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Mercado regulado de escravos legais


Mercado regulado de escravos legais


Mercado regulado de escravos legais


A visão que Carlos Moedas e Luís Montenegro reservam para a imigração, que soa desumana e utilitarista, é afinal uma política já em plena implementação na União Europeia através das Parcerias de Talento, que transformam a Frontex numa espécie de centro de emprego.

De forma a «ajudar a resolver a escassez de competências», a Comissão Europeia anunciava, em comunicado de imprensa de 11 de Junho de 2021, o lançamento da iniciativa Parcerias de Talento [Talent Partnerships], um dos instrumentos do Pacto sobre Migrações e Asilo, que a presidência da UE, na altura portuguesa, catalogava de «fundamental para uma melhor gestão das migrações por parte da UE».

Perante vagas cada vez maiores de pessoas em busca de uma vida melhor, por um lado, e, por outro, confrontada com uma escassez de mão de obra também ela cavalgante, a UE reage de forma talvez previsível no carácter pós-colonial: reforça o arame farpado das fronteiras, transformando-o num crivo que deixa passar apenas quem tem as «competências» necessárias para servir a Sociedade Europeia devolve à sua sorte, talvez morte, todos os restantes.

As pressões austríacas para que o orçamento comunitário financie a construção de fronteiras físicas entre a Bulgária e a Turquia, ou a disponibilidade de Von der Leyen para «fornecer infraestruturas e equipamentos como drones, radares e outros meios de vigilância, ainda falando da mesma fronteira, são apenas dois exemplos recentes da primeira parte desta estratégia. As Talent Partnerships, uma escolha a dedo dos Estados com quem cooperar e também das pessoas a quem abrir a porta, com tudo o que isso tem de injusto e desumano, são o rosto da segunda parte. Com uma mão fecha-se a vedação, com a outra escolhe-se quem interessa ao mercado laboral europeu.

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O mercado de trabalho é quem mais ordena

O léxico da UE é bastante criativo e é sempre necessário contextualizar as suas expressões. Neste caso concreto, a palavra «parceria» vem carregada com o significado tradicional do resultado da relação, necessariamente assimétrica, entre um bloco económico poderoso e um país mais pobre e com muito menos poder. A ideia-base é que há um ganho triplo: ganha a UE (que recebe gente de que precisa), ganha o país com quem a UE fez a tal «parceria» (que envia nacionais seus para terem empregos e/ou formação num país da UE) e ganham os migrantes (que ficam com emprego). Talvez seja necessário desconstruir este mundo perfeito dos corredores de Bruxelas.

Na tal cerimónia de lançamento da iniciativa Parcerias de Talento, o comunicado de imprensa da Comissão era límpido: «Ao fazerem corresponder as competências de trabalhadores de países de fora da UE com as necessidades do mercado de trabalho dentro da UE, as Parcerias de Talento devem tornar-se uma parte essencial das relações da UE com países parceiros quanto à gestão conjunta da migração». Não tem a ver com ganhos para o «país parceiro» nem para os seus nacionais. Tem a ver com ganhos para o «mercado de trabalho» da União Europeia. A 27 de Abril de 2022, no comunicado de imprensa em que anunciou o lançamento das primeiras Parcerias (com o Egipto, Marrocos e a Tunísia), o foco não é tão mono-temático mas, ainda assim, não se vislumbra nada sobre seres humanos: estas primeiras iniciativas «irão beneficiar a economia da UE» e «fortalecer a cooperação com países de fora da UE». Mentira minha! Na verdade, fala-se de pessoas: o terceiro objectivo, quiçá o maior, uma vez que é o único que tem direito a ser adjectivado de «longo prazo», é o de «melhorar a gestão global da migração».

Ainda a 27 de Abril, a Comissão emitia uma comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, um texto intitulado “Atrair competências e talentos para a UE”, onde se podem ler três parágrafos que demonstram à saciedade que ninguém em Bruxelas está a pensar em alguma coisa para além das suas próprias necessidades:

«Na sequência dos retrocessos causados pela COVID-19, o mercado de trabalho europeu está globalmente a regressar aos níveis anteriores à pandemia: o mercado de trabalho da UE continua a recuperar e necessita de novos trabalhadores, nomeadamente nos sectores com carências estruturais, como o turismo, a hotelaria, as TI, a saúde e a logística. (…) A escassez de mão de obra em determinados sectores é maior do que antes da pandemia».

«Para apoiar a dupla transição [ecológica e digital], a migração laboral da UE deve ser orientada para o futuro. É provável que sectores como a construção, a energia, a indústria transformadora e os transportes sejam afectados pela transição para uma economia com impacto neutro no clima, exigindo mão de obra adicional e novas competências».

«Além disso, a UE tem de fazer face à escassez de profissionais em determinados sectores e regiões, abrangendo todos os níveis de competências: os empregadores da UE enfrentam carências em cerca de 28 profissões que empregavam 14 % da mão de obra da UE em 2020. Estas profissões incluem canalizadores e instaladores de tubagens, enfermeiros, analistas de sistemas, soldadores, motoristas de veículos pesados de mercadorias, engenheiros civis e programadores de software».

