Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Prácticas para um futuro com o qual valha a pena sonhar.
Entre os dias 6 e 8 de Outubro realizou-se em São Luís (Odemira), nas instalações da Regenerativa, o 2º Fórum de Cooperativas Integrais. Ao todo, somou-se mais de uma centena de inscritos e mais de 30 entidades representadas, desde cooperativas a proto-cooperativas e grupos informais. Afinal, como um dos organizadores declarou na ronda de reflexões sobre o evento e o futuro da Rede de Cooperativas Integrais, os grupos informais e outras organizações presentes contribuem tanto para o cooperativismo integral como as cooperativas que incorporam no seu nome tal adjectivo. Nesse sentido, o que mais importa são os princípios cooperativos partilhados: adesão livre e voluntária; controlo democrático pelos cooperantes; participação económica dos cooperantes; autonomia e independência; educação, formação e informação; inter-cooperação; preocupação com a comunidade.
Este último princípio parece remeter, neste contexto, tanto para os nossos territórios locais, quanto para os desafios globais que enfrentamos como comunidade humana e mais-que-humana. Durante estes três dias transpareceu uma transversal necessidade de transformação, de comprometimento para com a construção efectiva e pragmática de alternativas viáveis ao modelo capitalista, de tecer em conjunto discursos, prácticas e estratégias para um futuro com o qual valha a pena sonhar.
Apoio mútuo
O plano de actividades começou no pátio do espaço Co.Re. – um edifício utilizado pela cooperativa anfitrião sobretudo para actividades pedagógicas – com a apresentação das entidades presentes. Era notória a expansão do número de cooperativas integrais pelo território: as já presentes no forum do ano anterior, Minga em Montemor-o-Novo, Rizoma em Lisboa, Regenerativa em São Luís, Estação Cooperativa em Casa Branca, Alma Ohana em Odemira e, as entretanto formalizadas, Raiz Minhota no Minho, Coop 99 no Porto e T’Inspirar em Tomar. Ausente esteve a cooperativa Da Terra, que se estende pelas localidades de Aljezur, Vila do Bispo, Lagos, Odemira. O programa prosseguiu num amplo sótão revestido em madeira, onde representantes de duas redes internacionais – a Solidarius, uma comunidade internacional de intercâmbios económicos solidários, e a RIPESS, guarda-chuva que abrange redes continentais e nacionais de economia social e solidária, e que procura coordenar esforços a nível global pela transição para uma economia democrática, ecológica e não baseada no lucro.
Nesse primeiro dia, no pátio do Co.Re, escutou-se o veterano da economia social e solidária catalã Jordi Estivill, que nos conta que o termo «economia social» surge pela primeira vez em Portugal no século XVIII, numa peça de teatro em que se contrapunha a economia dos ricos, baseada na ganância e na ostentação, com a dos pobre, derivada da satisfação de necessidades e aspirações modestas, assim como em princípios de solidariedade e de apoio mútuo. Jordi contrapõe a «economia social» actual com a «economia solidária», declarando que a primeira tem uma tendência reformista, enquanto a segunda se opõe explicitamente ao sistema socioeconómico capitalista. Explica o facto de existirem na Catalunha cerca de 16 500 iniciativas solidárias e 4500 cooperativas (tanto «íntegras» como desvirtuadas, mas maioritariamente íntegras, garante), além de hortas urbanas, mercados de troca directa, bancos de tempo e okupas, pela forte tradição do movimento operário e cooperativo na região (o que terá levado Barcelona a ser conhecida como «A Rosa de Fogo»), o processo pré-franquista de colectivização de terras, a quantidade de associações de vizinhos e a constante resistência contra o Estado espanhol.
O professor sociólogo e economista deu-nos ainda o exemplo de Can Batlló, uma luta que congregou militantes e associações de vizinhos na reivindicação pelo espaço de uma antiga fábrica de têxteis de Barcelona e cuja estratégia foi colocar um relógio na praça central que marcava os dias que faltavam para a data em que município prometera ceder espaço à comunidade local. Quando esse dia chegou, vizinhos e activistas realizaram uma marcha para ocupar o edifício; no entanto, a massa crítica tinha atingido tal intensidade que o município se viu forçado a ceder a gestão do edifício à plataforma de composição heterogénea que reivindicava o espaço. Jordi contrapõe duas vias de cooperativismo: a de «Mondragón», baseada no crescimento vertical, e a dos «morangos», a via catalã, em que as cooperativas e outras iniciativas de economia solidária se distribuem pelo território, gerando um ecossistema cooperativo em constante expansão. O veterano é crítico das parcerias com o Estado, que, na sua opinião, «não funcionam, considerando que o movimento cooperativo deve ter por estratégia neutralizar ao máximo o poder do Estado dentro das suas esferas de acção. Exemplo desse ethos foi a rede que representa, a Xarxa d’Economia Solidària da Catalunya (XES), ter desenvolvido o seu próprio mecanismo para avaliar o quanto as iniciativas que a integram se aproximam dos princípios da economia solidária.
