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Lendo: «Não às Minas, Sim às Manas»: encontros ecofeministas nas serras do Barroso

«Não às Minas, Sim às Manas»: encontros ecofeministas nas serras do Barroso

«Não às Minas, Sim às Manas»: encontros ecofeministas nas serras do Barroso


As serras do Barroso continuam a servir de porto de abrigo para tantas que estremecem ao pensar na possibilidade de estas terras serem esventradas por aquele que seria o maior projeto de mineração de lítio a céu aberto da Europa. Mas a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) emitiu, no dia 31 de maio de 2023, uma Declaração de Impacte Ambiental condicionalmente favorável ao projeto de ampliação da Mina do Barroso. Face a esta ameaça iminente, vários coletivos e pessoas têm vindo a mobilizar-se para mostrar que as populações barrosãs não estão sozinhas. Foi esse o caso da Rede 8 de Março (8M), que organizou o seu Encontro Nacional Feminista em Covas do Barroso, nos dias 20 e 21 de maio, e do Encontro Solidário Anti-Extrativista, que aconteceu em Braga, no dia 26 de maio.

O Encontro Nacional Feminista da Rede 8M foi organizado pelos núcleos do norte do país — Braga, Chaves e Porto — e trouxe cerca de duas dezenas de pessoas a terras barrosãs. Este foi o primeiro encontro nacional da Rede 8M desde a pandemia e o primeiro a ser realizado fora de grandes cidades. A Rede existe desde 2019 e surgiu com o intuito de organizar a Marcha do 8 de Março e a Greve Feminista em Portugal, assente em três pilares: greve laboral e estudantil, greve de cuidados e greve de consumo. Nos últimos tempos, a Rede tem procurado ir «além de Março», tecendo alianças e construindo pontes com diferentes lutas.

O objetivo deste Encontro, além de ser um momento de partilha e reflexão entre quem compõe a Rede, foi o de conhecer o Barroso e «trazer a luta anti-mineração para a luta feminista, cruzando-as», conta-nos Joana, uma das organizadoras. Para Chei, poeta e ativista interseccional, «a luta é a mesma». De uma perspetiva ecofeminista, as lutas feministas e as lutas ecologistas são, de facto, faces diferentes de um mesmo combate. Segundo a socióloga Ariel Salleh, a premissa base do ecofeminismo é a de que a crise ecológica é o efeito inevitável de uma cultura eurocêntrica, patriarcal e capitalista, construída sob a dominação da Natureza — entendida como «feminina» — e sob a dominação da mulheres — entendidas como «próximas da Natureza». O ecofeminismo critica a ontologia do pensamento ocidental moderno, que estrutura o mundo em binarismos — cultura/natureza, homem/mulher, razão/emoção, mente/corpo, civilizado/selvagem— entendidos de forma hierárquica. Esta ontologia dicotómica e hierárquica tem servido para legitimar relações de dominação: apenas entendendo a «cultura» como «superior» à «natureza» ou o «homem» como superior à «mulher» podemos justificar a dominação de uma sobre a outra. Nesse sentido, o ecofeminismo busca ultrapassar estes binarismos, reconhecendo a «profunda e estreita interdependência» entre todos os seres, criticando o sistema político-económico que reproduz esta ontologia da separação. Como afirma Joana, «as lutas cruzam-se todas porque o problema de todas é o mesmo: o sistema capitalista».

minas

O ecofeminismo é um movimento, uma práxis, um programa e uma ética que há décadas influencia os movimentos feministas e ecologistas. Durante a elaboração do seu manifesto este ano, a Rede promoveu uma «longa e profunda discussão» sobre as suas «reivindicações quanto à ecologia e às alterações climáticas», conta-nos Chei, membra da Rede desde os seus primórdios, o que «nos obrigou a ter uma conversa sobre decrescimento, sobre ecofeminismo». Como resultado desta discussão política, a Rede posicionou-se, pela primeira vez e a nível nacional, contra o plano de fomento mineiro. Esta posição vai de encontro à «base do que é a Rede», que sempre teve uma posição clara «contra as lógicas de consumo ocidentais e ocidentalizadas» e a forma «como elas influenciam negativamente as mulheres», relata. Na roda de apresentação inicial que abriu o Encontro, a discussão rapidamente salientou como a mina de lítio projetada para Covas do Barroso — assim como todas as outras — responde a interesses consumistas do sistema capitalista. As participantes criticaram o modelo do carro elétrico individual, vendo-o como uma falsa solução, projetada a partir de gabinetes ministeriais, e alinhada com os grandes interesses financeiros. Para quem esteve presente, as minas são entendidas como uma tentativa de sustentar os atuais níveis de consumo; ou, dito por outras palavras, as minas não vêm salvar o planeta, vêm salvar o sistema capitalista.

