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Lendo: Todas Sabemos

Todas Sabemos

Todas Sabemos


Mais de 850 académicos, estudantes e outros profissionais assinam um manifesto solidário com as autoras do artigo que acusam Boaventura Sousa Santos (BSS) de assédio moral e sexual, assim como com todas as pessoas sujeitas a abusos de poder e outras formas de violência em contexto académico e fora dele. Falámos com Josina Almeida e Marta Lança, duas das 21 redactoras do manifesto Todas Sabemos.


O manifesto recusa centrar-se na difamação pessoal e aponta a crítica às dinâmicas institucionais sistémicas e comuns dentro e fora da academia. Sendo o sistema académico fundado em marcadas hierarquias profissionais e em divisões de classe, de género e étnico-raciais, o que poderá abalar essas «dinâmicas institucionais»?

É uma pergunta com uma certa armadilha retórica… De facto a universidade é um bom laboratório de funcionamento das relações e colocação de poderes na sociedade. Mas também pode ambicionar ser outra coisa, não estar sempre ao serviço do capital e dos recursos humanos, por exemplo. Ou, como dizemos no manifesto Todas Sabemos, «uma universidade pluridiversa, paritária, interseccional e emancipatória. Uma universidade que não seja conivente com a precariedade geral e que não receie o modus operandi feminista, na construção de pessoas libertas dos constrangimentos impostos por papéis e expectativas prescritivas de género, classe, raça, capacitismo ou preceitos culturais». Não temos soluções para abalar as dinâmicas institucionais, mas uma estratégia é não compactuar com as mesmas.

O que podemos apontar neste caso de diferente em relação a outros?

Em termos de grau de gravidade do caso, sendo que o caso será sempre a prática antiquíssima e sistemática de abuso de poder e assédio moral e sexual em instituições patriarcais, não nos compete averiguar. O que provocou uma reação mais avassaladora cremos ter sido o facto de a crítica inicial (o capítulo «Quando as paredes falaram») descrever, de modo inteligente e reflexivo, o ambiente num centro académico cuja agenda dialoga com o feminismo, pós-colonialismo, direitos humanos, que tem em conta variados modelos de justiça, e movimentos sociais, materializado nas atitudes de uma figura hierarquicamente influente na produção académica, e admirada internacionalmente (a quem as críticas se dirigem). Ou seja, refletir sobre relações de poder na academia a partir deste caso acarreta uma exigência maior, sem dúvida, pelo perigo da cooptação dos media e de políticas avessas aos discursos de BSS, mas tem um potencial atrativo, se houvesse capacidade e disponibilidade para construir um processo «exemplar» de reparação – no sentido de proporcionar uma auto-reflexão profunda (o contrário de «vou já pôr um processo em cima das autoras insolentes e salvar a minha imagem» e, depois, um mea culpa sem responsabilização), de se efetivarem mecanismos de resposta e boas práticas que pudessem servir de referência para outras universidades, do funcionamento de uma Comissão Independente consistente… Porque pode ser um contributo incontornável para a construção de ferramentas que permitam que alunos e subalternos possam diagnosticar determinadas situações. Saber identificar o que nos está a acontecer, distinguir assédio sexual, moral (muitas vezes consequência da recusa aos assediadores), apropriação de trabalho alheio, carreiras interrompidas, perseguições e humilhações, é desde logo um grande passo. Ter coragem para partilhar essas experiências é outro, e dar seguimento a processos que intimidem os detentores de poder (mais ou menos stars) que se sentem impunes e protegidos nos seus gestos de abuso sobre as outras. A partir do caso do BSS pode-se apurar o padrão de abusos que até agora estavam tão naturalizados. Também foram fatores surpreendentes ficarmos a saber de tantas histórias (ao longo do tempo, porque os traumas não prescrevem) de vários tipos de instituições e sectores da sociedade portuguesa, de uma grande vontade de falar e denunciar, e ainda tanto medo de represálias.

As pintadas nas paredes tiveram um papel importante. Também as redes sociais e a capacidade de colocar em uníssono relatos vindos de diferentes partes do mundo. Mas, em última análise, foi a Routledge e o prestígio da publicação que funcionou como grande desbloqueador. Ironia?

Não há dúvida que foi o prestígio da revista dentro das ciências sociais e humanas que conferiu legitimidade e forçou a comunidade académica a ver, apesar das denúncias prévias de activistas em encontros académicos na América do Sul. Essas denúncias, mais do que pintadas em paredes, foram ignoradas porque, segundo os próprios grupos de mulheres na América Latina, não são brancas e não são europeias e por isso o seu testemunho foi desvalorizado e enredado em estratégias de desmoralização das vítimas. O artigo no livro da Routledge é um artigo científico, aplica metodologias e abordagens no âmbito de algumas disciplinas, e escolhe o tema da constituição do poder num espaço vivido pelas três investigadoras. Exercício arriscado, mas com o apoio do próprio trabalho enquanto investigadoras suportadas por uma experiência comum. Não é uma ironia, é algo que decorre da própria condição das denunciadoras, elas são cientistas sociais e foi nesse contexto que decorreram e experimentaram situações de abuso. A ironia talvez seja a de que é um Centro de Investigação, que, pelo seu perfil, atrai investigadores com determinadas características, entre as quais a recusa em fazer parte silenciosa do sistema.


Texto de  L. Silva
Legenda da fotografia [em destaque]: Um dos grafitti surgidos no outono de 2018 nas paredes do CES.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #38, Junho|Setembro 2023.

 


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Jornal Mapa

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