Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Anarquistas em Rojava. A revolução é uma luta em si mesma.
Temos visto declarações sobre o trabalho da TêkoşînaAnarşist fora do campo de batalha, desde o apoio médico à educação. Esta segunda é de grande interesse para nós. Poderiam esclarecer-nos melhor sobre a forma como procedem com campanhas educativas, não só entre vocês, mas também com as comunidades locais? Há alguma lição que queiram partilhar sobre o papel (e o processo) da educação revolucionária? Como é que veem a pedagogia, não só como uma ferramenta, mas também como um espaço dentro das lutas que têm de enfrentar?
A educação é o que constrói os alicerces de uma nova sociedade. É frequentemente a nossa melhor ferramenta para nos defendermos a nós próprios e às nossas comunidades. O movimento de libertação curdo valoriza muito a educação e isso também levou-nos a refletir sobre a nossa abordagem. Em Rojava, é prática comum participar em acções de formação de vários meses, em que militantes de diferentes locais não têm outra tarefa senão aprender e desenvolver-se. Esta prática não é nova em Rojava, pois, o movimento curdo tem vindo a trabalhar nos seus métodos educativos há décadas. Ao participar em algumas dessas formações, apercebemo-nos também do quanto o nosso entendimento de educação está ligado à escola, à universidade e a outros sistemas estatais. E até que ponto devemos desenvolver os nossos próprios programas educativos, moldados pelas nossas próprias opiniões e valores políticos. Neste aspeto, a “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire pode dar perspectivas muito importantes.
A educação revolucionária pode ser tudo o que fazemos, se aprendermos com ela de forma organizada. As educações fechadas permitem-nos aprofundar um tema, como aprender sobre a filosofia e os pontos de vista políticos de AbdullahOcalan, estudar as propostas de Makhno ou Malatesta sobre o anarquismo organizado e as diferentes tentativas de o pôr em prática, ou aprender sobre primeiros socorros e cuidados médicos em situações de guerra. Mas isto também tem de vir com a prática, que é muitas vezes a melhor educação, como quando trabalhamos em sociedade com os nossos camaradas curdos, árabes e outros, quando construímos a nossa organização no dia a dia, ou quando trabalhamos como médicos de combate nas linhas da frente. A teoria traz conhecimento e ajuda a construir compreensão e confiança, mas é o trabalho prático que constrói a nossa experiência.
Alguns conhecimentos que trazemos connosco são recursos escassos aqui, e é importante colectivizá-los. Temos realizado cursos de primeiros socorros e de cuidados tácticos no terreno a camaradas curdos, árabes e arménios. Também partilhámos os nossos conhecimentos e experiências entre nós, por vezes em seminários curtos, outras vezes em formações fechadas mais longas. Isto ajudou-nos a desenvolver as nossas capacidades e uma estrutura comum enquanto organização, tanto a nível prático como ideológico. Com o tempo, os nossos métodos e sistemas de educação estão a adaptar-se melhor às nossas necessidades, reflectindo não só o que queremos ensinar e aprender, mas também como o queremos fazer. Para alguns camaradas é útil ler ou ouvir um seminário durante várias horas, para outros é melhor fazer as coisas e aprender na prática. Tentamos ter isto em mente, mas também nos desafiamos, por exemplo, encorajando os camaradas que estão mais familiarizados com as áreas académicas a trabalhar no terreno, e impulsionando o desenvolvimento ideológico e os trabalhos teóricos com aqueles que estão mais orientados para o trabalho no terreno.
Em declarações anteriores, falaram da necessidade de os revolucionários se libertarem de mentalidades individualistas e egoístas, bem como de questões de ego quando se lida com camaradas e com a organização. Como é que vocês, na TA, conseguiram lidar com essas mentalidades? Reconhecemos este ponto de vista, em que o anarquismo e a luta revolucionária se situam continuamente numa linha entre estilo de vida e comodidade, não nos permitindo construir relações significativas na marcha para a libertação. Existem algumas lições ou avisos das vossas próprias experiências que possam ser partilhados?
