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Lendo: Cantai comigo que o sol já vem

Cantai comigo que o sol já vem

Cantai comigo que o sol já vem


25 de Abril, outros 50 anos

Falámos com Francisco Fanhais, na sua casa na vila alentejana do Alvito, nas vésperas dos seus 82 anos. A sua voz ainda hoje surpreende pela sua afectuosidade e timbre nos espectáculos que percorrem o país mantendo viva a memória de José Afonso. Para o eterno companheiro do Zeca, a canção de protesto – que uniu um colectivo que fez da cantiga uma arma, antes e depois do 25 de Abril – «nasce fundamentalmente das letras que se cantam, daquilo que se diz. De uma música que seja simples, que seja cantada por toda a gente, um tema que tenha uma dimensão social forte, e que vá ao encontro daquilo que as pessoas sentem, aquilo que desejam».

Na sequência da série «25 de Abril, outros 50 anos», importa pois conhecer a voz do Padre Fanhais, na sua condição de «cristão comprometido» que canta a paz, a fraternidade, a solidariedade e o amor entre todos. Fá-lo olhando a um Jesus Cristo junto dos homens e prescindido da estrutura eclesiástica, da qual se desligou em 1971. Testemunhou os anseios de um mundo novo e vivenciou-o junto de todos e todas que o ouviram, a ele e aos demais cantautores da Revolução, nas fábricas, cooperativas e nas terras ocupadas, por entre as comissões de trabalhadores e moradores após a alvorada de Abril.

 

Epifanias, de Jesus a Zeca

Ao ribatejano nascido em 1941 em Vila Nova da Barquinha, e que ingressou no seminário com dez anos, vindo a ser sendo ordenado padre em 1964, começamos por perguntar como é que nos dias de hoje explica, quando vai às escolas (que nos confessou ser aquilo que mais gosta de fazer actualmente), o que era ter um Padre a cantar música de intervenção durante o Estado Novo.

«Quando vou ter com os jovens digo-lhes que antes do 25 de Abril, essencialmente, vivíamos num país preso. Era como se estivéssemos numa prisão colectiva. Uns sentiam isso mais na carne, eram presos efectivamente, torturados, supliciados. Outros vivíamos nesta bolha de falta de liberdade que era o país inteiro: censura, PIDE, repressão, a guerra colonial que levava 40% do orçamento do estado. Tudo isso digo aos miúdos por alto, mas falando simultaneamente do meu caso, das pessoas que não tendo sido torturadas, nem presas, sofriam na pele o drama de viver num país sem liberdade». Da sua própria tomada de consciência, recorda «todo um conjunto de circunstâncias: nos anos 60 eu tinha vinte anos e a pouco e pouco, através de contactos com professores ou colegas mais velhos, fui abrindo o espírito para uma dimensão política. E, estando no seminário e depois sendo padre, também da minha condição de alguém ligado à Igreja».

«É nesse contexto que eu comecei, sendo cantor não por profissão, mas por vocação, por gostar de cantar». É em 1963, no penúltimo ano do curso de Teologia, que frequentemente descreve como uma epifania, que conheceu a música de José Afonso. «Estava nos Olivais e um dia bate-me à porta um padre (o Pinto Ribeiro) com o disco que de um lado tinha o “Menino do Bairro Negro” e do outro “Os Vampiros”, acabado de sair, e que me disse que iria gostar… Mas dizendo que o ouvisse baixinho… As paredes poderiam ter ouvidos». Francisco Fanhais encontrar-se-á pela primeira vez, poucos anos mais tarde, a 28 de Dezembro de 1968, num encontro cultural nas Grutas das Lapas, em Torres Novas, com o poeta cantor que lhe despertara algo novo no ecoar dos Vampiros: «No céu cinzento sob o astro mudo / Batendo as asas pela noite calada / Vêm em bandos com pés de veludo / Chupar o sangue novo da manada». «A partir daí, já estava no Barreiro nessa altura, a pouco e pouco nasceu uma relação de amizade porque percebemos que queríamos as mesmas coisas através da música, era assim um contributo colectivo para que alguma coisa se alterasse no nosso país».

