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Lendo: Zé Pinho (1953-2023), o Feltrinelli do Bairro Alto*

Zé Pinho (1953-2023), o Feltrinelli do Bairro Alto*

Zé Pinho (1953-2023), o Feltrinelli do Bairro Alto*


«Por pouco que sejamos arrastados por nós próprios, damo-nos conta de que não está em nosso poder travarmos, temperarmos ou escamotearmos as nossas contradições. Elas guiam-nos, estimulam-nos e matam-nos…»
E. Cioran. «A Tentação de Existir»

Um dia, na véspera do novo milénio, abriu na antiga Litografia Portugal, no Bairro Alto, uma livraria diferente, um espaço luminoso, aconchegante, com livros diferentes e sofás confortáveis. Foi uma surpresa nesta pequena cidade do fim do mundo, onde as livrarias ainda cheiravam a naftalina e a FNAC, recém-aberta, parecia um hipermercado.

Por trás dessa livraria estava um homem, que a maioria só viria a conhecer muitos anos mais tarde; José Pinho de seu nome. Beirão, antifascista, radical, situacionista por influência do seu primo António Ferreira, havia criado nos anos 80 a revista radical Devagar, que desapareceu após alguns números.

A livraria passou a chamar-se Ler Devagar. Como sabemos, não existem homens sós, por isso mesmo o Zé Pinho congregou à sua volta um colectivo de pessoas provenientes da universidade e ex-militantes da esquerda mais ou menos radical. Era a única pessoa que poderia reunir tão heterodoxo e contraditório grupo.

Não viveu como um santo, sabemos todos, era ateu – não merecia pois a canonização póstuma -, e seria o primeiro a rir-se da partida que o destino lhe pregou. É por isso que não quero contribuir para a sua hagiografia. Pretendo apenas descrever como via o Zé Pinho no convívio diário que tivemos na Ler Devagar, ou seja, num tempo e espaço limitados, mas que se prolongou nas relações que mantivemos até à sua morte.

Quando cheguei à Rua de São Boaventura a livraria já existia há algum tempo. Acabado de regressar a Portugal do exílio tardio, foi através de amigos que lá fui parar. O Zé Pinho, mesmo sabendo quem eu era, não me negou a sua solidariedade, e assim acabei a trabalhar na Ler Devagar.

Como estava lá para trabalhar, não cheguei a integrar as tertúlias do ócio ou a participar na maioria dos debates, mas diga-se que também nunca fomos formalmente excluídos, pois na maioria dos casos os sócios tratavam os trabalhadores livreiros como pessoas reais.

Na livraria lançavam-se livros de autores conhecidos e anónimos, realizavam-se exposições, reuniam-se diversos grupos informais, tertúlias, e organizavam-se debates. A marca central da Ler Devagar era ser apartidária e pluralista, o espaço não era pertença de nenhuma facção ou tendência, nem tinha objectivos de proselitismo; era um lugar aberto onde os frequentadores podiam organizar o que entendessem. Uma vez ou outra a proposta vinha dos sócios, como foi o caso da original exposição sobre «Revoltas e Revoluções». Também os libertários ali encontraram um espaço acolhedor onde foi apresentada a revista anarquista Utopia, e se promoveram diversos debates, como o que foi organizado com Abel Paz, o historiador da Guerra Civil de Espanha, ou a homenagem a Edgar Rodrigues, pesquisador autodidacta de História Social. 

O Zé Pinho afável e irónico sabia bem o seu papel contraditório naquele ambicioso empreendimento comercial, mas que era, ao mesmo tempo, um projecto político e cultural alternativo, que não teria existido sem ele, mas também graças a um grupo de pessoas que partilhava a sua visão, talvez uma dúzia. E desses destaca-se Roger Claustre, já falecido, discreto francês situacionista que se perdeu em Lisboa na época da Revolução e que seria o mais constante e culto militante, palavra que ele detestava, da Ler Devagar. Podia acrescentar também o nome de Isabel do Carmo e de algumas outras pessoas mais presentes no quotidiano da livraria.

