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Lendo: Histórias da escravatura no Alentejo

Histórias da escravatura no Alentejo

Histórias da escravatura no Alentejo


No verão passado, Rui Gomes Coelho e Sara Simões, à frente de uma equipa internacional de arqueólogos, foram à procura da memória da escravatura africana num monte alentejano em Alcácer do Sal, depois de terem estado anteriormente no vale do Cacheu, na Guiné-Bissau. No vale do Sado escutaram as reminiscências daqueles que ficaram lembrados como «os negros do Sado». Os trabalhos arqueológicos juntam as peças desse puzzle histórico com a complexa malha cultural alentejana, os efeitos sócio-ambientais do colonialismo e da escravidão no vale do Sado e as continuidades com o latifúndio extrativista dos campos do Sul.

Que objetivos vos levaram ao Monte do Vale de Lachique em Alcácer do Sal e que questões o projeto ECOFREEDOM – Ecologias da Liberdade: Materialidades da Escravidão e Pós-emancipação no Mundo Atlântico pretende suscitar?

Rui Gomes Coelho: Este projeto procura analisar e refletir sobre os efeitos sociais e ambientais que decorreram do colonialismo e da escravidão modernas, isto é, a partir dos séculos XV-XVI. Orientam-nos algumas questões específicas: Como se materializaram na vida quotidiana as mudanças entre uma sociedade onde a escravatura era um fator determinante e uma sociedade em que todos eram formalmente livres? Que transformações ambientais decorreram desses modelos de sociedade? Pensamos que sociedades diferentes tiveram ecologias distintas e que, de uma forma geral, essas ecologias corresponderam a relações específicas entre plantas, humanos e outros animais e a paisagem. Por outro lado, diferentes ecologias indexaram variados tipos de práticas agrícolas e de gestão do trabalho, assim como padrões distintos de ocupação do território. É possível que, numa sociedade esclavagista, a agricultura estivesse mais dependente de culturas comerciais, ou de culturas que pudessem ser úteis ao próprio tráfico de pessoas. A emergência do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e das economias de plantação tiveram consequências brutais e formaram o mundo em que vivemos hoje. Entre essas transformações estão, por exemplo, o abandono de áreas cultivadas de forma tradicional e a generalização da monocultura, com a consequente redução da diversidade agrícola e homogeneização sensorial das sociedades. Para estudarmos este processo decidimos selecionar dois locais distintos no mundo Atlântico: O vale do Cacheu, na Guiné-Bissau, e o vale do Sado, em Portugal. São regiões muito diferentes, mas une-as uma história comum: as suas posições exemplares no contexto que tratamos, quer enquanto porto de tráfico, no caso de Cacheu, quer enquanto fronteira de experimentação agrícola, no caso do Sado. Esta história, que não é linear, desvela-se nos campos de arroz que encontramos tanto no Sado como em Cacheu. O arroz foi, de certa forma, uma cultura agrícola que ganhou importância com o tráfico, e terá sido neste contexto que passou a ser cultivada no Alentejo. De acordo com estudos recentes, é possível que tenham sido africanos escravizados os responsáveis pelo saber-fazer que está por detrás dos campos de arroz do Sado.

Que objeto ou referência escrita nos poderiam exemplificar para explicar a história «desenterrada» no Monte do Vale de Lachique?