Essa é uma pergunta muito difícil, porque é um dos principais desafios que enfrentamos. O anarquismo sempre discutiu as contradições entre os indivíduos militantes e a necessidade de organizações revolucionárias. Estamos a trabalhar para equilibrar esses pontos, porque vemos argumentos muito importantes a serem feitos em ambos os lados. Tal como muitos anarquistas antes de nós, chegámos à conclusão de que a organização é uma necessidade, não como um objetivo em si, mas como um meio para atingir um fim. Não aceitamos hierarquias desnecessárias e valorizamos a individualidade dos nossos militantes, referindo muitas vezes a ideia de que «não há organização sem militantes, não há militante sem organização». Com isto queremos também salientar a importância da responsabilidade individual perante a organização, bem como a responsabilidade colectiva da organização perante os indivíduos.
Aprendemos que a organização é uma luta em si mesma, e que contradições, conflitos e desafios surgirão sempre na nossa organização
Tornar-se militante de uma organização revolucionária traz consigo contradições individuais e colectivas. Os principais aspectos das nossas personalidades foram moldados pelas sociedades em que crescemos. A vida na modernidade capitalista assenta na individualização. Na escola, no local de trabalho, nos meios de comunicação que consumimos, dizem-nos que a liberdade individual é tudo o que importa. «A tua liberdade termina onde começa a liberdade do outro» é frequentemente a ideia principal que rege as nossas sociedades. Esta ideia nega a pertença colectiva e promove a mentalidade e os valores individualistas. Por isso, não é de admirar que o anarquismo individualista consiga prosperar nas sociedades capitalistas de onde viemos, porque se liga aos valores individualistas que o liberalismo promove. Nós queremos desafiar isso. Acreditamos que a nossa única saída é a solidariedade e a ajuda mútua e, para isso, temos de desafiar o individualismo profundamente enraizado que todos trazemos connosco.
O individualismo pode assumir muitas formas. Algumas são mais óbvias, como o egoísmo, o elitismo ou o narcisismo; mas as formas mais subtis podem demorar mais tempo a ser detectadas, como recusar ajuda quando necessário, não partilhar informações ou conhecimentos com os camaradas, não ouvir ou considerar as propostas e ideias dos outros. Todos nós temos traços de individualismo, que estão frequentemente ligados ao nosso ego e à imagem que temos e projectamos de nós próprios. Ultrapassar isto exige que sejamos capazes de nos avaliar a nós próprios e aos outros, bem como as nossas formas de relacionamento. A crítica e a autocrítica andam de mãos dadas, precisamos de ser capazes de reconhecer as nossas falhas para nos envolvermos de forma significativa com as falhas dos outros. Admitir para nós próprios que existe uma diferença entre a forma como nos vemos/como queremos ser vistos e a forma como os outros nos veem pode ser doloroso. No entanto, reconhecer essa diferença abre-nos a porta para o desenvolvimento. Todas as pessoas têm essa diferença, para algumas é mais larga, para outras é mais estreita, e desafiá-la pode criar espaço para crescer e aprender. Tendo isto em mente, podemos construir melhores relações, baseadas na honestidade e na confiança.
A confiança é escassa nas nossas sociedades. É muito mais fácil aprender a suspeitar, a ter medo do vizinho, a pisar os colegas de trabalho para ter vantagem e conseguir uma fatia maior do bolo. O capitalismo assenta na concorrência, na mentira e na venda de si próprio, na sociedade do espetáculo. Não há lugar para a honestidade e a confiança num sistema que se baseia no desempenho, na aparência do que não se é, em fingir e acreditar que um dia se conseguirá. Para sermos honestos e transparentes com os nossos camaradas é necessário sermos vulneráveis. Foi-nos dito para escondermos essas coisas, para não deixarmos que os outros vejam os nossos pontos fracos, para nos apresentarmos como a pessoa omnipotente que pode fazer tudo o que for preciso. Todas estas características individualistas jogam contra nós, especialmente em momentos difíceis, quando o stress e as dificuldades revelam as coisas que tentamos esconder.
