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Lendo: Barroso – A Guerra das Minas

Barroso – A Guerra das Minas

Barroso – A Guerra das Minas


Em 31 de Maio, a ampliação da Mina do Barroso obteve, por parte da Agência Portuguesa do Ambiente, uma Declaração de Impacto Ambiental favorável, ainda que condicionada ao cumprimento de um conjunto de condições. As populações consideraram isto uma declaração de guerra e reagiram de imediato, prometendo a continuação e o endurecimento da luta. Pela mesma altura, anunciava-se o terceiro Acampamento em Defesa do Barroso e a abertura, em 3 de Junho, de A Sachola, um espaço de informação e convívio anti-extractivista em Covas do Barroso.

De rejeição em rejeição até à aprovação final

Comecemos por lembrar que a área Barroso–Alvão não tinha sido «acolhida» na Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), uma vez que, «estando em curso procedimentos de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) das concessões mineiras “Mina do Barroso” (Boticas) e “Romano” (Montalegre) e não se conhecendo as respectivas conclusões à data da presente AAE às áreas potenciais de lítio, considerou-se que a área potencial em causa, nessa região, não deveria ser acolhida nesta AAE», conforme explicou, na altura, a Direcção Geral de Energia e Geologia (DGEG). Ou seja, o projecto de ampliação da mina do Barroso ficou fora do processo de Avaliação Ambiental Estratégica, por existir ali uma exploração desde 2004.

A concessão da exploração foi adquirida pela Savannah Resources em 2017 e a AIA para a sua ampliação foi iniciada em Julho de 2020. Pretendia-se explorar lítio a céu aberto numa área de 70,6 hectares ao longo de uma concessão de 593 hectares, num projecto de 17 anos, 12 dos quais de exploração. Em 2022, este projecto sofreu um primeiro parecer negativo da Comissão de Avaliação (CA) da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Na sua versão original, «o projecto provocaria impactos negativos significativos a muito significativos, em alguns casos não minimizáveis, ao nível de factores ambientais determinantes para a avaliação, como sejam os recursos hídricos, os sistemas ecológicos, a paisagem e a socioeconomia, concluindo, assim, no sentido desfavorável», de acordo com a APA.

Perante essa realidade, «a autoridade de AIA, em articulação com o proponente, ponderou a possibilidade e pertinência de ser promovida a modificação do projecto, conforme previsto no n.º 2 e seguintes do artigo 16º do Decreto-Lei n.º 151-B/2013, de 31 de Outubro, na sua redacção actual. Tendo o proponente manifestado interesse em proceder à modificação do projecto em causa, no sentido de serem definidas soluções viáveis para evitar ou reduzir os efeitos significativos no ambiente, identificados pela CA, o referido procedimento suspendeu-se (…). A 16 de Março de 2023, o proponente submeteu os elementos reformulados do projecto e o relatório síntese (…). Assim, e conforme previsto no regime jurídico de AIA, foi solicitada nova pronúncia à CA e promovido um novo período de consulta pública». Uma consulta pública que teve o impressionante número de 912 participações submetidas através do portal Participa, «sendo a esmagadora maioria das exposições contrárias ao projecto», conforme se pode ler na própria Declaração de Impacto Ambiental (DIA). Ainda assim, «a APA, enquanto autoridade de avaliação de impacto ambiental, propôs a emissão de Declaração de Impacto Ambiente Favorável Condicionada ao cumprimento de um conjunto de condições».

Essas condições incluem a interdição de captação de água no rio Covas, a criação de um corredor de conectividade que permita e promova a circulação dos lobos entre as alcateias mais afectadas pelo projecto, a redefinição do traçado do projecto que permite «uma redução da área total de solo afectada permanentemente e a minimização dos efeitos nas linhas de água», o pagamento de royalties por parte da empresa ao município de Boticas, ou a limitação de parte dos trabalhos ao horário diurno.

Apesar de tudo isto, a própria agência assume que haverá consequências dificilmente negligenciáveis: «Considera-se que o projecto induz impactos negativos significativos e muito significativos sobre diversas vertentes, sobretudo ao nível da alteração do relevo e da rede hidrográfica, e da perda de vegetação, que se traduzem em impactos estruturais e funcionais e, consequentemente, em impactos de natureza visual», lê-se no documento de Título Único Ambiental emitido a 31 de Maio pela APA. Em entrevista ao Público, Nuno Lacasta, presidente da agência, acaba por assumir que a exploração de lítio pode pôr em risco a classificação de Património Agrícola Mundial, dada pela FAO, não prometendo mais do que «trabalhar no sentido de evitar a perda desse selo».