O Padre Fanhais já era por essa altura nome conhecido da contestação ao regime fascista, parte activa do grupo de católicos progressistas que, com maior ênfase a partir dos anos 1960, se tornariam uma voz cada vez mais incómoda ao Estado Novo, então presidido pelo chefe de estado cerimonial Américo Thomaz, e mais tarde, depois do afastamento de Salazar em 1968, pelo presidente do Conselho Marcello Caetano.

«Nessa altura eu já tinha contacto com padres, como com leigos, mais progressistas» destacando o «exemplo muito forte do Padre Felicidade Alves [1925-1998]. Uma figura decisiva para muitos de nós, por mim falo, pois foi um homem com um carácter perfeitamente indómito, que denunciou, depois de ter ido para Belém como prior, a situação política que estávamos a viver, a guerra colonial. Ele tinha sido professor de teologia no seminário dos Olivais, que era um lugar de absoluta confiança do Bispo, no cerne da formação dos padres, mas ao fim de alguns anos o Cardeal Patriarca Cerejeira pô-lo na Igreja dos Jerónimos, onde a pouco e pouco se deu conta que havia que denunciar. O Presidente da República ia lá à missa e o certo é que o Felicidade começou a denunciar a situação política que se vivia, a guerra colonial, etc. O Américo Thomaz desistiu de lá ir à missa, houve queixas ao Cardeal Cerejeira denunciando a actuação do Felicidade. Após uma troca de correspondência entre ambos, veiculando as queixas que faziam e ele defendendo-se e contrapondo as suas razões, o certo é que a coisa deu para o torto». O percurso de Felicidade Alves é, a vários níveis, exemplar da oposição dos católicos à ditadura, tendo impulsionado, após o afastamento da paróquia de Belém, em conjunto com Nuno Teotónio Pereira e o padre Abílio Tavares Cardoso, os Cadernos GEDOC, entre 1969 e 1970, criticando questões ligadas à hierarquia católica e à guerra colonial. Foi esta publicação que, uma vez considerada ilegal pela PIDE, levou à prisão Felicidade Alves, em Maio de 1970, acusado de incitar à violência e à luta armada, vindo a ser julgado e absolvido.

«Um dos principais motivos da dissidência foi o silêncio da Igreja em relação ao regime, e à guerra colonial».

Para Francisco Fanhais, «nessas dificuldades, então, não posso nunca esquecer que eu não sou um caso isolado no meio de um conjunto, quer de leigos, como de padres progressistas nessa altura, como de cidadãos que eu conheci como companheiros de luta no Barreiro. Tudo isto vivi integrado num grupo e vivi muito da força que me deram essas pessoas, esse colectivo, esses companheiros que ia encontrando no caminho. Não sou nada um caso do herói que luta sozinho contra ventos, sou fruto também de um colectivo de muita gente, padres e leigos, que se empenharam seriamente como cidadãos ou como cristãos em transformar, em alterar as coisas dentro do nosso país. Do ponto de vista de cidadão denunciando a guerra colonial, do ponto de vista de cristão, como padre, denunciando a cumplicidade entre a Igreja e o Estado: o forte apoio moral do regime era a Igreja.» Enfatiza assim que «um dos principais motivos da dissidência foi o silêncio da Igreja em relação ao regime e à guerra colonial, que era o fundamental de toda a nossa preocupação, o apoio que dava à guerra colonial, isto é, o silêncio cobarde e cúmplice com que a Igreja sempre se recusou a denunciar a guerra colonial.»

