculpem, mas isto faz-me sentir muitas coisas ao mesmo tempo. Sinto-me desapontada». Esse amigo entende ser importante «querer levar as histórias de Gaza, a minha história pessoal, aos corações da sociedade israelita. E sim, eu quero que isso aconteça, mas ao mesmo tempo vejo que ele está com o medo de ser culpabilizado, de ser atacado». A incompreensão estende-se à comunidade, em particular, «que fala em desenvolver uma consciência, novos valores culturais, uma nova humanidade e trazendo novos modos de vida. E ver que isso não se relaciona com outros lugares no mundo».

Haneen compreende que «ambos os povos estão a experienciar um trauma. O receio da perda das suas vidas e dos seus entes queridos. A sobrevivência. É algo que vem de um lugar de medo e de proteção, e que o governo israelita ativou nas pessoas para ter permissão de fazer o que quiserem. Mas, ao mesmo tempo, os palestinianos vivem sob ocupação há 75 anos e não podem continuar a viver dessa forma para sempre.

Não se trata de escolher lados, mas de tomar consciência da realidade tal como ela é. Enquanto estivermos a negar a realidade nunca estaremos num novo caminho para prosseguir. Quando peço que tomem posição, trata-se de reconhecer uma realidade na qual eu sou afetada pela situação mais do que o outro. Há um desequilíbrio, e é isso que tento explicar».

Aida nota que o perfil da maioria dos israelitas de que aqui falamos é «gente alternativa, com mentalidade de esquerda e um coração aberto». «A maioria deles vive num lugar de culpa pelo que se passa na Palestina» e o acontecimento traumático de 7 de outubro, deu-lhes «a possibilidade de se declararem igualmente vítimas. Isso fornece uma desculpa para se manterem em silêncio, o que é muito perigoso». É algo muito sensível, no qual será sempre «mais fácil ficar nessa resposta traumática, sentido a dor pelo teu próprio povo, sem tomares a responsabilidade de apelar claramente ao cessar-fogo e ao fim do genocídio dos palestinianos».

«Esse trauma criado, de raiva e ódio, é escolher um lado. Estão a criar uma nova geração de Hamas e de soldados israelitas criminosos».

A essa resposta traumática somam-se as circunstâncias particulares da condição israelita, bem distinta da palestiniana, o que, para Aida, pode igualmente explicar o silêncio. «Os israelitas que aqui estão, a sua maioria, estão financeiramente bem, com familiares, amigos, projetos e empresas em Israel. Mas Israel enlouqueceu sobre qualquer um que fale contra a guerra em Gaza». «Os israelitas serão culpabilizados se se posicionarem contra a guerra. Por isso, se o teu coração não é verdadeiramente revolucionário e se não está pronto para pagar o preço, e se tens uma bolha para estares no Alentejo, silencioso e bonito, então apenas cultivarás os teus vegetais e não falarás disso, do que se passa em Gaza. E isso é um silêncio de privilégio».

Para Aida, o facto é que, «apesar da minha dor, eu tenho de me esforçar em pedir cooperação, pois eu sou quem é mais ferido. Por isso dirijo-me aos internacionais e locais que podem fazer algo, abrindo espaços onde palestinianos e israelitas possam falar. Eu acredito que as pessoas judaicas, com boas intenções e com amor, serão os melhores agentes. A sua voz é mais forte que a minha, porque para o povo deles eu ainda sou o inimigo. Mas se um judeu israelita falar com eles com a mesma energia, de amor e justiça, dirá que é tempo de reconciliação. Um judeu a falar disso tem mais valor, pelo que apelemos aos israelitas no Alentejo para criarmos algo fora da zona de conforto».

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Fotografia de António Falcão

Quebra de Confiança

Alon e Pnina são uma família israelita que, no seu terreno, para os lados dos Lameiros, abre portas à comunidade nos muito concorridos mercados da Azula. O mercadinho de artesanato e afins, comida, música e dança tornou os domingos da Azula um ponto de encontro de referência. Juntámo-nos em dezembro passado no café Nativa, espaço da Regenerativa Cooperativa Integral em São Luís, numa conversa que se estendeu tarde adentro. Era a primeira vez, depois do 7 de outubro, que punham cá para fora as suas impressões e rapidamente o encontro resultou num improvisado círculo de partilha juntando-se à mesa quem mais por ali ansiava ouvir e falar sobre o assunto.