Temos trabalhado estas questões pondo em prática ferramentas como o “tekmîl” 2 e a plataforma, que aprendemos com o movimento curdo. Também explorámos outros métodos e, ultimamente, temos vindo a aprofundar os nossos conhecimentos sobre resolução de conflitos, com círculos restaurativos e justiça transformativa. A justiça transformativa proporciona uma boa abordagem, ligada aos nossos valores ideológicos e orientada para temas como a responsabilidade e a prestação de contas, que devem ser sempre a base da nossa organização. Aprendemos que a organização é uma luta em si mesma, e que contradições, conflitos e desafios surgirão sempre na nossa organização. Na ausência de estruturas hierárquicas, a forma como tomamos decisões e como resolvemos conflitos é uma parte muito importante da nossa organização.
Talvez relacionado com o acima exposto, como é que os conflitos interpessoais são resolvidos em geral no Nordeste da Síria? Vimos várias perspectivas abstractas, mas poucos relatos reais sobre os processos de justiça e equidade. Como são tratadas essas questões? Os vários grupos autónomos têm a liberdade de lidar com elas “internamente”? As resoluções de conflitos são centralizadas?
Existem atualmente dois sistemas de justiça em jogo no Nordeste da Síria. Um semelhante à justiça estatal e outro mais baseado na justiça comunitária. O sistema comunitário consiste em comités de consenso camponês e conselhos locais que são frequentemente compostos por líderes religiosos e anciãos da comunidade. Estes sistemas incentivam as pessoas a assumirem a responsabilidade e o controlo dos seus próprios problemas. No entanto, infelizmente, este sistema não está a funcionar muito bem. Por este motivo, muitos conflitos continuam a ser resolvidos através do sistema de justiça estatal que é metade herdado do regime de Al-Assad e metade reorganizado pela Administração Autónoma. É uma mistura estranha que funciona com as ferramentas disponíveis numa situação difícil. O sindicato dos advogados desempenhou um papel importante, assim como o esforço para redigir o “contrato social” da Administração Autónoma do Norte e Este da Síria (AANES), uma espécie de constituição que é revisitada de tempos a tempos em discussões com diferentes organizações políticas e sociais.
As razões que levaram a Administração Autónoma a fazer mais esforços para reorganizar o sistema jurídico geral em vez de promover os conselhos de justiça comunitários não são muito claras para nós. Sugerimos que fale diretamente com a comissão de justiça da AANES, que poderá responder melhor a essa questão. Para além destas, existem também as estruturas autónomas das mulheres, como as casas das mulheres (mala jin) e o direito das mulheres. Estas estruturas desempenharam e desempenham um papel importante na resolução dos problemas relacionados com o género e na procura de soluções para os conflitos familiares que afectam as mulheres (casamento, divórcio, abusos, etc.).
Os conselhos, comités, comunas e organizações autónomas têm algum grau de liberdade para lidar com os conflitos “internamente”. A forma exacta como é abordado e se as pessoas envolvem o sistema jurídico estatal depende da natureza e da dimensão do conflito, bem como das pessoas e dos grupos envolvidos. No caso de crimes com grande impacto social, como assassinatos brutais ou traição organizada (fornecer informações à Turquia que são utilizadas para assassinar revolucionários, ajudar o ISIS a planear e realizar ataques), têm sido realizados julgamentos populares. Estes julgamentos reúnem diferentes representantes da comunidade social, especialmente os mais afectados pelo crime julgado, e funcionam como júri popular para decidir a pena.