É neste sentido que Fanhais invoca «aquela célebre vigília na Igreja de São Domingos», na passagem do ano de 1968 para 1969. «Havia uma vigília oficial presidida pelo cardeal Cerejeira em que estavam presentes as autoridades civis e militares para celebrar o dia mundial da paz e, para grande escândalo de muitos nós que lá estávamos, não houve uma única palavra de denúncia, de alusão, por mínima que fosse, à guerra colonial que estávamos a viver. Isso não nos pareceu bem e houve um grupo de pessoas que foi à sacristia falar com o Cardeal Cerejeira e com o Prior da Igreja, anunciando que iríamos continuar a vigília à nossa maneira. Estivemos até às 5 da manhã na Igreja de São Domingos, cantando, rezando, lendo passagens da bíblia e intervenções soltas de quem quisesse – inclusive cartas e testemunhos de gente que estava na guerra colonial – e onde foi cantada pela primeira vez o «Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar» – como é reconhecida a música «Cantata da Paz», poema de Sophia de Mello Breyner, cantado por Fanhais. Dessa vigília, que envolveu mais de uma centena de fiéis e onde foi apresentado um manifesto que denunciava o compromisso político da Igreja frente ao Estado, recorda hoje Fanhais o «grupo de gente que ia engrossando à medida que era cada vez mais escandaloso o silêncio e a cobardia da Igreja».

Em Agosto de 1970, o casamento de Felicidade Alves prestar-se-á como a ocasião para o afastamento de Fanhais enquanto padre. Após um casamento civil, teve lugar «uma cerimónia religiosa fora dos moldes habituais. Eu estive lá e em consequência disso fui chamado ao tribunal eclesiástico para ser interrogado sobre o que se tinha passado. O padre que me interrogou, que tinha sido meu professor de direito canónico nos Olivais, apresentou-me uma folha com um questionário minuciosíssimo. Mas eu não estava com muita vontade de responder exaustivamente àquilo tudo, aliás, já estava com um pé dentro e um pé fora, e respondi que a minha resposta seriam três linhas. Ponto um: estive presente na cerimónia (que eles apelidavam de “cerimónia sacrília” [sacrílega]); ponto dois: concordo com tudo o que se lá passou; ponto três: solidário com todos os que lá estiveram. Isto não caiu bem aos olhos da instituição eclesiástica oficial e na sequência disso fiquei suspenso de padre».

Face a essa situação «deixei de ser autorizado a dar religião e moral no Barreiro, onde dei aulas nos três anos que estive no liceu do Barreiro. Com piada ou sem piada, comentava-se que nessas aulas eu falava de tudo e até de religião…». Por essa altura, a música já irrompera em pleno. «Desde 1968, quando fui para o Barreiro, participei e cantei com o Zeca naquelas colectividades culturais e de recreio que havia na margem Sul e foi ele que um dia me propôs ir ao Zip Zip. E foi depois dessa minha participação, em Junho de 1969, que comecei a cantar fora do Barreiro e um pouco por todo o lado. Não me coibindo, obviamente, uma vez que era essa a razão de ser, de utilizar a voz, o cante e os poemas como cidadão; não me coibindo de denunciar a situação, como a prisão do Padre Felicidade que entretanto tinha sido preso, e não me coibindo de falar sobre a guerra colonial, a situação política que nós vivíamos».

Com a participação no programa televisivo Zip Zip, lança nesse ano de 1969 o seu primeiro disco, «Cantilenas», e em 1970 o «Canções da Cidade Nova», os seus dois discos de carreira (o último reeditado em 1998 sob o título «Dedicatória»). Musicou e deu voz a vários poetas cúmplices, como no emblemático hino de resistência «Cantata de Paz» de Sophia de Mello Breyner, ou na «Canção da Cidade Nova», poema de Fernando Melro, inspirado no Profeta Isaías: «Virá o pobre do mundo inteiro / Há pão que sobre e sem dinheiro / Há pão e vinho em abundância / E o seu caminho é sem distância / Não tem distância esta cidade / Senão o medo que nos invade / Cantai comigo que o sol já vem». Este último poema é descrito por Fanhais – em conversa ao jornal digital 7 Margens, dias antes do nosso encontro – como «um poema-chave na minha vida, porque tem as duas dimensões, a dimensão social e, por outro lado, a dimensão religiosa». É esta a canção que elegeria para cantar se lhe fosse dada a escolher apenas uma nos seus últimos cinco minutos de vida, esperando haver antes dez minutos para poder também entoar a Grândola.