Sara Simões: Muito dificilmente encontraremos um objeto que possamos dizer que foi utilizado por uma pessoa escravizada, é muito difícil individualizar dessa forma o registo arqueológico. São contextos raríssimos aqueles em que é possível reconhecer evidências materiais que documentem uma condição social como a escravidão. Casos como o do Vale de Gafaria, em Lagos, são excecionais. Ali foram encontradas várias inumações de africanos escravizados. A escassez de traços materiais da escravidão não é estranha, se pensarmos que estamos a falar de comunidades propositada e continuamente silenciadas e marginalizadas. Por isso, mais importante do que tentar encontrar de uma forma analítica provas materiais da existência de escravizados nestes espaços, é importante conjugarmos os dados arqueológicos, paleoambientais ou de análise da paisagem para pensar o contexto histórico e social sobre estas presenças invisibilizadas. Se pensarmos bem, a paisagem e os ambientes urbanos foram transformados por pessoas escravizadas durante séculos. No caso da área do Monte do Vale de Lachique, por exemplo, existe documentação histórica que aponta para a existência de mão-de-obra escravizada africana nas propriedades agrícolas do vale do Sado, logo a partir do século XV. E o Monte do Vale de Lachique seria uma dessas propriedades. Durante a escavação deste ano, encontrámos contextos arqueológicos bastante seguros e coerentes que indicam a ocupação deste lugar desde finais do século XV ou inícios do século XVI, nomeadamente áreas destinadas aos trabalhos agrícolas e uma variedade de objetos de uso quotidiano. E temos toda a paisagem, com os arrozais tão próximos e parte da propriedade que circunda o Monte do Vale de Lachique. Até há pouco tempo, existia um grande preconceito em torno desta comunidade sadina de origem africana, conhecida como «os negros do Sado», ou «os carapinhas do Sado». Um dos nossos propósitos, tanto em Cacheu como no Sado, tem sido o de criarmos proximidade com as comunidades locais e trabalharmos em conjunto sobre estes legados comuns. Escutar as histórias e memórias ligadas a estes momentos, ainda muito presentes e enraizadas nestas comunidades, são fundamentais para darmos sentido às materialidades encontradas.

RGC: As casas do monte são provavelmente o testemunho mais eloquente das transformações que decorreram da ocupação do vale do Sado a partir do século XV e da sua transformação numa fronteira agrícola a partir dessa época. No sítio onde hoje encontramos o Monte do Vale de Lachique não existia nada no final do século XV, inícios do século XVI, quando lá foi implantada aquela unidade agrícola e residencial. Provavelmente não houve ninguém a viver ali pelas redondezas por mais de mil anos, desde o tempo do império romano. Encontrámos material arqueológico romano, e depois há um hiato tremendo que termina na época em que estamos a estudar. Este hiato, que é uma espécie de silêncio muito ruidoso, ajuda-nos a entender a escassez de documentação histórica sobre a região até essa época e a referência a «matos maninhos» que surge de passagem num documento sobre uma área que, um século depois, é já uma herdade. Estamos perante indícios do que pode ter sido um processo de colonização interna, num contexto em que estavam a ser levadas muitas pessoas escravizadas para trabalhar no Alentejo e no vale do Sado. As colegas do Laboratório de Arqueociências do Ministério da Cultura e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa recolheram amostras de sedimentos do leito do Sado junto ao Monte do Vale de Lachique. Têm estado a analisar esses dados, e até ao momento entenderam que, no final da Idade Média e inícios do período moderno, houve alterações nas razões isotópicas de azoto e carbono que não se explicam pela influência marinha, pois nessa época o nível médio do mar já estava cinco ou seis metros abaixo. É possível que esta viragem se explique por transformações nas práticas agrícolas no vale. São dados preliminares, ainda. Como não se conhecem construções mais antigas deste tipo na área, não podemos comparar o que encontrámos no Monte do Vale de Lachique. Mas aquilo que vemos na construção mais antiga do monte é o desenvolvimento de uma arquitetura planeada para alojar um grande número de pessoas em simultâneo, ou em momentos específicos do ano, que estão ali para praticar um modelo de agricultura intensiva. Estamos a falar de um edifício longo, com muitas divisões pequenas com portas voltadas para a rua e sem janelas. Este modelo é muito mais antigo, mas no período moderno é construído numa conjuntura muito específica. Esses quartinhos serviram para abrigar famílias inteiras de trabalhadores até ao século XX e, muito provavelmente, serviram de habitação aos escravizados que viveram ali anteriormente. Na aldeia de São Romão, ao lado do monte, fomos conhecer uma senhora que lá cresceu e nos falou da experiência do monte como uma pequena aldeia com várias famílias de camponeses e o vaivém de trabalhadores sazonais.

HerbertoSmith

Como descreveriam o fio condutor – na forma de propriedade e uso da terra – que liga os 5% a 10% (conforme dados do historiador Jorge Fonseca) de escravos africanos no sul do país em época moderna ao modo de exploração latifundiária que caracteriza o Alentejo?