As reflexões e os debates acompanharam o jantar no Espaço Nativa, cedendo porventura aos lentos e extensos ritmos do cante alentejano, que se que foi ecoando noite dentro, até o cansaço e o sono soarem mais alto.
«Os 99% precisam de mudança»
A segunda jornada foi inaugurada pelo economista e co-fundador a Cooperativa Integral Minga, Jorge Gonçalves, que abordou o conceito de «cooperativas integrais» – organizações democráticas que reúnem todos os ramos de actividade socioeconómica necessários ao viver. Jorge explicou que a própria Rochdale Society of Equitable Pioneers, criada em 1844 e cujos princípios ainda servem de base ao cooperativismo internacional, tinha já um propósito integral, que incluía a criação de uma loja onde os cooperantes podiam comprar a preços acessíveis todos os produtos de que necessitavam, comercializar os bens produzidos, criar empregos sob condições justas, disponibilizar serviços (sobretudo de educação e saúde/apoio aos idosos) e construir habitação própria. No entanto, observa, as regulamentações estatais começaram a limitar a actividade das cooperativas, obrigando à divisão entre cooperativas de consumidores e cooperativas de trabalhadores, cujos interesses eram díspares e, por vezes, antagónicos. O economista relembra também que António Sérgio, figura histórica da qual deriva a CASES, entidade que faz a articulação entre as cooperativas e o Estado Português, já advogava o «cooperativismo integral», cuja «meta» seria «dar o máximo desenvolvimento às cooperativas de consumo, tornando-as produtoras e também bancárias». Na sua perspectiva, «[o] melhor instrumento do progresso social é a cooperativa de consumo que se faz produtora para os seus próprios sócios, já na agricultura, já na fabricação, adquirindo terrenos, e montando oficinas, e sendo financiada pelo seu próprio banco».
Em seguida, José Donado (Co.Re; Regenerativa) tomou a palavra para nos ajudar a imaginar o futuro da Rede de Cooperativas Integrais. Entre os objectivos enumerados, estão «o apoio na criação, manutenção e desenvolvimento de cooperativas integrais»; «aumentar a visibilidade das iniciativas de cooperativismo integral»; «representar as cooperativas integrais em Portugal»; «influenciar políticas e legislação em favor dos interesses do cooperativismo»; «partilhar recursos, bens, serviços e conhecimentos entre cooperativas»; «promover o consumo entre cooperativas»; «facilitar o contacto com outras iniciativas com valores convergentes a nível nacional e internacional».
Então, foi a vez de Bernardo Fernandes (Rizoma) e Alina Santos fazerem um apanhado do percurso da rede desde a sua criação, no rescaldo do 1º Fórum de Cooperativas Integrais. Mencionaram-se os encontros mensais, as reuniões com outras entidades nacionais e internacionais, a produção de material informativo para a criação e manutenção de cooperativas integrais. Destaca-se a seguinte frase de Alina, co-fundadora da Coop 99: «só as poucas pessoas que levam uma vida confortável é que não procuram alternativas como as cooperativas integrais; os 99% precisam de mudança».
Quando o intenso calor alentejano começou a tornar-se insuportável, as participantes deslocaram-se ao sótão para ouvir a apresentação da representante da CASES. Esta garantiu que, apesar de termos de seguir a lei, isso não tem de limitar a acção das cooperativas. Não obstante, reconheceu que a legislação específica é muito antiga e garantiu que há abertura para alterações, tanto em relação a organizações «mais conservadoras», como «mais alternativas», como seria o caso das cooperativas integrais.
Seguiu-se a apresentação da representante da ANIMAR, que se apresenta como uma «rede de promoção da cidadania e do desenvolvimento local», desenvolvimento esse que garantiu ser definido «pelas próprias pessoas». Esta organização presta serviços de formação, consultoria, apoio jurídico, além de procurar fazer pressão política para legislação mais favorável à economia social e solidária.