Esse inacreditável universo paralelo da Rua de São Boaventura só foi possível devido à recusa de Zé Pinho em render-se às permanentes dificuldades da livraria, onde ele colocava os recursos necessários que saíam do seu próprio trabalho criativo. Por isso mesmo podemos dizer que ele não era um «empreendedor» no sentido em que a ideologia do sistema e a lógica liberal o quiseram pintar na fase final da sua vida. Os seus projectos estavam marcados pelo anti-economicismo, mesmo quando eram aparentemente comerciais ou buscavam a auto-sustentação.

Mas como todos sabemos, depois dos punks não há futuro. Um dia os proprietários do imóvel, um fundo internacional qualquer, decidiu acabar com a festa, não renovando o contrato da livraria, argumentando que todo esse espaço entre a Rua de São Boaventura e o Príncipe Real iria dar lugar a um valorizado empreendimento. O que é certo é que aquele espaço fechou em 2005 e de alguma forma aquele projecto desmoronou-se. Não podia ser reconstruído noutro espaço ou território, fora da cidade real de um bairro histórico. Zé Pinho tentou ainda reerguer a Ler Devagar na Galeria ZDB, mas o espaço era demasiado pequeno para a escala ambiciosa dos seus projectos. Foi para a Fábrica de Braço de Prata, conjuntamente com Nuno Nabais, mas tudo terminou num conflito insanável.

Finalmente, como sempre, o Zé Pinho encontrou uma solução, numa tipografia abandonada na antiga zona industrial de Alcântara, onde construiu de raiz uma nova livraria, espectacular como cenário, mas que, como ele sabia e o Roger afirmava, já era uma outra coisa. Naquela área industrial já não era possível reproduzir a livraria da Rua de São Boaventura. O projecto inicial tinha desaparecido, o território era outro, Lisboa mudava a toda a velocidade, não havia mais espaço urbano para as utopias, os turistas estavam a tomar conta da cidade. Cedo a LXFactory que o Zé Pinho lançou se tornou um pólo de consumo e turismo; no roteiro do chamado turismo «cultural» – o espectáculo no seu melhor. E aquela parede espectacular que se tornou famosa, com livros ilegíveis, só servia para as «selfies» dos turistas, pobres autoretratos de nómadas sem identidade.

O Zé Pinho era um pragmático criativo, ou não fosse um homem da publicidade, e logo se dedicou a outros projectos, como o da Vila Literária, que acabou por se concretizar em Óbidos, e levou por arrasto à criação do festival literário Folio, onde se misturavam, de forma inevitável, interesses editoriais e políticas municipais. Já doente, o Zé Pinho não se rendeu e inventou o Centro Cultural do Bairro Alto, na Rua da Rosa, o seu último projecto, este bem mais afinado com o que construiu, ali ao lado, na Rua de São Boaventura, na freguesia onde morava. Regressava ao primeiro sonho.

Nas suas contradições irremediáveis, que são as do nosso tempo, o Zé Pinho viu a sua imagem apropriada pelo Sistema e pelo Espectáculo. Mas, inteligente e irónico como sempre foi, sabia que eles estavam errados. A vida do Zé Pinho não representa a vitória de um estranho unanimismo, como aparenta ser, mas a derrota do maniqueísmo.

É por tudo isto que evoco no título a figura misteriosa, e enigmática, de Feltrinelli (1926-1972), importante editor e livreiro italiano, cujas opções políticas poucos conseguem até hoje entender. Obviamente, no caso do Zé Pinho, penso entender. Melhor dizendo, imagino que entendo.

Foi Único, e nesse sentido marcou o nosso tempo lisboeta. Talvez por isso mesmo tenha co-editado a obra clássica de Max Stirner, o anarquista individualista, O Único e a Sua Propriedade. Mas também co-editou com a Letra Livre o livro de James C. Scott A Dominação e a Arte da Resistência. Discursos Ocultos, onde se analisam os complexos mecanismos de oposição aos Sistemas!


* Este título evoca Luiz Pacheco frequentador ocasional da Ler Devagar e Vítor Silva Tavares, «o Gallimard da rua da Emenda», que a não frequentava, mas por lá passava a deixar as suas edições da &etc.

 


Texto de  M. Ricardo de Sousa
Legenda da fotografia [em destaque]: Roger Claustre; Isabel do Carmo e Zé Pinho.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #38, Junho|Setembro 2023.


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