As razões que levaram a Administração Autónoma a fazer mais esforços para reorganizar o sistema jurídico geral em vez de promover os conselhos de justiça comunitários não são muito claras para nós
Para a nossa organização e para as organizações na Europa, pensamos que é importante compreendermos o valor da justiça transformadora e que desenvolvamos capacidades para começar a oferecer alternativas ao sistema de “justiça” legal, que é uma mentira punitiva racista e capacitista que está profundamente ligada ao poder do Estado-nação. O tema da justiça transformadora tem estado em cima da mesa nos círculos de esquerda na Europa há já algum tempo. Vemos que está agora a passar lentamente para uma fase mais prática. Comecemos com pequenos ajustes práticos, assim que começarmos a ganhar algumas experiências da vida quotidiana, podemos e devemos complementá-las com alguma leitura/estudo/teoria. A resolução de conflitos não se aprende nos livros, os seus fundamentos só podem ser aprendidos na prática, os livros serão muito úteis para nos aperfeiçoar, mas só se já estivermos a pô-los em prática. Teremos de cometer muitos erros, e isso é ótimo. Temos muito que aprender com os sistemas de “justiça” impostos pelo Estado. Estamos a fazer um começo imperfeito, utilizando ferramentas como o tekmîl, os círculos restaurativos e as estruturas autónomas de mulheres para desenvolver este processo.
Qual é a situação atual da arte e da auto-expressão em Rojava? Tem havido oportunidade e espaço para as pessoas poderem atuar, criar ou mostrar criações artísticas? Como é que isso é recebido? Como é que a mudança de facetas do conflito a afectou?
TevgeraÇand û Hûner (Tev-çand, a organização da arte e da cultura) é uma coordenação de todos os centros de arte e cultura, presentes em todas as cidades. A maioria destes centros tem diferentes grupos, como dança, música, teatro, cinema, pintura, literatura, escultura, etc. Promovem sobretudo a arte ligada à cultura, à língua e à identidade curdas. Cada grupo étnico é encorajado a promover a sua própria arte e cultura tradicionais, abrindo simultaneamente espaço para outras formas de arte fora da tradição folclórica. Tev-çand tem uma abordagem política da arte, encarando-a como um veículo para partilhar e divulgar os valores da revolução. Alguns exemplos bem-sucedidos são o HunergehaWelat– com o seu canal no youtube que publica novas canções e videoclipes feitos em Rojava – ou o KominaFilm a Rojava – o comité de cinema que produziu vários filmes, curtas-metragens e clips. KominaFilm a Rojava publicou recentemente uma série sobre Rojava intitulada “EvinaKurd” (Amor Curdo).
Os grupos locais actuam frequentemente em celebrações locais, dias festivos e outros eventos culturais. Nos últimos anos, alguns desses grupos e artistas estão a ganhar experiência e a tornar-se mais profissionais, e começamos a ver a sua arte em diferentes teatros, exposições e eventos. A arte é vista como riqueza popular e cultural, e não há um processo de mercantilização em torno dela. O teatro, o cinema e a música são apresentados e partilhados gratuitamente, e nunca vimos nenhum evento cultural com entrada paga. Isto faz parte da abordagem política sobre ética e estética que é promovida. Para resumir, podemos simplesmente apontar os esforços para ligar a estética a valores políticos e éticos revolucionários. Esta abordagem desafia os padrões de beleza que a modernidade capitalista tenta impor, vendo a arte como um veículo de expressão do povo, da sociedade e dos seus valores. Muita arte está ligada à resistência contra o ISIS e o fascismo turco, com especial destaque para a resistência das mulheres e o YPJ, mas também para as raízes históricas e as lutas do povo curdo.