Um momento em que respiramos melhor

Padre Fanhais, Orfeu.

Ao som da marcha de passos na Grândola, gravada em Outubro de 1971 em Paris para o disco «Cantigas de Maio», estão os passos de três homens de braço-dado: José Afonso, José Mário Branco e Francisco Fanhais. Gravado de madrugada, após a ideia de José Mário Branco de gravar os passos dos trabalhadores alentejanos no regresso da jorna, nenhum deles podia imaginar que a canção seria uma das senhas da Revolução. Francisco Fanhais saíra para Paris nesse ano de 1971 e percorreu com a sua música a Europa, até ao dia em que ouviu na rádio a notícia de uma revolução em Portugal.

«Meti-me no comboio no dia 29 e no dia seguinte, eram para aí umas oito da manhã na estação de Vilar Formoso, abri a janela para respirar pela primeira vez o ar puro do Portugal novo». Como não poderia deixar de ser «juntei-me à malta que cantava, a participar nesse processo de desenvolvimento do país, de nascimento da liberdade, fomentando-a também com as nossas vozes, com os nossos poemas, tentando animar e manter viva esta democracia cujo nascimento estávamos a testemunhar. Foi esse essencialmente o meu contributo e, durante o PREC, apoiar ocupações, a formação das cooperativas, etc.». De França trazia já a adesão à LUAR – Liga de Unidade e Acção Revolucionária (1967-1971) – tendo colocado «como única linha vermelha não haver nenhuma acção que fosse para matar quem quer que fosse. Um ponto intransponível».

Da adjectivação negativa com que se pretendeu selar o Processo Revolucionário em Curso (PREC), de 1974 e 1975, como um tempo de «excessos», responde enfaticamente: «Mas aquilo era uma época de excessos, claro que sim! Em comparação com a situação que nós vivíamos é claro que estávamos num pólo oposto. Quando toda a vida se andou agarrado à terra e a mendigar o sustento, de repente encontrar uma situação em que se pode juntar com os outros companheiros e dizer: a terra a quem a trabalha! Não aos senhores que estão lá não sei aonde a viver do nosso trabalho, a sugar-nos diariamente. Acho que era uma aspiração legítima. Por parte da direita, para simplificar, era excesso; por parte da esquerda, também podíamos dizer que era excesso em comparação com a escravidão que tínhamos vivido antes. Portanto desses dois excessos haveria de nascer algum entendimento e de aparecer alguma coisa. Mas não foi um excesso 40 anos de ditadura? E 40 anos de prisões políticas, falta de liberdade, escravidão da mulher, não foram um excesso? Quem é que se pode queixar de excessos tendo vivido todo o tempo nessa altura e sendo cúmplice com todas essas situações? Quem é que se pode queixar de excesso? Sim senhora, excessos, agora deste lado, mas legítimos. Não pode haver outra explicação, nem condescendências».

O ambiente vivido era um mudar de vida. «Quando íamos cantar às cooperativas, o Zeca e eu, havia essa sensação de que qualquer coisa havia de mudar, de não mais continuar aquele sistema em que uma pessoa trabalha de sol a sol e está escravo de um patrão que lhe paga uma miséria. Havia essa sensação. Espaços vazios há uma porrada de anos, quando havia falta de clínicas populares, ou falta de habitação. Ocupações de casas abandonadas, sim senhor! É um excesso, é. Excesso também era do outro lado, anos e anos a fio as casas vazias e as gentes a viver debaixo da ponte. Como ainda hoje acontece. Excessos, sim senhor, mas digamos para simplificar: positivos. Para contrariar e contrapor aos excessos de pasmaceira que tantas vezes nós estamos a viver, hoje ainda. Parece que há muita gente conformada com essa situação. Por mais parangonas que digam que a economia está a crescer, que é mais 1%, ou 2%, que diminui o défice, é muito pouco em relação àquilo que nós ansiamos nestes tempos em que corremos o risco de ter ainda ditaduras outra vez, por baixo de populismos e por baixo dessa cambada de gente que só quer que isto volte para trás.» Na altura, sim, «sentia-se que por um momento, por pouco tempo que fosse nas suas vidas, havia um momento em que respiravam melhor».

