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Lendo: Caminhando, em luta pelos territórios da existência

Caminhando, em luta pelos territórios da existência

Caminhando, em luta pelos territórios da existência


No dia 31 de maio, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) emitiu uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável respeitante ao projeto da mina do Barroso da Savannah Resources. No dia 7 de setembro, a APA emitiu uma DIA semelhante, relativa ao projeto da mina do Romano, em Montalegre, desta feita da responsabilidade da Lusorecursos. Para além destes, dezenas de projetos de mineração estão atualmente em processo de prospeção ou em fase de pedido de licenças de exploração – e centenas mais devem estar na imaginação de um governo que, em parceria com o capitalismo «verde», tem vindo a aprovar concessões por todo o território nacional.

Ao longo dos últimos anos, as populações do Barroso, acompanhadas de muita gente vinda do resto do país, têm feito um trabalho incrível de resistência contra a mineração «verde», organizando-se em associações e coletivos, informando as populações, escrevendo para os jornais, fazendo-se ouvir nas assembleias das freguesias ou dos municípios, organizando manifestações, desmascarando o muito que erradamente se diz, participando em diversos eventos culturais para chamar mais pessoas para a luta, criando páginas online e elaborando mapas, visualizações e relatórios, aproveitando todas as oportunidades para informar sobre os impactos socioambientais da mineração. Têm também agido ao nível dos tribunais, interpondo recursos, injunções, levantado queixas-crime, assim como ao nível dos processos formais de avaliação de impacte ambiental (AIA), mobilizando as pessoas para contribuírem com milhares de participações nas diversas consultas públicas destas propostas. Têm-no feito pelos territórios e por um futuro para todos nós.

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Acção final do Acampamento em Defesa do Barroso (Agosto 2023).

Sem querer descurar nenhuma linha de ação, a via dos Estudos de Impacte Ambiental (EIA) parece não ter capacidade de impedir a expansão extrativista em curso, pois estes operam segundo uma lógica da minimização de impactos, e a APA trabalha com as empresas para que estas consigam desenvolver propostas que não chamem muito a atenção. Também ao nível de política municipal muito fica a desejar: veja-se por exemplo como a Comunidade Intermunicipal (CIM) do Alto Tâmega e Barroso veio agora dizer que está contra a mineração – muito bem – mas só depois de aprovadas a Mina do Barroso e do Romano! Talvez se tenha mais sorte com os processos legais, como por exemplo a ação judicial interposta pela Comunidade dos Baldios de Covas do Barroso contra a Savannah Resources por usurpação de centenas de hectares de terrenos baldios, mas não é certo. Nem ser considerado Património Agrícola Mundial pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) serviu à região do Barroso para evitar a mineração. O que mais se poderia esperar? De qualquer forma, que os processos formais levem, muitas das vezes, a importantes menorizações dos potenciais danos, não deixa de ser importante. Mas isto não deve limitar as ambições das lutas anti-extrativistas e ecológicas.

Após as recentes aprovações pela APA estamos a entrar numa outra fase das lutas de resistência e de defesa dos territórios, que é preciso começar a preparar. Desde já, em torno dos projetos de minas recentemente aprovados, em breve, em torno de outros tantos, não apenas no Barroso, mas também na zona de Chaves, Bragança, Vila Real, Guarda, Viseu, Covilhã, Fundão, Castelo Branco, Beja e Mértola. Para todas as pessoas que têm estado nesta luta, as minas não entram – e quem diz as minas, diz mais concretamente as escavadoras, os camiões, as máquinas de destruição das montanhas. Não haverá outro caminho. Mas sabemos que o Estado e a EU cada vez mais se aferram aos seus critical raw materials e não hesitarão em acrescentar à violência da mineração, a violência policial e legal. Sabemos também o peso que estas ações têm sobre indivíduos, a pressão que fazem sobre os coletivos, e a alienação a que votam alguns dos habitantes locais ou dos movimentos quando os processos não são bem preparados. Ação direta necessita da organização de infraestruturas de cuidado legal, social e afetivo. Para isso precisa-se de gente.