Foi partindo desta crítica que se deu início à primeira roda de conversa do Encontro, que contou com a presença de representantes de duas associações locais — a Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB) e a Associação Povo e Natureza do Barroso (PNB). Inspiradas por esta conversa, ao fim do dia, as participantes juntaram-se para fazer faixas e cartazes que viriam a decorar as paragens de autocarro e as redes do campo de futebol de Covas. Nessa noite, sob o céu estrelado, houve música, comes e bebes, dançou-se e cantou-se. Pela alvorada, sob o sol tímido, o posto de informação da Savannah Resources acordou com um novo rosto, inspirado por um trocadilho já feito durante a Acampada do ano passado: SACANAS.

minasNo segundo dia, as companheiras da Rede organizaram uma assembleia entre elas, onde foi feita uma partilha das memórias históricas da Rede, os seus «momentos mais marcantes, as maiores dificuldades e os caminhos a percorrer», numa tentativa de «traçar a personalidade do coletivo», diz-nos Joana. A assembleia foi seguida de um momento de convívio no rio que foi crucial para «estreitar laços», já que «a maioria das reuniões nacionais são por Zoom e é muito raro estarmos juntas». Este momento foi também um momento de descanso, um momento de cuidado, individual e coletivo. Joana conta-nos que, no movimento, andam «todas em burnout, muito ocupadas e cansadas». Em círculos ativistas ou militantes, é já quase um lugar-comum ouvir relatos sobre o desgaste dos corpos, sobre a sua exaustão emocional, física e mental. Aurik, que veio aos dois Encontros, tem notado que «há uma ausência interna de espaços cujo foco seja restaurar a saúde mental e física, tanto individual como coletiva» e que, «enquanto houver este desequilíbrio, vai continuar a haver um nível de burnout tremendo». Foi partindo desta constatação que nasceu o Santuário Queer, uma iniciativa de Kura Alma, que «deseja abrir portas para acomodar associações, grupos, coletivos, pessoas», num espaço que se quer uma «viagem» até um «futuro de maior compaixão e carinho».

Cientes destas necessidades, as companheiras da Rede quiseram que o Encontro fosse também um lugar de cuidado. O cuidado, como prática e como ética, é essencial para o ecofeminismo. O corpo da terra encontra-se cansado, exausto, esgotado. Os corpos das mulheres e das minorias encontram-se sobrecarregados, precariezados, extenuados. Consumidos por um sistema que sem cessar lhes retira vida. Resgatar uma práxis de cuidado mais-que-humana — uma ética de apoio mútuo, de carinho, de responsabilidade para com todos os outros seres, humanos e não-humanos — é essencial para conviver, viver e regenerar este mundo danificado. Nas palavras de Maria Mies e Vandana Shiva, o ecofeminismo abraça «uma nova cosmologia que reconheça que a vida é mantida pelo viés da cooperação, do cuidado mútuo e do amor».

O cuidado, como prática e como ética, é essencial para o ecofeminismo. O corpo da terra encontra-se cansado, exausto, esgotado. Os corpos das mulheres e das minorias encontram-se sobrecarregados, precariezados, extenuados.

Adotar esta ética passa por reconhecer a profunda e estreita intimidade entre todos os seres terrestres. O nosso corpo é composto por mais micróbios do que células humanas. Há mais bactérias no nosso intestino do que estrelas na galáxia. São os cerca de 40 trilhões de micróbios que vivem dentro e fora do nosso organismo que nos nutrem, produzindo os minerais dos quais dependemos e permitindo-nos digerir os alimentos que consumimos. O nosso «eu» é, afinal, mais bacteriano e microbiano que humano. Ser humano envolve ser holobionte. Somos compostos — e decompostos — por outros seres. Também mais de 90% das plantas dependem de fungos micorrízicos, que se estendem por infinidades de quilómetros e ligam as árvores através de redes partilhadas, nutrindo-as. Toda a vida na terra é, pois, o resultado de complexas simbioses entre diferentes organismos, isto é, o resultado de relações de profunda e estreita intimidade. Estamos vivas porque estamos profunda e intimamente interligadas. É nutrindo estas relações de intimidade entre todos os seres terrestres, adotando práticas de cuidado mais-que-humanas, que sustentamos a vida na terra.