Nesta abordagem à arte, podemos ver uma mudança que a revolução trouxe, que talvez tenha começado mesmo antes de Rojava. O cinema curdo do século XX é muitas vezes trágico, sobre os massacres e o exílio que o povo curdo sofreu. O dengbêj, uma música/poesia tradicional, também está repleto de histórias de aldeias destruídas, famílias assassinadas e crianças órfãs. Foi neste novo século que a arte curda começou a refletir uma nova imagem. Uma imagem não tão centrada nos curdos apenas como vítimas de tragédias desumanas, mas também como actores da mudança. As canções do YPG e do YPJ a derrotar o ISIS ou os guerrilheiros que lutam nas montanhas, os novos filmes sobre a resistência em Sur ou em Kobanê, as grandes celebrações do Newroz (o Ano Novo curdo) são exemplos de um renascimento do povo curdo e da sua vontade de resistir. Não são apenas um povo cuja fé está a sofrer, são uma nação sem Estado, cujas terras foram ocupadas e cujas aldeias foram incendiadas. Aprenderam com outras lutas anticoloniais e com os movimentos revolucionários de libertação nacional e tomarão o seu destino nas suas mãos. Defenderão a sua terra e a sua cultura, construindo um futuro para as próximas gerações, com armas, mas também com música, com dança, com cinema.
Qual é a opinião do AT sobre o papel da religião, e como é que isso afectou a sua capacidade de se ligar e relacionar com as comunidades locais? Houve desafios ou mudanças de atitude por parte dos militantes? No Ocidente, temos dificuldade em separar o anticlericalismo da islamofobia e do eurocentrismo. Que lições retirou da sua inserção nas sociedades curda e árabe?
Para nós, a religião não é um problema quando está ligada ao povo e à ética, mas sim quando está ligada ao poder e ao domínio. É contra este exercício da autoridade que nos opomos, tal como também no que toca ao anti-clericalismo. Alguns anarquistas vieram para cá com antecedentes ateus e, quando nos perguntam sobre a nossa religião, é fácil responder que não temos religião. Mas esta resposta é muitas vezes entendida como se não tivéssemos ética, e também nos fez refletir sobre o facto de a maioria de nós, mesmo que não praticantes, ter sido criada numa cultura cristã.
Há esforços para construir um Islão democrático, olhando para o lado ético da religião islâmica e não tanto para a Sharia. Trata-se de um processo necessário para enfrentar as consequências do fundamentalismo islâmico levado a cabo como fascismo teocrático pelo ISIS. Embora, visto de fora, possa parecer que o ISIS já não existe, a luta contra a sua ideologia continua aqui.
Concordamos convosco que nós, no Ocidente, podemos fazer um mau trabalho ao separar o anti-clericalismo da islamofobia e do eurocentrismo. A sociedade em que estamos inseridos é esmagadoramente muçulmana (com pequenas minorias de outras crenças), quase toda a gente acredita no Corão, mesmo que nem todos se descrevam como muçulmanos praticantes. Esta realidade fundamenta o nosso trabalho com as pessoas aqui. Devemos compreender a importância que a religião tem para as pessoas e os camaradas locais. Saber um pouco, ou muito, sobre o Islão é muito útil quando discutimos com os camaradas locais. Argumentar a partir da religião a favor de uma perspetiva revolucionária é uma tática que se tem revelado bem sucedida. É necessário respeitar a convicção religiosa das pessoas, mas ao mesmo tempo também criticamos ou questionamos os camaradas quando isso os leva a tomar medidas que não estão de acordo com os valores revolucionários do Nordeste da Síria. Há esforços para construir um Islão democrático, olhando para o lado ético da religião islâmica e não tanto para a Sharia. Trata-se de um processo necessário para enfrentar as consequências do fundamentalismo islâmico levado a cabo como fascismo teocrático pelo ISIS. Embora, visto de fora, possa parecer que o ISIS já não existe, a luta contra a sua ideologia continua aqui. Em algumas regiões do Nordeste da Síria, a ideologia do ISIS ainda está muito difundida e será necessário tempo e esforço para que todos avancem para um Islão democrático.