Não é apenas sobre os locais das zonas de mineração que recai a responsabilidade de lutar contra as minas: somos todas «locais» deste planeta.

No sentido de garantir os apoios necessários, muito se tem feito para fazer crescer os movimentos, para estabelecer conexões com outras comunidades em luta contra a mineração por Portugal, Europa e pelo mundo fora. As alianças a fazer são, claro está, para além do lítio, reconhecendo que este faz parte de um problema mais alargado do extrativismo, essa máquina infernal que há 500 anos alimenta o projeto colonial e imperial capitalista. Todas sabemos é que necessário construir alianças transversais e internacionais, pois as veias estão abertas não só na América Latina, mas por todo o planeta. Veias por onde circulam minério, hidrocarbonetos, mas também os azeites de olival super-intensivo, as frutas de estufa, as habitações mantidas vazias pela especulação imobiliária ou tornadas assépticas pela turistificação, e principalmente os corpos desumanizados e escravizados, forças de trabalho exploradas direta ou indiretamente, como são todas as cuidadoras que dão, desde as bases, apoio às muitas pessoas que o Estado abandonou. O resultado desta pulsão de morte planetária a que o capitalismo nos quer amarrar, é o deixar para trás gentes, comunidades, cidades, montanhas, solos e ecossistemas – num ataque constante ao corpo-terra. Porque a terra não está só no campo, mas também na cidade, e por todo o lado onde as lutas ecológicas por territórios e existências estejam a ter lugar.

Por isso mesmo, não é apenas sobre os locais das zonas de mineração que recai a responsabilidade de lutar contra as minas: somos todas «locais» deste planeta (nós, assim como muitas outras espécies e entidades que ainda sobrevivem à extinção em massa que está a decorrer), e sabemos que a longo-prazo a possível sobrevivência de gerações futuras dependerá em grande parte de medidas tomadas pelas gerações atuais. Sabemos que os impactos de uma mina não são só ao nível local, regional ou nacional: pois as emissões de CO2 resultantes da extração, e de toda a cadeia logística de produção de baterias vão para a atmosfera, e acrescentam-se aos processos que nos afetam a todos, globalmente, com impactos para hoje, e para amanhã.

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Acção final do Acampamento em Defesa do Barroso (Agosto 2023).

Mas para que todas sejamos muitas, precisamos de ter solidariedade para com aquelas cuja luta reconhecemos, mas também – o que é mais difícil – com aquelas que expressam e enquadram as lutas de maneiras e com palavras que nos soam estranhas. Tantas vezes perdemos tempo a debater qual a melhor estratégia ou qual o melhor formato, e esquecemos que essa decisão é, em parte, ideológica, em parte, psicológica e, em grande parte, pragmática: há quem prefira trabalhar numa estrutura a longo prazo; há quem se dê melhor com a intensidade dos movimentos; há quem queira sair à rua mas tenha de cuidar de alguém em casa; há quem tenha energia para dar e vender; há quem prefira o sossego de rever comunicados; há quem goste de escrever e investigar, ou quem prefira cantar e pintar cartazes; há quem prefira trabalhar a partir do mesmo sítio, com a mesma comunidade, e quem não pare quieta; há quem dê tudo o que tem e a certa altura tenha de abrandar, e há que tenha redes de apoio que permitam continuar. Nem todas temos o mesmo ritmo ao mesmo tempo. Mas temos de ter cuidado com a atribuição de culpas, pois enquanto as diferenças são saudáveis e geram debates necessários, as culpas geram máquinas de controlo social, de exclusão e de expulsão, ficando cada uma no seu castelo…