O trauma do massacre do Hamas e a resposta genocida do exército israelita abalaram-nos visivelmente. Nas gavetas em sua casa ainda estão as t-shirts com Free Palestine estampado, que envergaram tal como muitos outros israelitas de esquerda que apoiaram os palestinianos anos a fio. Saíram de Israel após o conflito Israel-Gaza, de 2014, à data a maior operação militar israelita desde a Guerra de Gaza de 2008 (que contabilizou a morte de 2000 palestinos e 60 militares israelitas, números que ilustram bem a escalada da atual guerra). Haviam chegado a um ponto insuportável. «As nossas duas filhas, então com menos de 2 anos de idade, já aprendiam no jardim infantil em como se baixar e proteger a cabeça. Eu própria olhando para um muçulmano e receando, porque cresci assim, a ver bombas a explodir», conta Pnina. «Não quero que as minhas filhas os julguem assim, mas que deem uma oportunidade como seres humanos. Por isso saímos.»

Para Pnina, o 7 de outubro «foi o momento mais difícil na minha vida como judia». Mais do que em 4 de novembro de 1995 quando Yitzhak Rabin foi morto. Então foi para matar o sonho da paz, agora foi um “assegura-te de que a paz não vai acontecer”». Desde então muitos mais israelitas vieram para cá e Pnina não precisa dizer o que transparece no seu olhar. «Os israelitas estão em trauma. O que se passou é algo que nenhum ser humano pode compreender. A maioria dos israelitas que foram mortos eram de esquerda, os que acreditavam na paz, voluntários que faziam o transporte de crianças doentes de Gaza para os hospitais em Israel, os únicos em Israel que davam a sua vida pela paz. E agora a confiança quebrou-se, não apenas com os árabes, mas com o governo israelita, pois o sentimento é que o exército do país não veio em seu socorro. Durante 24 horas as pessoas foram queimadas, raptadas, violadas e ninguém do exército israelita veio para os salvar.»

«Se não está pronto para pagar o preço, e se tens uma bolha para estares no Alentejo, silencioso e bonito, então apenas cultivarás os teus vegetais e não falarás disso, do que se passa em Gaza. E isso é um silêncio de privilégio.»

Sinto o resultado contraditório desta quebra de confiança. Por um lado, a dor quanto à inumanidade do Hamas sobre os israelitas. Esses, diz Pnina, «que davam a sua vida pela paz. Como é que a partir desse dia podemos olhar para os palestinianos e dizer que continuamos a acreditar na paz? Estou a falar das pessoas que eram muito radicais acerca da paz, os mais radicais em Israel. Viviam aí, havia amizade. E se lhes perguntares hoje, dizem-te: «vão lá e matem-nos!”. Pessoas que nunca na sua vida pensavam em matar palestinianos. Isso vem da dor e parte-se-me parte o coração ouvi-los reagir dessa forma tão adversa. É errado, terrível, mas eu não os consigo julgar. Vieram até às suas casas, às 7 da manhã, violaram as suas mulheres, mataram as suas filhas. Foi tão maldoso. Eu não consigo julgar, apenas dizer-lhes que têm de continuar a acreditar na paz».

Por outro lado, a certeza das responsabilidades do governo israelita no que se passou. Em ter aberto as portas no dia 7 de outubro. Não hesitam em apelidar de louco e nazi a bibi” Netanyahu. «Foi ele quem matou o processo da paz e pagou ao Hamas, todos os meses, muito dinheiro, para que não houvesse qualquer solução política. Mantendo-lhes o estatuto, pensando que se manteriam quietos». Todo um enredo, criado pelos Estados Unidos e Israel, que potenciou o desfecho do Hamas. Já Aida nos apontara essa premeditação por parte do governo israelita, assim como as acusações de israelitas à inação do exército, que esperou «que matassem as nossas filhas e filhos para que pudessem implementar o planeado projeto económico e político. O projeto para um segundo nakba [êxodo palestino de 1948], de enviar Gaza para o deserto, para o Egipto e Jordânia, e tomar Gaza. Um projeto colonial que se está a expandir», e a que se junta a cooperação dos Estados Unidos e Israel para garantir o monopólio do gás natural do Levante à Europa, ao invés do gás russo ou iraniano.

Posto isto, para Pnina, o contraditório assola-a naquilo que poderia significar vestir hoje a sua t-shirt free palestine, ou ao ver essas palavras nas paredes do mercado municipal de São Luís. «Free Palestine – eu morreria por uma Palestina livre mas hoje parece tudo misturado, as pessoas e as organizações terroristas». Quando na página da Azula «postei algumas coisas sobre os reféns, sobretudo os bebés raptados», Pnina diz-se surpreendida com as reações: «de como me atrevia a escolher lado pois a Azula é uma espécie de espaço comunitário. Mas nós somos israelitas, não posso bloquear isso. E sim, eu esperava da comunidade alternativa aqui que dissessem de forma muito clara depois do 7 de outubro: tragam de volta os bebés raptados e não apenas Palestina Livre! O 7 de outubro não é acerca de libertar a Palestina, mas acerca de terroristas que trouxeram tamanha dor».

