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Lendo: Retalhos duma amiga enquanto espólio

Retalhos duma amiga enquanto espólio

Retalhos duma amiga enquanto espólio


Exposição patente até 26 de Fevereiro

Eduarda Dionísio, cujo falecimento assinalámos na edição de Junho de 2023, odiava aquilo a que chamava «caixinhas», que considerava formas de separar as injustiças e as lutas que são, afinal, inseparáveis, porque, como também sempre dizia, «está tudo ligado». Nesse sentido, a distinção entre intelectual e manual devia ser o mais ténue possível, a especialização um mal a combater e a divisão do trabalho uma ideia que devia desaparecer ao mesmo tempo que o sistema capitalista que lhe dava suporte. Falar de arte sem falar de sociedade, falar de cultura sem falar de justiça, falar de memória sem falar de futuro, tudo isso era pura perda de tempo. Mais: era o tempo de uma conversa – de uma vida – a esvair-se sem remissão nem luta, num desperdício de tempo que detestava tanto quanto as «caixinhas».

A Casa da Achada, que nasceu para gerir o espólio dos seus pais – Mário Dionísio e Maria Letícia –, aproveitou o 14.º aniversário para trazer a público uma selecção do que, nas caixas desse espólio, diz respeito à filha, a própria Eduarda. Não se espere uma cronologia, uma narrativa, uma história. Talvez não se deva até esperar um fio condutor, uma lógica que não seja a própria Eduarda.

Aliás, tratando-se de alguém tão activo em tantos campos, da literatura ao teatro, do ensino ao associativismo, da pintura à acção sindical e política, talvez seja até melhor alimentar um conjunto de expectativas quase opostas, a previsão de um sentimento estranho de qualquer coisa incompleta, que será tão mais sentido quanto mais recente for o conhecimento que cada um tem de Eduarda Dionísio.

Afinal, estamos na Casa da Achada, uma sua criação, e, apesar de haver referências a Passageiro Clandestino (uma espécie de diário de Mário Dionísio que a Eduarda andava, nos últimos anos, a editar e, acima de tudo, a anotar), essas referências são muito suaves, quase imperceptíveis e, mais do que isso, são amostras de originais de Mário Dionísio e não nacos do trabalho que, sobre isso, ela estava a desenvolver. De tal forma que, acabados de ver a exposição, a própria Casa da Achada não existe dentro dos painéis.

Não se trata de esquecimento, muito menos de escolha propositada de quem pensou e construiu a exposição. Trata-se tão-só de cronologia, tempos de vidas e de mortes: o espólio de Mário Dionísio e Maria Letícia acabou de ter acrescentos quando o último dos dois, no caso ela, morreu. O que aconteceu bem antes de a Casa da Achada nascer. Essa é a primeira baliza limitadora. A segunda é o espaço: de onde vieram as dezenas de livros, comunicados, gravuras, fotografias, cartas, pinturas, publicações, folhetos, artigos e outros documentos inclassificáveis que estão nos vários painéis expostos, existem outros tantos (talvez muitos mais) que não puderam entrar pela simples razão de não caberem. Ainda assim, e acima de tudo na sua actividade sindical e política, sente-se a falta de muita coisa. Pelo que se pode especular que há outras balizas, ainda que não verificáveis: terá a Eduarda dado aos seus pais documentos relativos a tudo o que fez? Terão eles guardado tudo o que a filha lhes deu?

Bocados de uma Eduarda que odiava «caixinhas» saltaram das caixas de arquivo do centro de documentação da Casa da Achada e estão à vista de todos, com um grafismo que respeita os documentos, sem pretensões, de uma forma sobriamente caótica que acaba por representar um combate entre os próprios painéis: confinados em «temas» e materiais, mas com uma vontade incontida de se contaminarem entre si e às várias pinturas da Eduarda que também por lá se vêem.

A acompanhar a exposição, uma folha de sala. Com ela, tudo se ilumina, tudo se compreende, todo o caos se torna no que na verdade é: uma outra ordem. Uma sem a outra, a exposição sem a folha de sala ou a folha de sala sem a exposição, pode existir, mas está como que amputada. E isto será, dependendo de quem a visite, uma das maravilhas ou um dos defeitos desta exposição.

Exposição
EDUARDA DIONÍSIO
MATERIAIS DO ARQUIVO DE MÁRIO DIONÍSIO – MARIA LETÍCIA
De 29 de Setembro a 26 de Fevereiro
Na Casa da Achada – Centro Mário Dionísio
Rua da Achada, 11
Lisboa


Artigo publicado no JornalMapa, edição #39, Outubro|Dezembro 2023


Written by

Teófilo Fagundes

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