RGC: Vale a pena voltarmos ao monte para pensarmos nesta questão. Para alguns arqueólogos, o monte alentejano é a última encarnação de um modelo de gestão do território que tem o seu princípio na villa romana, que era uma unidade produtiva ancorada na figura patriarcal do dono da terra, do latifúndio. O latifundiário não era um agricultor qualquer. Enquanto patriarca, era a figura que justificava a produção económica e estruturava uma ordem social extremamente hierarquizada, que incluía a família mais direta, os trabalhadores livres e os escravizados. Esta lógica nunca desapareceu, ainda que se conheça mal o modo como foi articulada em cada momento e quais foram os seus agentes concretos. O que é certo é que o latifúndio é transplantado para o Brasil e outras partes do mundo Atlântico, onde se reconfigura para servir à lógica extrativista centrada na monocultura. A casa senhorial, a «casa grande», estruturou a paisagem da fronteira agrícola e o regime sensorial que legitimou uma nova ordem social racializada. Podemos pensar que esta fronteira se tenha estendido e depois voltado a casa, isto é, tenha alimentado a forma como se imaginou e materializou a grande propriedade no Sul de Portugal. É inevitável que a plantação americana, o grande laboratório de experimentação do capitalismo, tenha influenciado o latifúndio alentejano como o conhecemos hoje. Sobretudo a partir do século XIX, com as desamortizações e a entrada em cena de uma nova classe de senhores rurais. Assim, o que podemos dizer é que a lógica patriarcal que estrutura e legitima a consolidação do latifúndio passou gradualmente a convergir com um modelo extrativista, centrado na monocultura, sempre dependente de uma força de trabalho sujeita a relações servis cada vez mais marcadas por hierarquias raciais. Os escravizados que foram levados para os campos alentejanos nos séculos XVI-XVII foram uma minoria no universo dos trabalhadores agrícolas, mas a sua condição foi suficiente para gerar um novo tipo de relações sociais em benefício dos donos das terras e as relações destes com o resto da sociedade. Não é por acaso que tantas situações análogas à escravidão tenham vindo a ser documentadas no Alentejo. Elas são inevitáveis enquanto persistir o latifúndio, mesmo que os protagonistas específicos vão mudando.

Assim sendo hoje o Alentejo continuamente estruturado por praticas de domínio da paisagem, pelas monoculturas e metas produtivistas levando à exaustão da natureza; ou por essas clivagens cada vez mais acentuadas na riqueza, da pose e uso da terra, afinal que perceção e conhecimento atual dessas continuidades puderam encontrar em Alcácer do Sal?

SS: O Sado, atualmente, é um rio seco e parado, sendo os arrozais regados por sistemas de captação de água artificiais. As culturas tradicionais estão em declínio e essa homogeneização do uso da terra reflete-se também na exaustão humana. Com a extrema mecanização dos trabalhos agrícolas e a quase inexistência de práticas de agricultura tradicionais, as aldeias foram desertificadas e transformaram-se em lugares envelhecidos com comunidades profundamente isoladas e carentes de serviços públicos básicos. As populações em idade ativa e os jovens saem e não voltam devido à inexistência de perspetivas de futuro. A monocultura perpetua um sistema de concentração da posse da terra. Hoje em dia, às famílias latifundiárias, juntam-se as grandes multinacionais. As precárias condições de trabalho e, provavelmente, o desprestígio do trabalho agrícola ainda existente em Portugal fazem com que os trabalhos do campo sejam feitos maioritariamente por mão-de-obra imigrante. Fala-se num Alentejo multicultural, mas a que custo? Perante a falta de condições laborais e sem perspetivas de mobilidade social, os imigrantes são enleados na reprodução de um sistema hierárquico e de exploração da terra que tem vindo a marcar esta região desde há séculos.

Devemos refletir na forma como comunidades rurais deram sentido às dificuldades das suas vidas, isto é, à dureza do trabalho, a miséria, as humilhações sociais, e até os castigos.

Por outro lado, como têm vindo a sugerir no vosso projeto, de que forma é que a prática arqueológica, isto é, o processo de produção de conhecimento sobre o passado, se cruza com o projeto latifundista?