«O Zeca cantou perante eles a canção que tinha acabado de fazer sobre a história das minas da Ribeira e sobre a actuação pidesca contra um dos mineiros. Ao ouvirem estas quadras, desencadeia-se uma tentativa de tomada de poder pelos mineiros.»

O cantar é uma arma e era vivido em toda a sua efervescência. Na memória, como tem vindo a ser registado pelo trabalho da Associação José Afonso, a que Fanhais preside, estão as histórias das campanhas de dinamização cultural do MFA. Em «Livra-te do medo – Estórias e andanças do Zeca Afonso» («A Regra do Jogo», 1984) o realizador Luís Filipe Rocha relata como «partimos no meu carro, eu, o Fanhais e o Zeca, e ficámos em Bragança integrados nas campanhas de dinamização cultural. Era a operação Maio-Nordeste, creio. Assisti à penetração do MFA no maior feudo do reaccionarismo. Foi uma época única na história daquele ano. Recordo particularmente as minas da Ribeira, sobre as quais vim mais tarde a fazer um filme, situadas entre Coelhoso e Parada. Tratava-se de umas minas, uma coisa sinistra, o mais miserável que algum dia vi, onde se vivia e trabalhava em condições infra-humanas. Os patrões tinham deixado “cair” as minas e os mineiros estavam ali sem saber o que fazer. Os mineiros reivindicavam o trivial: exames médicos que não eram feitos há anos e reforma. Registavam-se casos de silicose em barda. Chegámos ao fim da tarde e foi o primeiro sítio em Portugal onde verifiquei que o Zeca Afonso não foi reconhecido. Era o MFA que estava presente… Entretivemo-nos a conversar sobre as minas e quando nos vínhamos embora, já noite, um mineiro jovem contou-nos a intervenção da PIDE ali. Esse jovem dispôs-se a levar-nos a uma aldeia onde nos contaram a história da perseguição a um mineiro feita directamente pela PIDE e pelo capataz a pedido do patrão. Eu e o Fanhais “obrigámos” o Zeca a fazer uma canção sobre o acontecimento. Como de costume ele protestou dizendo que “não era capaz de a fazer para o dia seguinte”. Fechámo-lo no quarto e na manhã seguinte tinha feito “Em Terras de Trás-os-Montes”, canção que integrou o seu álbum “Com as Minhas Tamanquinhas”. No dia seguinte voltámos a reunir com essas pessoas, que acabaram por identificar o Zeca quando ele cantou a Grândola, o Fanhais também cantou, mas a reacção inimaginável foi quando o Zeca cantou perante eles a canção que tinha acabado de fazer sobre a história das minas da Ribeira e sobre a actuação pidesca contra um dos mineiros. Ao ouvirem estas quadras, desencadeia-se uma tentativa de tomada de poder pelos mineiros. De facto, tentaram autogerir as minas, mas o processo político posterior gorou esses propósitos.»