Por tudo isso Alon e Pnina compreendem o silêncio. «Uma das formas de reação foi fechar-nos em nós mesmos, o que é tomar um lado. O que é compreensível, mas não justificado». Alon não esconde que «é a primeira vez que falo mais do que dois minutos sobre o assunto, pois falei sobre isto toda a minha vida e estou cansado. Por isso decidi ir à minha vida, tratar das minhas crianças e ter uma comunidade aqui à minha volta. Criar o meu mundo e formar parte de um corpo forte juntos». Mas sabe que o que está em causa aqui «não é escolher um lado. O que está em causa aqui não tem a ver com os povos palestinianos ou israelitas». Pnina corrobora: «Isto não é acerca de palestinianos e israelitas, mas acerca do poder». Para Alon, esse «trauma criado, de raiva e ódio, é escolher um lado. Estão a criar uma nova geração de Hamas e de soldados israelitas criminosos».

Compreender não é justificar

Este consenso acerca da ilusão dos «dois lados» é algo que surge também na conversa que tive com Aida, na Tamera. «Não se trata de escolher lados, mas sim de tomar uma posição pela vida. Se há dois lados é entre a vida e contra a vida. E é muito fácil ver quem está pela vida e quem não o está. Eu apelo às comunidades israelitas que tomem uma posição pela vida e que façam uso do seu privilégio em falar, não contra Israel, nem contra o povo judeu, mas contra o governo e o exército de Israel». «Há um plano que é contra as pessoas, todas as pessoas. Não nos deixemos prender na posição entre israelitas e palestinianos».

Não tomar lados começa assim por tomar consciência da realidade tal como ela é e a palavra ocupação vem colada ao estado de Israel. Como me contou Haneen: «eu cresci durante a ocupação. Crescemos todos em diferentes realidades, a minha é a ocupação. A dos tipos do Hamas é ocupação. Quando cresces em tal realidade, cresces sem compreender porque é que estamos a ser controlados, atacados. Lidando com perdas, uma e uma vez mais. Acredito que nós, palestinianos e israelitas, temos muito a desaprender, nomeadamente acerca das nossas histórias pessoais, de forma a alcançar um entendimento. Porque em Gaza, asseguro-te, há estes tipos do Hamas, mas há antes de mais um povo que quer apenas viver pacificamente, que realmente não quer violência, nem qualquer tipo de controle sobre as suas vidas. Eu sou uma simples pessoa de Gaza, uma simples jovem mulher com duas crianças, dizendo: queremos viver em paz. E a sociedade israelita precisa de ver isso. Há muita desaprendizagem e pontes a fazer para acabar com a ocupação e desmantelar este sistema que causa toda esta atrocidades e violência entre ambos os povos, o ódio, as matanças. Trata-se de desmantelar o sistema, pois enquanto este existir, como é que podemos vislumbrar outro caminho? Não sei como explicar, mas olhando para alguém do Hamas, e não estou a defendê-lo, mas a falar da realidade, que cresce, perdendo a sua mãe, as suas irmãs, irmãos, primos, em ataques, não tendo qualquer comida nem controlo sobre a sua vida, sem esperança por um futuro: como é que esperamos que ele venha a ser?».

Razão pela qual, reitera Aida, «há uma grande diferença entre justificar e compreender». «Para os palestinianos em Gaza que tentaram de tudo, todas as medidas não violentas, pacíficas, culturais, poéticas, todas as formas de resistência, que lhe foram negadas, consigo compreender, no fundo do desespero, que também uses a violência para te libertares. Eu não o justifico, gostaria que não fosse assim, mas consigo compreendê-lo».

Haneen assinala, à luz do que se está a passar, que Israel «vem de um lugar com um passado de trauma e de ter experienciado ele mesmo o que se passa. Podemos, sim, falar do holocausto, mas ao mesmo tempo do facto de não quererem ver o que se está a passar em Gaza, exatamente aquilo que lhes foi feito».

Amor antes da Religião

Alon e Pnina falam-nos, por sua vez, das suas raízes. «O nosso sangue é árabe, somos árabes judeus. A minha família [Pnina] vem da Líbia. Eu não tenho um lugar para voltar, mas eu acredito em Israel, tal como acredito que possamos viver juntos. Porque a minha cultura, a música, a comida, é mais árabe que israelita. Os meus pais falavam árabe e não hebreu, a minha avó não sabia uma palavra em hebreu. Mas depois disto que se passou, se eu disser que sou árabe judeu, olharão para mim como… Põem-me de lado».