Os movimentos anarquistas e os chamados movimentos revolucionários na Europa têm durante décadas lutado para encontrar algo que possa ultrapassar as nossas próprias fraquezas e pequenez, procurando métodos antigos e novos. Qual é a vossa perspetiva sobre isto? Também concordam ou acham que os movimentos se estão a limitar e, se sim, porquê? Falta de uso da violência insurrecional, falta de estruturas que dirijam a luta, falta de recursos, falta de convicção?
Este é um ponto e uma questão muito importantes que aqui levanta. Concordamos que os movimentos estão a limitar-se a si próprios. Para nós, a questão central é a falta de organizações que possam criar e promover perspectivas de objectivos a longo prazo, uma vez que, atualmente, vemos sobretudo grupos baseados na afinidade e com pensamento a curto prazo.
A onda de insurrecionalismo dos anos 90, especialmente em Itália, trouxe uma perspetiva de luta a curto prazo que parecia promover a eficácia. Em alguns aspectos, funcionou, mas fê-lo à custa de minar a capacidade de organização. A capacidade de organização é crucial. Ao tornarmo-nos uma organização, nós, enquanto TA, temos agora a capacidade de acumular experiência: não temos de começar constantemente de novo. Podemos também construir projectos e relações duradouros, podemos aprofundar a nossa compreensão e aprendizagem de outras organizações que lutaram e lutam. Não só a nível individual, mas também a nível organizacional. O que significa que esses conhecimentos e experiências deixam de estar apenas ligados a uma pessoa ou a uma célula ou grupo de afinidade, mas que toda a organização se apropria deles. Isto aumenta muito a nossa capacidade como organização.
Desenvolver-se como uma organização revolucionária não é fácil, já falámos sobre isso. Temos de romper com a mentalidade individualista liberal que está tão profundamente enraizada na socialização capitalista. As nossas sociedades estão organizadas em torno desses valores capitalistas e, para mudar isso, temos de desenvolver os nossos próprios valores e instituições sociais, para antecipar a sociedade que queremos. As coisas que menciona faltar nos movimentos anarquistas (estruturas para direcionar a luta, recursos, convicção, ação) podem muitas vezes estar ligadas à falta de organização. Se nos encontrarmos isolados, como indivíduos ou em pequenos grupos, a nossa capacidade de influenciar e mudar a sociedade à nossa volta diminui. Tal como podemos aprender muitas coisas em Rojava, também há muitas lições que podemos tirar das organizações anarquistas da américa latina. As ideias do “especifismo”, um quadro teórico orientado para o desenvolvimento de organizações anarquistas específicas, são o resultado de décadas de luta. Podemos rastreá-las até à proposta plataformista de Peter Arshinov e Nestor Maknho, mas desenvolvidas na prática pela Federacion Anarquista de Uruguay (FAU). Como anarquistas portugueses, terão fácil acesso aos materiais e textos desenvolvidos pelas organizações anarquistas brasileiras.
Recentemente, foram criticados o enfoque e os recursos dados pelas esquerdas ocidentais aos movimentos anarquistas nascentes na Ucrânia, que, sem verdadeiras estruturas autónomas e inseridos em exércitos estatistas, têm recebido generosos apoios e fundos, enquanto os movimentos não brancos têm lutado por uma fração desse apoio. Concorda com esta crítica?
Presumimos que se esteja a referir ao artigo “Anarchist who Fought in Rojava: Response to ‘No War But Class War’ Debate“, que pode ser encontrado no Abolition Media 3. Concordamos com o artigo de que a quantidade de recursos enviados para a Ucrânia pela esquerda ocidental é muito desproporcional com a quantidade de apoio material que os camaradas do Nordeste da Síria obtiveram, especialmente tendo em conta que a revolução aqui está tão explicitamente enraizada na ideologia e práxis revolucionária libertária, e onde isso é mais discutível para a Ucrânia, como o artigo apontou. «A solidariedade é algo que se pode segurar nas mãos», um slogan popularizado pelo grupo anti-imperialista KAK, ativo na Dinamarca nos anos 70, é uma afirmação em que nos podemos situar. Embora o Nordeste da Síria tenha recebido uma boa quantidade de imagens de solidariedade, campanhas de consciencialização, campanhas diplomáticas, etc., no que diz respeito ao apoio material, financeiro ou outro que podemos «ter nas mãos», a esquerda ocidental não lhe tem dado um esforço sério.