Solidariedade implica reconhecer que habitamos territórios existenciais distintos: que às vezes de aldeia para aldeia as pequenas diferenças são grandes; que os movimentos têm estórias para contar; que muitas não terão hábitos ativistas; que outras serão de aparelhos partidários dos quais desconfiamos, outras serão académicas, outras artistas, outras doutoras, muitas de classe média, algumas advogadas, outras cientistas, ecologistas ou agricultoras, mais ou menos hippies, mais ou menos new age, mais populares, mais betinhas, mais estudantes, mais assim, mais assado. Se queremos mais gente a entrar na luta, precisamos de ter a disponibilidade para as acolher de braços abertos – porque todas nós queremos também ser assim recebidas quando nos juntamos a lutas que não são as nossas, e porque todas nos vamos ajustando a modos de lutas que nos fazem mais sentido, em diferentes tempos e alturas da vida, com diferentes intensidades e possibilidades. Mas todas temos legitimidade para lutar, e esse encontro, na mesma manifestação, na mesma rua, ou em frente à mesma escavadora, deveria ser suficiente para garantir um reconhecimento mútuo, que permita escutar e conversar.

Ação direta necessita da organização de infraestruturas de cuidado legal, social e afetivo. Para isso precisa-se de gente.

Sabendo que esta gestão é difícil, da Sérvia vem o exemplo do movimento Marš sa Drine, na voz de Bojana Novakovic [entrevistada na edição de Março/Maio 2023 do Jornal MAPA] na resistência à Rio Tinto, uma das maiores empresas de mineração internacionais. Em vez das eternas discussões sobre qual a forma correta de luta, se aquele movimento é apoiado por este ou aquele partido, se devemos ir a esta ou àquela manifestação, se preferimos este ou aquele slogan, tomou-se ao invés a decisão de todas irem a todas. E assim sendo, durante uma semana de manifestações, todas tiveram gente, todas as organizadoras de uma participaram nas outras, atraindo cada vez mais gente, num processo cumulativo, até ao evento final, curiosamente o mais pacífico, com famílias, crianças e idosas – em que participaram mais de 20 mil pessoas. A partir daí não faltaram corpos com energia para lutar, para bloquear ruas da capital e para bloquear as escavadoras que também aí estão a tentar minerar o lítio. Tendo em conta a lutas que aí vêm, não nos podemos dar ao luxo de optar senão por esta lógica: desfiles, manifestações, encontros, grupos online, grupos de discussão, debates académicos, debates políticos, pressão dentro dos partidos, nos municípios, eventos culturais, organizados por esta ou aquela, e acima de tudo o café da esquina ou a paragem de autocarros: as lutas ecológicas são transversais a tudo e a todos. O que é preciso? Presença. Presença para cuidar, resistir e bloquear, falar e escutar, step-up and step-back, sempre em processo, e imaginar.

Sabemos que a longa duração faz mossa. Ao fim de tantos anos de lutas, é difícil manter a massa ativa e capaz de dar resposta permanente às máquinas extrativas: é preciso regeneração constante. No território agrícola, a norte, a geografia montanhosa faz o perto parecer longe, enquanto a Sul, o longe é de facto muito longe. Há, claro está, um problema de número nas organizações locais, que é consequência de um problema de organização do território (reduzido à dupla extrativismo-turismo), mas também de número de gente com capacidade ou disponibilidade para ir a Lisboa, ao Barroso, a Beja, a Sines, ao Algarve… Há uma precariedade laboral e social alargada que torna difícil estar em todo o lado. Por isso, a presença constante e o encontro são difíceis de manter. Tanto as populações locais como os movimentos, que mais frequentemente organizam estas campanhas, dão por si muitas vezes cansadas, esgotadas, sozinhas, sob o peso de um futuro imposto de cima, e que não escuta.

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Acção final do Acampamento em Defesa do Barroso (Agosto 2023).