RGC: O caráter extrativista do latifúndio é antigo, e teve um impacto na maneira como se produz, como se come, e como se relacionam as pessoas no Sul de Portugal. Mas também teve um impacto na forma como se imagina o passado e o futuro. A arqueologia não se faz, nem nunca se fez, à parte destas relações de poder. A destruição de sítios arqueológicos nos latifúndios alentejanos é apenas outra forma de reforçar a desigualdade no acesso à terra. Ou de mostrar que há passados e futuros que valem mais que outros, dependendo de quem os invoca. A relação dos arqueólogos com o extrativismo latifundiário também nunca foi inocente e, no fundo, o tipo de arqueologia que se construiu em Portugal foi uma extensão epistémica do latifúndio sobre o conhecimento do passado. A arqueologia fez parte deste processo desde que apareceu no séc. XIX como projeto intelectual das elites portuguesas. Durante todo o séc. XX, a arqueologia foi uma forma de as elites legitimarem a posse da terra através de uma prática ilustrada de produção de conhecimento, mas que era efetivamente colonial. É conhecida a história de uma cooperativa agrícola alentejana que, durante a Reforma Agrária, se recusou a entregar aos arqueólogos materiais arqueológicos: o passado da terra, tal como o presente e o futuro, pertenciam ao povo. O latifúndio neoliberal revela-se de outra maneira na sua relação com a arqueologia. Tal como noutras dimensões da vida, o neoliberalismo limita-se a extrair riqueza do latifúndio até à exaustão, sem quaisquer perspetivas de renovação dos recursos que o sustentam. Podemos pensar, assim, que a destruição de sítios arqueológicos e os trabalhos são duas faces da mesma moeda. Cabe aos profissionais da arqueologia e do património refletirem criticamente sobre os seus papéis nesse processo.

SS: Atualmente, com as monoculturas e explorações intensivas que têm levado aos grandes projetos de afetação da paisagem e dos recursos no Alentejo, o que se vê é uma grande dificuldade em salvaguardar ou proteger o património arqueológico. A arqueologia, mais uma vez, encontra-se bastante condicionada e, diria até, controlada pelas elites económicas. Contudo, perante todos os constrangimentos a que os arqueólogos estão sujeitos na sua prática profissional, é fundamental que exista essa consciência. Coletivamente, é necessário que os arqueológos tenham a responsabilidade social e o dever de refletir sobre o seu lugar, enquanto cidadãos ou profissionais, nestas economias extrativistas. Apesar de todas as dificuldades políticas e económicas a que a prática arqueológica continua sujeita, devemos ser capazes de refletir sobre as nossas cumplicidades e de que forma podemos resistir, propondo novos modelos de produção de conhecimento.

O vosso projeto envolve e parte de coletivos africanos ou afrodescendentes (como seja a Batoto Yetu Portugal e a DJASS – Associação de Afrodescendentes), que me dizias [RGC] corresponderem a uma comunidade política, estruturada por críticas decoloniais e pela resistência ao modo como a sociedade portuguesa é ainda marcada por desigualdades económicas e raciais. Esses coletivos encontraram-se com uma segunda e distinta comunidade, a rural e alentejana. Que encontros e que desencontros tal cruzamento suscita?

RGC: Este é um projeto comprometido com lutas pela justiça social e ambiental e, por isso, só faz sentido que a investigação que nele se enquadra seja feita em conjunto ou em colaboração com coletivos e indivíduos com quem tenhamos uma convergência. A questão que nos colocamos sempre é: de que forma é que a reflexão e a prática arqueológicas, que enquanto campo disciplinar segue protocolos objetivos e claros, podem contribuir para uma agenda comum? Entendemos que essa convergência deve ser ancorada num processo de investigação, de memorialização e discussão. Claro que o nosso relacionamento com esses coletivos e indivíduos se estrutura de maneira muito variada, dependendo do contexto. Neste projeto somos felizardos na medida em que estamos a colaborar, embora numa linha distinta, com o trabalho que esses coletivos andam a fazer há muito tempo. A comunidade, seja ela local, política, ou outra, é mediada de muitas formas. Por exemplo, na Guiné-Bissau trabalhamos com a organização não-governamental guineense Acção para o Desenvolvimento, que tem trabalhado criticamente a memória da escravatura através do Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro de Cacheu. O nosso trabalho em Cacheu envolve consultas com agentes do estado e lideranças tradicionais, mas também com a população de Cacheu de um modo geral. Uma das coisas que os nossos colegas em Cacheu estão a fazer agora mesmo é um inquérito alargado sobre transformações causadas pelo nosso projeto, tanto em termos de expetativas sobre a vida em comum como na reflexão pública sobre a escravatura e os tempos coloniais. No Alentejo as coisas funcionam de forma muito diferente. A Batoto Yetu Portugal e a DJASS são duas das organizações que mais se têm destacado na reflexão pública sobre a memória e os legados da escravatura em Portugal, tendo lançado bases muito concretas para essa discussão. A DJASS, por exemplo, liderou o processo para a construção de um memorial da escravatura em Lisboa, ao qual não foi alheia uma reflexão crítica sobre o Núcleo Museológico Rota da Escravatura em Lagos. A Associação Batoto Yetu Portugal, por outro lado, tem organizado visitas ao vale do Sado a propósito da memória africana no país. No nosso projeto, fomos ao encontro deste trabalho e propusemos fazer uma arqueologia que servisse para obter informação, mas que fosse sobretudo geradora de relações entre todos os agentes envolvidos e de discussões no espaço público. A Câmara Municipal de Alcácer do Sal, organização parceira, juntou-se também a este projeto com uma contribuição fundamental na mediação entre a equipa e a comunidade local.