Conforme diz a própria empresa no seu comunicado do mesmo dia 31 de Maio, «esta é a primeira vez que um projeto de lítio em Portugal tem uma DIA favorável». Pois bem, uma DIA favorável permite à Savannah avançar «com os principais estudos económicos do projecto, incluindo a publicação de um estudo actualizado de definição do âmbito, no início do segundo semestre de 2023 e recomeçar o Estudo de Viabilidade Definitivo». Ou seja, «o processo de licenciamento ambiental do projecto vai continuar» e a Savannah espera «apresentar à APA, dentro de nove a 12 meses, o Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução (RECAPE), que incluirá os planos finais para o projecto com todas as condições da DIA, juntamente com as medidas e planos de monitorização ambiental a implementar durante as fases de construção e operação, de forma a cumprir todos os critérios estabelecidos pela DIA».

O combate não é por uma mineração verde. Nunca foi. Sempre foi contra as minas e é cada vez mais contra as minas e o seu mundo.

Declaração de guerra

Todas estas preocupações sócio-ecológicas, por muito etéreas e propagandísticas que soem, são já resultado duma luta popular que nasceu local, no sentido de ter surgido em vários locais sob ameaça mineira, que se alargou a todo o território e mesmo além fronteiras, que, depois de muitas dúvidas e hesitações, conquistou os movimentos sociais e ecologistas e que, com tudo isto, se tornou incontornável e ameaçadora para os sonhos extractivistas. Todo o destaque que é dado a estas questões, todo o foco que o Estado e as empresas de mineração dão a estes cuidados são, não nos enganemos, conquistas do movimento que se levantou contras as minas.

No entanto, se nem a retórica nem a compra de consciências funcionaram com estas populações, porque iriam estas contrapartidas ser suficientes? O combate não é por uma mineração verde. Nunca foi. Sempre foi contra as minas e é cada vez mais contra as minas e o seu mundo. O Barroso e, com ele, todas as zonas sob ameaça, tanto como deixar de ser «zona de sacrifício verde», pretende ser «zona a defender». E, com o andar da luta, com a necessidade de ir respondendo a críticas e afinando argumentos, ou seja, de pensar para além do próprio quintal, sente-se, de forma mais e mais frequente, que é de uma batalha civilizacional que se trata. Formas de vida que não só se recusam a desaparecer como começam a propor-se enquanto exemplo de existência sustentável, passível de ser replicada pelo planeta.

A guerra estava iminente e a APA acabou por declará-la ao viabilizar o projecto de ampliação da Mina do Barroso. Mesmo o jargão militar começa a surgir, ainda que, por vezes, entre aspas. Depois de relembrar que «o Barroso é o alvo privilegiado da mineração: estamos a falar de 15 projetos mineiros ativos (7 pedidos em curso e 8 contratos assinados) que representam aproximadamente 8500 hectares, ou seja 7,5% da área total do Barroso», o movimento Povo e Natureza do Barroso (PNB) afirma: «a Savannah ganha assim uma batalha, mas não a “guerra”. Perdemos, é certo, uma batalha, mas não duvidemos de que nós venceremos “a guerra”!». Nelson Gomes, da associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB), afirmando que «não percebemos como é que, para despoluir, temos que destruir florestas, destruir o meio ambiente, destruir cursos de água, destruir a vida das populações que cá vivem», usa um jargão semelhante: «Não vamos desistir, a guerra começa agora!».

Em entrevista ao Público, Nelson Esteves, da mesma associação, afirmou-se perplexo e indignado «com a decisão da APA, que deveria ser a primeira a defender o ambiente, a qualidade das águas», acrescentando que «as alterações [do projecto] foram mínimas, as cortas [onde o minério vai ser explorado] mantêm-se no mesmo sítio, a proximidade às casas continua a ser a mesma, a proximidade aos rios continua a ser a mesma, é claro que isso não é compatível com a vida das pessoas. Mais uma vez, a APA cedeu a interesses financeiros e económicos e ignorou completamente a população».

O Movimento Não às Minas – Montalegre, por seu lado, aponta que «a cumplicidade é tal que, numa entrevista à RTP, o próprio Diretor da APA, o Sr. Nuno Lacasta, utiliza o termos “NÓS” para se referir à intervenção da Savannah! “Nós vamos reencher a vala”, diz ele! Nós quem? A APA? A Savannah? O contribuinte? Será um lapso premonitório? Pois, se calhar, como também já é habitual, vai ser o Zé Povinho que vai pagar pela “reabilitação” da mina!».

Já para Fernando Quiroga, presidente da Câmara Municipal de Boticas, que há muito se opõe à mineração a céu aberto, «este projecto é um remendo do primeiro projecto», sendo, por isso, inaceitável: «A nossa posição é que este projecto não avance. Vou reunir-me com as equipas que nos estão a assessorar neste processo, ver agora as possibilidades de recursos quer em instâncias nacionais, quer em internacionais. Tudo o que estiver ao nosso alcance iremos fazê-lo». Até porque Fernando Queiroga não confia na capacidade de fiscalização das autoridades competentes: «Sabemos que os organismos do Estado não fiscalizam coisíssima nenhuma».