Para fechar a manhã, Michelle Chan, representante da Confecoop (Confederação Cooperativa Portuguesa), propôs-se abordar questões de fiscalidade de cooperativas, reconhecendo que os seus colegas contabilistas «não gostam de dar os seus trunfos a troco de nada». Portanto, decidiu revelar, ela mesma, informações relevantes sobre os benefícios fiscais de que podem desfrutar os cooperadores. Aproveitou ainda para esclarecer as diferenças entre um contrato de trabalho (regido pelo Código do Trabalho) e um acordo cooperativo (uma relação de não subordinação afecta ao Código Cooperativo), regime de auto-emprego practicado pela Pro Nobis como alternativa aos recibos verdes, cooperativa de que é co-fundadora. Por fim, enumerou alguns objectivos que a Confecoop irá perseguir; entre eles: incentivos fiscais para o auto-emprego, apoio técnico e financeiro, negociar a percentagem de IRC que incide sobre as cooperativas, entre outros benefícios fiscais.
Entretanto, as participantes foram-se deslocando para o Espaço Nativa, onde o almoço precedeu a apresentação de Guilherme Luz sobre Comunidades de Energia. O membro da Coopérnico, a primeira e ainda única cooperativa de energia do país, começou por declarar que «energia é poder», ou seja, quem produz e gere a energia que consumimos controla, em grande medida, as nossas vidas. Para se evitar estar à mercê do mercado e das manobras comerciais de empresas privadas, Guilherme propõe um processo de democratização energética, em que grupos procuram atingir a autonomia (ou soberania) energética mediante modelos de «comunidades de energia», que podem assumir a figura legal de cooperativa ou de associação. Nas comunidades de energia a eletricidade é produzida de forma descentralizada (no caso de energia fotovoltaica, a energia pode ser captada sobre as casas dos próprios membros) para então ser distribuída pelos membros, que, como sucede na coopérnico, têm o direito a (e beneficiam de) participar na tomada de decisões.
A seguinte actividade, chamada «espaço aberto» e que contou com a facilitação de André Vizinho (Regenerativa), foi realizada num parque de merendas localizado na colina em que acamparam várias participantes e no topo da qual assentava um velho moinho. As pessoas distribuíram-se por várias mesas de piquenique para falar de temas que iam desde governança e questões fiscais à pedagogia e moedas alternativas. No final, as respostas foram partilhadas, no campo de futebol adjacente, pelos responsáveis de cada mesa, precedidas e sucedidas de dinâmicas de grupo que faziam com que a diferença entre trabalho e diversão se esbatesse.
Após o jantar, a noite prolongou-se com a DJ Chiara Grilli na mesa de misturas a desenterrar tesourinhos da lusofonia, desde Zeca Afonso a Buraka Som Sistema.
«que valor queremos dar à vida»
O último dia de Fórum começou com uma apresentação de Michelle Chan sobre questões legais e fiscais e seguiu para um plenário em que se partilharam reflexões sobre o fórum e aspirações para o futuro da Rede de Cooperativas Integrais. Entre outros temas, falou-se de aspirações ambiciosas, como «mudar de paradigma» e perceber colectivamente «que valor queremos dar à vida», mas também de questões mais pragmáticas, como «diminuir a complexidade da contabilidade e administração dentro das organizações» ou «partilhar recursos». Mencionou-se a necessidade de reforçar laços de confiança dentro e entre as cooperativas, de combater o individualismo, de demonstrar carinho mútuo e de desenvolver uma visão comum.
Chamou-se também a atenção para o facto das cooperativas integrais também serem, em grande medida,«monoculturas», visto que os seus membros são relativamente homogéneos em termos de etnia, educação, classe social. Observou-se que as cooperativas não são um fim, mas um meio, que a cooperação transcende a cooperativa, e que não haveria necessidade de cooperativas se o Estado não nos obrigasse a facturar para vender o que quer que fosse. Abordou-se ainda a tensão entre visões mais pragmáticas (como a necessidade de ser-se economicamente sustentável) e posições mais ideológicas (como ser-se anti-capitalista). Ecoam as palavras do experiente Jordi Estivill: «Há apenas dois tipos de rede: as que buscam benefícios económicos e as redes ideológicas/políticas, e vocês não pertencem à primeira categoria». O plenário terminou com as contribuições que cada participante se compromete a oferecer à Rede de Cooperativas Integrais e com a promessa de que o próximo o fórum terá lugar no Minho.
O Fórum encerrou, em espírito familiar, com um almoço de domingo no Espaço Nativa. As participantes foram trocando números e os abraços de despedida foram-se sucedendo. Ficam as promessas de visitas mútuas e do retomar das pontas soltas ao longo das reuniões da Rede de Cooperativas Integrais, «na terça terça-feira de cada mês».
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