Outro episódio marcante é o registo cru e direto da gravação do disco «República», uma verdadeira raridade na discografia de José Afonso, um álbum que é na verdade um disco a dois de José Afonso e de Francisco Fanhais. Como nos recorda «estávamos em Roma em 1975 e o jornal República estava em ocupação» – o caso República resultara na ocupação do Jornal pela comissão de trabalhadores, tendo tido grande repercussão e levando o Partido Socialista a abandonar o governo provisório – «e três organizações italianas propuseram que nós gravássemos um disco cujo lucro de venda fosse destinado aos trabalhadores da República. A Lotta Continua, Il Manifesto e a Vanguardia Operaria. E assim foi. Nós gravámos num estúdio, coisa pequena, com poucos recursos, que foi o que nós conseguimos fazer, numa noite ou duas. Entretanto a Républica dissolveu-se e já não se justifica que o produto da venda fosse para tal, e então fez-se uma segunda edição, uma segunda capa até, acrescentando uma música e tirando outra, uma pequena alteração na ordem do LP, e o lucro das vendas seria de apoio às cooperativas. Depois uma vez que fui a Itália, fui lá tocar e trouxe 100 discos. Na alfândega do aeroporto aqui em Lisboa, abriam as malas e eu disse ao senhor da alfândega: “este é um disco que José Afonso e eu fizemos em Itália de apoio ao República”, e eles lançaram assim os olhos gulosos e eu dei um disco a cada um deles – 90 % para lhes dar uma satisfação porque eles estavam tão desejosos de ter um disco, 10% era para ver se o resto passava… E não houve problemas nenhuns. Os discos desapareceram num instante e pedimos mais cem de Itália, recebemos às tantas na [cooperativa] “Era Nova” um papel dos correios para ir à Almirante Reis levantar os discos. Fui lá e dizem-me que para desalfandegar isso eram 17 contos, o que por mais que nós quiséssemos juntar dinheiro para uma vaquinha, era impossível. E os discos voltaram para trás….»

Fanhais_aljube

Fanhais, Museu do Aljube, 2020.

«Que Deus reme connosco / na viagem»

Em meados dos anos 1980, Francisco Fanhais muda-se para o Baixo Alentejo, junto com Camilo Mortágua, amigo e companheiro da LUAR, enveredando pelo ensino de educação musical no distrito de Beja, sem nunca deixar de prosseguir a divulgação do legado dos tempos vividos e a mensagem que insiste ser actual da utopia de José Afonso. Dois filhos e dois netos vieram-se somar aos seus dois registos discográficos.

Na já referida recente entrevista ao jornal digital 7 Margens (Maio, 2023), recorda um verso de um poema de José Afonso, de 1982, publicado em «José Afonso – Obra Poética» (Relógio D’Água, 2022): «Que Deus reme connosco / na viagem». Sugere Fanhais que «para o Zeca isso seria a fraternidade, a solidariedade entre todos, a amizade entre as pessoas, estar na vida de maneira diferente.» Para si «qualquer pessoa pode entender esse Deus de que ele fala conforme quiser. O que é que pode mover as pessoas nesta viagem que estamos aqui a fazer? Pode ser o ódio, pode ser o domínio, mas pode ser a fraternidade, pode ser a solidariedade entre todos, pode ser o amor entre todos, pode ser a paz, podem ser esses valores. Que um Deus qualquer que ele seja, mas que reme connosco, nesta viagem que estamos a fazer».

Francisco Fanhais mantém-se um «cristão comprometido», fundado na figura central de Jesus Cristo. Já da sua relação com a estrutura eclesiástica Sobre as razões vê hoje para ser dissidente à actual estrutura eclesiástica responde: «as mesmas». «Assim estou hoje longe da igreja hierárquica e institucionalizada, mas próximo daquelas pessoas que me dizem alguma coisa. E sem dúvida que o Papa Francisco é uma pessoa a que é impossível não aderir, à mensagem daquele homem, à sua personalidade, ao seu desprendimento franciscano como chefe da Igreja».

Sobre os abusos na Igreja, é lapidar: «tudo o que se fizer para castigar, do ponto de vista civil e do ponto de vista religioso, todos aqueles que estão implicados em abuso sexual das crianças, é pouco». E indigna-se com figuras como o Bispo de Beja, D. João Marcos. «Há pessoas que caminham de costas para o futuro. E este ressurgimento dos movimentos neo-catecumentais, onde se ensinam as tradições antigas, isso é caminhar de costas para o futuro, porquê, porquê? Acho de uma indigência, de um medo e de um receio de afrontar as situações e de contribuir para que se esteja cada vez mais ao serviço dos pobres. Tentando manter tudo como estava antes, cabeção, de costas para o púlpito… Jesus, nossa senhora onde é que isso já vai! Faz-me uma impressão muito grande».

 


Legenda da fotografia [em destaque]:  José Afonso e Fanhais no congresso da LUAR em 24 de fevereiro de 1975.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #38, Junho|Setembro 2023.


Written by

Filipe Nunes

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