«O projecto nunca foi transparente atempadamente para que possamos analisar todos os procedimentos», refere ainda o autarca. «A APA não teve em conta a posição dos organismos quer da câmara municipal, quer das juntas da freguesia, quer da população, nem teve em conta a distinção única do país que é a classificação de Património Agrícola Mundial, juntamente com Montalegre. Não é por uma meia dúzia de trocos que vamos dar o OK a um projecto tão nocivo».

No Acampamento, haverá «actividades para informar e sensibilizar, mas também para fortalecer a nossa rede de resistência.

Sachola de resistência

Por estes dias, a vida da resistência contra as minas a céu aberto ganhou novos capítulos. Ficou a saber-se que, entre os dias 10 e 15 de agosto de 2023, as portas da Quinta do Cruzeiro se voltam a abrir para o terceiro Acampamento em Defesa do Barroso, desta vez com o mote: «Soam as enxadas da resistência. O Barroso está de pé, em luta!». O desafio, este ano, é «inundar as ruas das aldeias com a nossa alegria, energia e vivacidade. Serão cinco dias de partilha com as serras, as águas, os montes e com a vida que queremos proteger». No Acampamento, haverá «actividades para informar e sensibilizar, mas também para fortalecer a nossa rede de resistência. Queremos muito contar-vos a nossa história, apresentar-vos as nossas gentes e mostrar-vos o imenso património histórico e natural que herdámos — e que lutamos para proteger». Cinco dias longe de ambientes urbanos, porque «é aqui, onde querem destruir o mundo verde do Barroso para salvar o mundo do crescimento infinito, que queremos confrontar e desconstruir a ideia de que a transição energética tem de passar pelo extractivismo desenfreado, pela transformação da rede da vida em recursos a esgotar, pela despossessão dos territórios rurais e pela procura incessante de lucros».

A importância destes Acampamentos pode ser reconhecida numa outra notícia com que fomos brindados nos primeiros dias de Junho: com uma «vontade colectiva de caminhar rumo a um Barroso onde caibam muitos mundos», algumas das pessoas que foram ao primeiro Acampamento, onde respiraram, pela primeira vez, «a vida que emana destas serras», e para quem «o regresso se tornou uma inevitabilidade», abriram, em Covas do Barroso, A Sachola, um espaço que ocupa agora a antiga escola primária de Covas, cedido pelo Conselho Diretivo dos Baldios. Nas suas palavras, «o caminho d’A Sachola avança ao ritmo dos passos de todes. Queremos um espaço construído entre quem habita o território e quem com ele se solidariza. Vemo-la como um espaço comum, de aprendizagem, de trocas, de discussões, de planeamento, de cura. Vemo-la como um espaço aberto, para todes que queiram semear, regar e cuidar a vida que nos querem tirar. Vemo-la como um espaço livre, onde a raiva, a indignação e a rebelião possam rugir, sem atropelar os ritmos da terra».

É o lítio, estúpido

O extractivismo apresenta-se com um manto verde que encobre todos os tons de cinza e negro de que é feito. O seu discurso baseia-se em silogismos que partem de premissas, no mínimo, discutíveis. Uma delas é a de que é possível continuar a aumentar exponencialmente o consumo de energia, desde que as fontes não sejam fósseis. Uma ideia frágil, que não escapa ao teste matemático que desafia a que se explique como se pode crescer infinitamente num planeta com recursos finitos. Outra das premissas é que, sem lítio, não há baterias. Tendo em conta a quantidade de alternativas que foram surgindo, a esta ideia falta suporte científico. Mais do que uma certeza, soa a estratégia de marketing, frase impactante dita por quem tem mercadoria para vender.

E aqui chegamos a outra das premissas: as maiores reservas conhecidas de lítio na Europa encontram-se em Portugal. Nos seus relatórios, a própria APA fala apenas na «potencialidade de ocorrência deste mineral no nosso território». No entanto, o que fica da espuma dos dias são as palavras de António Costa, replicadas em todos os meios e devidamente legitimadas com Polígrafos e Provas dos Factos: «Portugal tem a maior reserva de lítio da Europa e a oitava maior do mundo, com mais de 60 mil toneladas de reservas».

Quanto a isto, Carlos Leal Gomes, professor da Universidade do Minho e especialista em lítio, disse à Euronews: «Nós cá temos muito essa coisa de que é o quinto lugar, é o sexto lugar, é o oitavo lugar… isso é exatamente igual a nada. Só se sabe o lugar quando se começa a explorar». Ou seja, «estes números, nesta fase, são números indicativos, porque as reservas calculadas provadas são muito poucas». E, sobre o caso concreto da Mina do Barroso, Carlos Leal Gomes acrescenta: «Como eventual mina para a produção de concentrados de lítio não é nada de extraordinário, nem sequer em quantitativos de reservas, nem nos minérios, sobretudo nos minérios que tem. Os minérios não são do melhor que há».


Written by

Teófilo Fagundes

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