A Ucrânia está nas notícias e nós não estamos, nem estaremos, até uma nova invasão e, mesmo assim, receberemos apenas uma fração da atenção mediática que a Ucrânia está a receber.
Dito isto, a guerra na Ucrânia está a decorrer há pouco mais de um ano, a guerra em Rojava há mais de 10 anos. É claro que estas escalas de tempo também têm um efeito. A Ucrânia está nas notícias e nós não estamos, nem estaremos, até uma nova invasão e, mesmo assim, receberemos apenas uma fração da atenção mediática que a Ucrânia está a receber. Quando olhamos para além da Ucrânia e de Rojava, perguntamos: quem tem estado a olhar para a guerra genocida em Tigray ou para a recente guerra que se desenrola no Sudão? Quem é que tem estado a organizar o apoio material a esses conflitos? As forças de autodefesa do povo de Tigray têm uma longa tradição revolucionária, com um projeto semelhante às ideias do confederalismo democrático. No Sudão, assistimos recentemente a uma escalada militar, depois de grandes mobilizações e revoltas terem abalado o país, que contou com um notável movimento anarquista organizado, pouco comum na maioria dos países africanos. Mas poucos artigos são escritos sobre isso, e ainda menos livros anarquistas discutem esses conflitos. Também não é justo que esses movimentos tenham recebido pouca ou nenhuma cobertura mediática, e muito menos apoio material. Isto faz parte do colonialismo contra o qual estamos a tentar lutar. Para nós, esta é também uma razão para permanecer em Rojava, onde os valores do anticolonialismo estão muito vivos.
Voltando à Ucrânia, os anarquistas têm lutado desde o início do recente conflito, estiveram presentes na praça Maidan e tentaram organizar-se ali. Provavelmente este não é o lugar para discutir o quanto este movimento está enraizado no movimento histórico anarquista na Ucrânia, com o Exército Negro de Libertação dos Camponeses e a revolução Makhnovista, mas hoje em dia a presença dos anarquistas é crucial para questionar a narrativa nacionalista da extrema-direita, que tem sido uma presença dominante nos protestos na Ucrânia desde o início. Temos a responsabilidade, enquanto anarquistas, de ocupar o nosso lugar nestes momentos, não podemos deixar todo o espaço à extrema-direita, porque se o fizermos eles ocupam-no. A situação atual na Ucrânia não é uma revolução alinhada com os nossos princípios, mas a nossa tarefa é dar visibilidade aos nossos princípios e torná-los conhecidos. Podemos citar Malatesta quando diz que «somos, em todo o caso, uma das forças que actuam na sociedade, e a história avançará, como sempre, nas direcções resultantes de todas as forças».
Historicamente, a guerra e a revolução têm uma ligação importante. Os ambientes de guerra fazem com que a autoridade do Estado tropece e seja difusa nalguns locais. O Estado já não está sempre presente para fornecer infra-estruturas e recursos às populações. Isto significa que existem muitas vezes janelas de oportunidade para ajudar na auto-organização e na gestão das pessoas, inicialmente em linhas de ajuda mútua e solidariedade. Esta é uma situação em que trazer a nossa ideologia e aplicá-la na prática com as pessoas pode ser uma forma útil de fortalecer a nossa tendência, como diz Malatesta.