O entusiasmo vai e vem, e há pouco corpo para tanta violência. Mas porque os corpos precisam de outros corpos para viver, as manifestações, os desfiles, os festivais, as caminhadas, as acampadas, as escolas, os convívios, os workshops, os protestos e outros modos de encontro têm sido importantíssimos, não só como mecanismos de cuidado e de solidariedade, mas principalmente como mecanismos de presença, necessária à criação de afetos entre modos de existência de mundos muito diferentes, ao longo de territórios muito diversos. Mas também para dizer à terra «nós estamos aqui contigo» para te proteger, cuidar e reparar. Tudo o que permita repetir estas experiências ao longo do ano, seja num fim-de-semana, ou por uma tarde, para dizer «olá» às pessoas, ao montado ou às montanhas, é importante, pois ajuda a quebrar um isolamento, que é bem real, e a abrir outras passagens. Ajuda a entusiasmar, a recuperar as energias e a continuar, da única maneira que sabemos, caminhando. E se houver quem possa juntar-se de uma forma mais permanente aos coletivos, aos movimentos, quem queira vir juntar o seu corpo aos de tantos outros, então ainda melhor!

Pelos muitos mundos do mundo, as lutas contra o extrativismo são lutas contra o imperialismo, contra o capitalismo, contra o patriarcado, contra o racismo. Lutas que, a partir da sua precariedade, da base, mostram ao mundo a possibilidade de constantemente imaginar outros modos de fazer coletivo e comunidade. Seja qual for o seu formato, estas lutas têm sempre em comum o estar em coletivo com a terra. E o mais bonito é isso: demonstrar que é possível não fazer da terra um chão pesado que prenda os corpos à propriedade, ao sangue, ou a uma qualquer origem de estado ou de nação – mas, ao invés, procurando aberturas pelo solo, portais que nos permitem viajar no espaço e no tempo, entre pedras e raízes, fazendo comunidade com dimensões ancestrais e espirituais da existência, ganhando confiança em outras formas de estar em coletivo. Assim o devemos aos mundos que na nossa geração estão a ser destruídos, às gerações futuras que têm direito a um planeta habitável, e a todas as gerações passadas que morreram a lutar por mundos que já não existem. E com a confiança de que, aliadas a todas estas gerações, somos muitas. É certo que todas teremos modos de falar e de fazer diferentes. Mas juntas podemos gritar aos extrativistas a promessa de James Baldwin: «All your buried corpses now begin to speak».

 

SAVANNAH RESOURCES TENTA AVANÇAR COM OS TRABALHOS DE PROSPEÇÃO EM TERRENOS QUE NÃO LHE PERTENCEM E POPULAÇÃO RESISTE

No dia 16 de Novembro, quinta-feira, a Savannah Resources moveu uma máquina para terrenos baldios, invadindo e usurpando, assim, propriedade que não lhe pertence. A população rapidamente se mobilizou para impedir o funcionamento dos trabalhos, alertando para o atentado social e ecológico que representa esta tentativa de usurpação de terrenos. 
 
Já há duas semanas, trabalhadores sub-contratados pela Savannah Resources tinham  sido avisados que estavam a cortar árvores numa área que não pertence à empresa. A empresa, contudo, escolheu ignorar estes avisos, numa atitude que revela uma total displicência face às vozes das populações e impunidade face à lei.
 
A GNR foi chamada ao local e deu conta do ocorrido, afirmando que, sem decisões judiciais, nada poderá fazer.
 
Hoje, dia 17 de Novembro, a máquina voltou ao local, os populares voltam a resistir, a GNR voltou a tomar conta do ocorrido, mas os trabalhos não avançam.
 

 

SÁBADO, DIA 18 NOVEMBRO, PRECISAMOS DA VOSSA AJUDA ️ 

 
Amanhã, a partir das 7h30, precisamos de todo/as vocês!
 
A Savannah está a tentar invadir terrenos baldios e particulares, mas nós não deixaremos. Caso possam, venham ter connosco ao monte (coordenadas abaixo) e, com alegria e tranquilidade, não deixaremos a máquina trabalhar. 
 
Contamos com vocês!
 
41.6285938, -7.7993153

 


Texto de Godofredo Enes Pereira

Fotografias de Outros Ângulos


Artigo publicado no JornalMapa, edição #39, Outubro|Dezembro 2023.


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Jornal Mapa

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