Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: O Gajo e Ricardo Vignini, “Terra Livre”
A viola, quase tão humana como os corpos que a dedilham.
Concerto de dia 2 de Fevereiro de 2024, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa
Dois candeeiros e duas mesas pequenas compõem um cenário aconchegante e cinematográfico numa sala no CCB em Lisboa. Aguardamos a entrada de dois violeiros: O Gajo (João Morais) e Ricardo Vignini que, juntos, fizeram o disco “Terra Livre”.
O cenário convida-nos a ver o filme da viagem em que estamos prestes a embarcar. Quem já conhece O Gajo sabe que não é preciso texto para que se possa viajar e imaginar, partindo de alguma história que ele nos conta, mas que cada um de nós também pode ir co-criando ao longo do concerto. Esta viagem em concreto é contada a duas violas, dedilhadas ou rasgadas, que partem de um ponto comum mas oferecem a sua própria voz, o seu próprio ser. A viola, quase tão humana como os corpos que a dedilham.
Fecho os olhos e deixo-me levar até um lugar novo ou não lugar, onde não há fronteiras e onde só existem pontes que nos levam até aos nossos ancestrais, portugueses e brasileiros. Estes estão presentes ora na viola campaniça de João, ora na viola caipira de Ricardo, que, mesmo misturando as suas influências actuais vindas do metal ou do punk-rock, não perdem a essência dos antigos violeiros rurais. Os dois, talvez sem se aperceberem, encarnam aqueles que eram figuras quase míticas das suas comunidades: “quem faz a festa, quem namora, quem conquista, quem conta a história, quem narra a fé (…) cerimonializa, entretém e distrai” (1), como escreve Lia Marchi sobre os violeiros do Brasil rural.
O concerto abre com “Albatroz” que, como diz João Morais, é o pássaro que percorre grandes distâncias, que poderia até atravessar oceanos, como eles o fizeram, para se encontrar. Abro os olhos e, ao ver a simbiose que une estes dois violeiros, sei que não há qualquer distância. Eles encontraram-se, viola caipira, viola campaniça. Portugal e Brasil estão ali, naquele palco, juntos e como os próprios dizem, em estreita afinidade, duas culturas a uma só voz. E sinto que a terra pode mesmo ser livre.
Quem diz que música instrumental é difícil não sabe o que é poder viajar desta forma. E a viagem continua com João e Ricardo, quais “sacerdotes da viola”, para usar uma expressão de Carlos Brandão Rodrigues.
Passamos por paragens mais obscuras e quase místicas de músicas como “Serpente” ou “Maria da Manta”, em que lendas e seres míticos dos dois lados do Oceano Atlântico também se encontram. Quais feiticeiros, lembram-me outra passagem da obra de Lia Marchi, em que a autora sublinha a importância dos tocadores de viola no lado mais cerimonial das tradições populares: “Comenta-se também que existem violeiros, que por tão bem tocar teriam feito «parte com o diabo»”. Acho que estes violeiros, com alma de metaleiros, a tocar à minha frente, gostariam de saber disto.
O futuro, aquele que estamos a viver hoje, um que Benjamim Pereira já não viu, é mesmo maravilhoso. Conhecemos a nossa cultura mais a fundo, ouvimos, aprendemos, transformamos sem receios, essencialmente, transformamos para enriquecer a alma. E é nesta transformação que todos ganhamos, crescemos e evoluímos.
Texto: Joana Negrão (também é A Cantadeira)
Fotografia: Ana Sofia Carvalho (@anasofiacarvalho_photography)
1- Lia MARCHI em «Tocadores, Portugal-Brasil», Curitiba, Olaria Projetos de Artes e
Educação, p.55, 2006.
2- Ernesto VEIGA DE OLIVEIRA, em «Instrumentos Musicais Populares Portugueses»,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000
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