SS: Nós partimos de uma perspetiva arqueológica, mas procuramos entender através desses traços materiais, como é que os fenómenos da escravidão ou dos trabalhos forçados se refletem ainda hoje nas nossas sociedades. Como é que as diferentes comunidades envolvidas trabalham a memória e agem perante esses legados históricos. E, a partir daí, procuramos que a reflexão seja feita de forma conjunta. Norteamos as nossas linhas de trabalho também em função dessas expetativas e necessidades das diferentes comunidades. Porque são traumas e responsabilidades que têm de ser pensados e processados em paralelo e de forma simultânea, a partir das experiências concretas de cada comunidade. Só assim será possível chegarmos a um patamar em que possamos falar de justiça e reparação social e ambiental. E o nosso trabalho, tanto na Guiné-Bissau como em Portugal, tem sido acolhido de forma muito convicta por parte dos vários agentes sociais, o que mostra precisamente essa vontade de falar e trabalhar sobre estes legados comuns e que nos afetam de formas tão distintas.

HerbertoSmith

Cerimónia de homenagem às vítimas da escravatura e aos ancestrais africanos.

Regresso ao historiador Jorge Fonseca que diferencia em época moderna a relação esclavagista no sul de Portugal em face de uma brutalidade maior no modelo das plantações e engenhos da América do Sul. Para lá das diferenças de escala esse «amenizar» decorreria essencialmente de um nível de proximidade, sem com isso excluir a relação colonial e mercantil desses «bens patrimoniais». Atendendo ao vosso trabalho simultâneo no Brasil e na Guiné-Bissau, que quadro de diferenças pode efetivamente ser enunciado e qual o quadro que equipara sem distinções o modo de trato da condição esclavagista e racial?

RGC: Não me parece produtivo pensarmos em semelhanças e diferenças entre sofrimentos, pois seria uma forma de hierarquizar a dor. E isso, como sabemos, é todo um tropo colonial. Sabemos que a racialização da escravatura foi acompanhada por um processo de desumanização dos africanos e de brutalização dos seus corpos. Também sabemos que esse processo foi acompanhado pela consolidação do latifúndio e pela definição de um modelo extrativista de gestão da terra e do trabalho. A insuficiência da documentação não pode sustentar uma comparação desse tipo. Por outro lado, penso que devemos refletir na forma como comunidades rurais deram sentido às dificuldades das suas vidas, isto é, à dureza do trabalho, a miséria, as humilhações sociais, e até os castigos. Em algumas partes do Alentejo é comum ouvir falar-se dessas experiências como uma escravatura; um termo que tem pouco de metafórico quando se desdobra em lembranças e lágrimas. Fui ouvir apreciações semelhantes em contextos diferentes, mas com histórias convergentes. Quando fiz trabalho de campo no interior do Rio de Janeiro, para o meu doutoramento, um dos meus interlocutores disse-me que a escravatura só tinha sido abolida no tempo Getúlio Vargas. Havia uma explicação: foi esse o presidente que, em 1932, reconheceu a personalidade jurídica do trabalhador através da criação da carteira de trabalho. Na Guiné-Bissau, um senhor que tinha sido torturado pelas autoridades coloniais por não cumprir com o seu trabalho disse-me que a escravatura só tinha sido abolida em 1956. Mas porquê? Entendi depois que tinha sido o ano da fundação do PAIGC. Interessa-me a forma como a memória da instituição esclavagista se vai re-significando, dando sentido e visibilidade aos seus legados no tempo longo, apontando simultaneamente para os momentos de rutura e de transformação radical. Em Portugal, inevitavelmente, as experiências da escravatura fora de tempo expiraram com o 25 de Abril de 1974. Em todo o caso, as situações análogas à escravatura que têm sido reportadas um pouco por todo o Alentejo nos últimos anos obrigam-nos a refletir sobre estas convergências.