Para Alon, «se houvesse um deus, estas coisas não teriam acontecido, porque todos rezamos ao mesmo deus, somos irmãos, temos sangue vermelho e comemos do mesmo prato. Guardo do meu avô as palavras – amor antes da religião. A casa dele em Jerusalém fora-lhe oferecida por ser uma pessoa muito respeitada e na porta dizia salamalekum [que a paz esteja contigo em árabe]. Tinha amigos árabes que vinham no Shabat, sentados e comendo do mesmo prato. Sem diferenças culturais, mas numa comunidade, Jerusalém, em harmonia antes de Israel ser criada. A partir do momento em que esse nome é inventado pelos europeus, esse é o momento em que o caldo venenoso começou a ser cozinhado».

«Há uma grande diferença entre justificar e compreender».

«Por isso “amor antes da religião”. Porque a religião diz não matarás, mas dá-te a permissão para matar». A religião surge como o elefante na sala. No lugar mais religioso do planeta.

Nessa ténue linha que separa a defesa da vida ou da morte, que a religião encobre, não pude deixar de partilhar a minha incredibilidade quanto à questão dos mártires. Porque é que quando os mortos não são mortos, são mártires? Diz-me Aida que «há que ir ao contexto cultural. Para uma criança que acabou de perder os seus pais, é mais fácil dizer que são mártires em vez de dizer que foram mortos. Sempre que existeuma luta coletiva, como esta que dura há 75 anos, em que lutas e és oprimido, precisas de justificar a vida dos que morrem. A ideia do martírio, que não é apenas árabe, fala de culturas onde a dignidade é mais importante que a vida. A dignidade é extremamente importante para os árabes». «Israel controla tudo à nossa volta. As nossas vidas são tão controladas que temos a convicção que somos esquecidos a não ser que façamos muito barulho; por isso, esta identidade de martírio é equivalente a um desespero profundo, de que a tua vida não tem significado se não viveres com dignidade».

Aida lidou com a questão muito cedo na sua vida. «Há um slogan que vem da primeira intifada [1987] que dizia quando a violência eclodiu: “nós morreremos e a Palestina viverá livre”. Eu tinha 16 anos nessa altura e desafiei isso. Quando nós todos morrermos, que palestinianos viverão? E como slogan repliquei: “nós vivemos e fazemos a Palestina viver”. Disse-o e logo alguns homens, jovens palestinianos, vieram ter comigo: “como te atreves!! Pedir pela vida e vida pela Palestina”. Mas essa é a minha escolha».

Como estás na tua comunidade?

Ao longo destas conversas em Odemira, com origem em Gaza e Israel, fui desafiado em diversas ocasiões em expor e desfazer ideias feitas. Para Aida, a perda de sentido na frase Free Palestine, de que fala Pnina, resulta do erro fatal de misturar Palestina com o Hamas, que ambas concordam ter sido alimentado por Israel. Diz-nos Aida que, contra a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), a organização de raiz socialista que defendeu desde 1988 a solução de dois estados, «o Hamas foi criado por Israel para dividir e controlar. E o Hamas fala de uma posição sem horizonte de esperança, onde a religião fala por ti, a extrema-direita fala por ti. O Hamas é a expressão desse desespero. Israel, com ajuda dos Estados Unidos, travou e acabou com qualquer proposta palestiniana liberal, inclusiva. Forçaram as pessoas a eleger pessoas como o Hamas em Gaza».

Para Aida a questão com o Estado de Israel «é que não se trata da questão de “se estás aí”, mas de “como estás aí”. O governo israelita tornou claro, desde o início, que esse “como” é eliminando outras nações. Por tudo isto, «cabe-nos a nós, israelitas, palestinianos e todos, que criemos instituições e modos de dizer: não em nosso nome.»

Um caminho que vai sendo trilhado nesta particular geografia humana das comunidades do sudoeste alentejano onde, como Alon nos disse, diferentes pessoas de diversas nacionalidades, israelitas e palestinianos, internacionais e locais, carregam consigo os seus «danos culturais». «Carregamos essa bagagem connosco. Nasci lá, os meus pais criaram-me lá, mas eu posso escolher onde morrer, e foi aqui que eu escolhi. Aqui me sinto em casa, mais do que em Israel. Em vez de termos dois lados, não nos podemos sentar e falar?».

 


Texto de  Filipe Nunes (com a colaboração de Silvia das Fadas)


Artigo publicado no Jornal Mapa, edição #40, Janeiro | Março 2024


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Filipe Nunes

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