Uma das principais razões para organizar o Encontro Feminista nas serras do Barroso — e não em contexto urbano, como é habitual — foi justamente a vontade de criar intimidade com o espaço. «Beber esta água, pisar este chão, sentir estas terras», diz Chei. Estar de corpo presente. Estar no lugar. Estar-com o lugar. Por contraste a um ativismo de mente, racional, masculinizado, as companheiras da Rede quiseram sentir. Joana conta que o «encontro foi incrível» porque finalmente pôde vir ao Barroso e rapidamente se deu conta que «se vê mesmo na cara das pessoas que lhes estão a querer tirar a vida! É algo muito íntimo, muito próximo». É esta intimidade mais-que-humana que urge resgatar nas lutas ecológicas assim como nas lutas feministas. Por isso mesmo, para uma das faixas, foi escolhida uma frase que remete para a proximidade entre os corpos humanos e o corpo da terra: «é a tua água, a tua terra, a tua serra, a tua avó, a tua vida». Nas palavras de Chei, «é preciso tocar naquele sítio» que conecta as pessoas ao espaço.

minasNas conversas durante o Encontro Feminista e durante o Encontro Solidário Anti-Extrativista, muitas pessoas comentaram que precisaram vir até ao Barroso para «entender». Foi preciso estar para sentir. Vir para sentir o absurdo que é a projeção de minas. Nas lutas pelo território, parece-me mais necessário que nunca adotar ritmos que nos permitam reconectar com o espaço, com o corpo da terra. Pôr o nosso corpo no território. Criar intimidade com a terra. Estar-com o espaço. Não só estar no espaço, mas sentir-se parte dele, sentir-se-terra, ser-terra. A simbiose corpo-território.

Essa intimidade com a terra, com os seus ritmos lentos, contrasta com o ritmo predatório da mina, que responde a vontades frenéticas, a falsas ideias de progresso, que tudo dizimam numa obsessão impulsiva por crescimento. Por oposição aos ritmos infinitos do crescimento capitalista, as pessoas que vieram aos Encontros promoveram debates sobre outras soluções, que passam, por exemplo, pelo decrescimento, pela agroecologia, pela descentralização energética, pela autonomia e soberania alimentar, por alternativas autónomas ao sistema educativo. Frequentemente, o ‘Barroso’ foi encarado como um lugar onde se encontram já parte das ‘soluções’: aqui, as pessoas preservam e mantêm tradições agrícolas em harmonia com o meio envolvente, cultivam redes de proximidade e comunitárias.

Tal como as teias miceliais, que se coordenam e comunicam de forma descentralizada, «nós estamos a tecer redes entre os movimentos, os espaços, as pessoas», diz Mi, que participou nos dois Encontros. Os movimentos têm procurado tecer redes de (com)partilha de saberes, experiências, ideias, projetos, projeções, num processo que se quer coletivo e comum. Foi com o intuito de criar espaços e momentos de encontros que surgiu a Acampada em Defesa do Barroso, em 2021, que irá regressar à Quinta do Cruzeiro para a sua terceira edição, entre os dias 10 e 15 de agosto de 2023. Face à decisão da APA, a Acampada deste ano quer agregar o maior número de pessoas solidárias ao Barroso e lutar contra a mono-narrativa da transição energética que o sistema capitalista propaga.

«Querem dar cabo das serras, Barroso» mas «nós não vamos permitir!». As montanhas chamam por nós.

Adivinha-se um verão quente. Deixo o convite para que venham até ao Barroso, bebam estas águas, pisem estes montes, respirem estes ares. Deixem-se embalar pelos céus estrelados, pela companhia dos carvalhos centenários, pelos «bons dias» alegremente entoados a cada esquina. Escrevo de olhos postos nos montes, ao som da água que corre à porta de casa. Ouço o chilrear dos pássaros, o ladrar dos cães, o badalo das vacas e do sino da igreja. A sensação de calmaria é tremenda, embora as nuvens carregadas adivinhem a má notícia trazida pela APA. Como canta Carlos Libo, «querem dar cabo das serras, Barroso» mas «nós não vamos permitir!». As montanhas chamam por nós. Unamos esforços, teçamos redes, partilhemos experiências, construamos outros mundos.

 


Texto e  fotografias de  Mariana Riquito [marianariquito@gmail.com]


Artigo publicado no JornalMapa, edição #38, Junho|Setembro 2023.


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