SS: No caso da Guiné-Bissau, o país encontra-se a enfrentar consequências gravíssimas das alterações climáticas. Não raras vezes ouvi durante o meu trabalho de campo em Cacheu que o tempo da escravidão nunca acabou. É uma estratégia narrativa que evidencia a continuidade de privações várias. E continuam, nomeadamente através do desaparecimento dos campos para prática da agricultura, da destruição das bolanhas devido à subida do nível do mar, da falta de recursos provenientes do rio causada pelas alterações dos ecossistemas que sustentam e modelam a vida destas comunidades. Está subjacente essa re-significação do que se perceciona como escravidão. Ainda que nem sempre exista essa formulação, é muito percetível o entendimento que as pessoas têm de que são elas que sofrem as consequências de algo que lhes é alheio e exterior. E, neste caso, sofrem precisamente as consequências de um legado esclavagista e colonial.

De volta ao vosso papel como arqueólogos, quais são os principais pontos conflituantes que consideram poder existir entre essa vossa agenda de esquerda –assumindo o «património cultural» como um processo de mediação do passado no presente, de acordo com as agendas do presente – com a(s) agenda(s) dominante(s) do património cultural em Portugal e a narrativa do estado-nação?

SS: Em Portugal, assente numa construção muito positivista, só há pouco tempo deixou de ser tão audível esta ideia de que os arqueólogos devem ser imparciais na sua prática profissional, e que devem ter uma responsabilidade social. Aliás, só agora e de forma bastante ténue, se começa a falar de uma «arqueologia contemporânea» em Portugal, por exemplo. Ou seja, a arqueologia tem tido um foco no passado mais distante e um pouco sem uma conexão clara às questões que nos informam enquanto sociedade nos dias de hoje. Nós temos um posicionamento, acreditamos numa arqueologia comprometida política e socialmente, e que não raras vezes entra em conflito com as agendas dominantes. Entra em conflito com um contexto onde ainda se discute se devemos construir ou não um Museu das Descobertas, continuando a exaltar uma suposta epopeia portuguesa, mas sem um reconhecimento da violência inerente a esse fenómeno de exploração e dominação. É também um contexto em que recentemente se inaugurou o Museu do Tesouro Real, exaltando a beleza das joias da Coroa, mas nunca assumindo que todo aquele ouro e pedras preciosas foram roubados e extraídos através de mão-de-obra escravizada, onde existe por parte dos agentes políticos e culturais um boicote à construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas… Tudo isto surge em conformidade com uma narrativa veladamente nacionalista, de um Portugal social e culturalmente homogéneo, branco e, na sua génese, europeu.

RGC: O património cultural é um campo conflituoso e é natural que assim seja, pois é nele que se confrontam perspetivas distintas sobre o passado ou os passados que reclamamos como nossos. É também através do património cultural que os vários grupos sociais fazem a mediação dos seus interesses. A consciência destes processos não é nova, mesmo no caso da arqueologia. Na década de 1970, logo após o 25 de Abril, houve coletivos que fizeram propostas transformadoras muito interessantes. No Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, por exemplo, montou-se uma exposição declaradamente comprometida com uma leitura materialista da história em que os colegas decidiram fazer uma narrativa museológica que começava no Paleolítico e acabava na reforma agrária. O Campo Arqueológico de Mértola apareceu também num contexto em que profissionais do património trabalharam com e a partir de uma comunidade local para desfazer um processo de dupla marginalização: histórica, com a invisibilização do passado islâmico em Portugal, e das vidas das próprias comunidades do interior alentejano. São experiências que nos ajudam a refletir o nosso papel hoje, enquanto arqueólogos socialmente comprometidos, mas também sobre a fragilidade política deste tipo de trabalho e de propostas. O património cultural continua a ser tratado de forma fetichista. Este é um fenómeno transversal a todas as áreas políticas e que nos ajuda a entender as malhas da colonialidade do saber, e da forma como se produz conhecimento sobre o passado em Portugal.

 


Fotografia [em destaque] de  Rui Gomes Coelho
Restantes fotografias de  Herberto Smith


Artigo publicado no JornalMapa, edição #39, Outubro|Dezembro 2023.


Written by

Filipe Nunes

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