Apoiamos os nossos camaradas anarquistas que lutam na Ucrânia, temos uma abordagem de solidariedade crítica para com o povo ucraniano e pretendemos envolver-nos nas contradições que este suscita e não cair numa abordagem binária e dogmática. Gostaríamos também de chamar a vossa atenção para o camarada Leshiy e o camarada Ciya, ambos passaram algum tempo no Nordeste da Síria e caíram nas linhas da frente ucranianas juntamente com outros camaradas anarquistas nas linhas da frente ucranianas. Lamentamos esta perda e pretendemos aprender com as suas vidas e decisões. Eles também nos mostram uma forma de análise e consideração matizada que tem espaço para as contradições que inevitavelmente surgem quando sujamos as mãos na revolução. Concordámos com o camarada que escreveu o artigo que é muito fácil ser purista e julgar as decisões tomadas na Ucrânia e em Rojava a partir de uma poltrona confortável. A participação numa revolução real ou num conflito armado tornará rapidamente claro que muitas vezes não existem soluções «limpas» ou claras e que ser um revolucionário em ação, e não apenas em palavras, significa adquirir uma compreensão profunda das análises e contradições matizadas.
Como podemos ajudar-vos, materialmente ou de outra forma?
Os principais pontos em que podemos ver a vossa ajuda para nos ajudar são: a) desenvolvimento ideológico; b) rede empenhada; c) resistência à repressão ;d) militantes; e) recursos.
O desenvolvimento ideológico da luta anarquista é a base para avançarmos. Vemos que chegámos a um ponto em que nos apercebemos, enquanto anarquistas europeus, que a organização baseada na afinidade por si só não é suficiente. Precisamos de uma organização anarquista ou de estruturas que nos mantenham juntos, não apenas com base na afinidade pessoal, mas de uma forma organizada, para podermos pensar a longo prazo e desenvolver uma estratégia mais alargada. Ao desenvolver a ideologia e a praxis anarquista no nosso contexto atual, fortalecemo-nos uns aos outros.
O Estado já não está sempre presente para fornecer infra-estruturas e recursos às populações. Isto significa que existem muitas vezes janelas de oportunidade para ajudar na auto-organização e na gestão das pessoas, inicialmente em linhas de ajuda mútua e solidariedade.
As redes empenhadas são uma base para o intercâmbio de discussões, projectos, recursos e experiências. Vemos isso na forma de construir relações de longo prazo com organizações sólidas, e esse intercâmbio pode ocorrer através de visitas e troca de militantes, bem como outras formas de comunicação. Relacionado com o ponto sobre o desenvolvimento ideológico, isto inclui ler e discutir as declarações e cartas uns dos outros, aprender com as experiências dos outros e dar feedback, propostas e críticas sobre elas.
As redes conduzem também à resistência face à repressão. Nos últimos anos, os militantes de Rojava e do movimento curdo em geral têm sido cada vez mais criminalizados. Muitos camaradas estão a passar algum tempo na prisão ou têm outros tipos de problemas legais. Precisamos de anarquistas em todo o lado para fazer frente a esta criminalização.
Precisamos de mais militantes que se juntem a nós em Rojava para lutar e combater aqui. Também há oportunidade para os camaradas já organizados na Europa se juntarem a nós aqui, mantendo-se ligados à sua organização europeia. Na verdade, gostaríamos que isso acontecesse. Vemos isto como uma forma potencial de fortalecer os laços entre a nossa organização e as organizações anarquistas na Europa.
No lado diretamente material, precisamos de dinheiro. Uma vez que os materiais de que precisamos mudam de tempos a tempos, enviar materiais diretamente pode ser um pouco complicado, embora possamos falar sobre isso se houver um desejo de fazer algo assim. Com o dinheiro diretamente, podemos afectá-lo às necessidades mais prementes e fazer ajustes quando necessário nesta situação em constante mudança em que nos encontramos.
Texto de União Libertária [uniao-libertaria@riseup.net]
Notas:
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