Tão importante é esta tendência de escolher migrantes como quem faz compras num supermercado, que a Comissão, «na sequência do anúncio feito pela Presidente Ursula von der Leyen no seu discurso de 2022» sobre o Estado da União, «adoptou a proposta de decisão ao Parlamento Europeu e ao Conselho da União para que 2023 seja o Ano Europeu das Competências». Assim se lia no site do Ministério dos Negócios Estrangeiros português. Um dos objectivos é exactamente «atrair pessoas de países terceiros com as competências de que a UE necessita».

A 10 de Janeiro de 2023, o site oficial da Comissão Europeia noticiava: «A Comissária Europeia dos Assuntos Internos, Ylva Johansson, e o Comissário do Emprego e Direitos Sociais, Nicolas Schmit, foram anfitriões da primeira reunião da Plataforma de Migração Laboral, uma espécie de «classificados», também ela com o intuito de «atrair competências e talentos muito necessários de países fora da UE».

Tão importante é esta tendência de escolher migrantes como quem faz compras num supermercado, que a Comissão «adoptou a proposta de decisão ao Parlamento Europeu e ao Conselho da União para que 2023 seja o Ano Europeu das Competências»

Discriminações

Protegido por um manto diáfano de «desenvolvimento económico», «gestão humana de migrações» e «valores europeus», a UE reforça a sua capacidade de definir a divisão mundial de trabalho, ao mesmo tempo que utiliza a gestão de fronteiras já não apenas para repressão mas sobretudo para responder a necessidades do seu próprio mercado. Fá-lo privilegiando as pessoas de que «necessita» sobre as que lhe são dispensáveis, acrescentando a essa discriminação a de dar prioridade a nacionais de determinados países sobre outros.

Por outro lado, estes acordos bilaterais coexistem com a legislação geral de migração laboral e acabam por multiplicar os procedimentos, os regulamentos, os estatutos que têm de ser percorridos pelos trabalhadores, pelos empregadores e pelas autoridades ligadas à imigração. Tudo, calcula-se, será posteriormente descontado no ganho mensal do trabalhador, que significa um novo grau de discriminação: a salarial em relação aos nacionais dos países da UE onde trabalha. Para além de que tem como resultado um quarto nível de discriminação, entre as várias pessoas dos vários «países parceiros», uma vez que trabalhadores de países diferentes poderão acabar por adquirir conjuntos de direitos também diferentes, em função do acordo bilateral que tenha sido firmado com o seu respectivo país. Finalmente, colocar um rótulo definitivo num trabalhador, deixá-lo existir unicamente enquanto agricultor, ou enfermeiro, por exemplo, mais do que um impedimento à mobilidade laboral é um ataque fortíssimo à liberdade individual de quem se decide «deixar entrar».

Nestas parcerias, cada emprego ou oportunidade de estudo na UE é temporária. De acordo com os documentos oficiais, o que se pretende é que, com o regresso da pessoa ao seu país de origem, com nova formação e/ou experiência, esse país terá um ganho significativo, melhorando as competências dos seus cidadãos sem gastos adicionais. No entanto, sem garantia de emprego quando voltarem a casa, muitas destas pessoas acabarão por tentar ficar pela Europa, acabando por aprofundar a «fuga de cérebros», principalmente nos domínios e durante o tempo que beneficiarem a UE. Na verdade, na comunicação sobre as Parcerias de Talento nada é dito sobre a possibilidade de os participantes escolherem o seu caminho académico ou profissional durante o tempo de mobilidade, ou de decidirem ficar na UE para seguirem uma carreira.

É de realçar que os programas temporários aumentam consideravelmente os riscos de exploração laboral, mais ainda quando os migrantes confiam o seu alojamento aos seus empregadores, para além de que estar empregado por um período pequeno não permite a familiarização com os acordos laborais, com os procedimentos administrativos e legais, coartando assim a capacidade de organização colectiva e de recurso a mecanismos de queixa e reclamação.

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Portem-se bem

Os parceiros são, já se disse, escolhidos a dedo. E, sem que isso seja assumido, tudo indica que funcionarão como «recompensa» para os países que se «portarem bem», ou seja, que sejam cooperantes em termos de repatriamentos, tanto de nacionais seus como de outras pessoas de passagem pelo seu território. Do outro lado da moeda, ficam os países menos cooperantes, que vêm os seus cidadãos com ainda menos canais legais de migração para a Europa, uma ideia que já vem, lembre-se, pelo menos desde 2019, quando a reforma do Código de Vistos introduziu um mecanismo específico que restringia a emissão de vistos a nacionais de países que não eram suficientemente cooperantes nos processos de repatriamentos. Os acordos feitos à medida com cada um dos parceiros e esta discriminação no tratamento que se reserva para cada país não têm a ver com «ajudar a resolver a escassez de competências». Têm a ver com a estratégia do pau e da cenoura.

Uma estratégia reforçada na recente cimeira do Conselho da Europa, do passado dia 9 de Fevereiro, onde líderes europeus e chefes de Estado discutiram (entre outras coisas) as migrações. Nessa cimeira ficou mais uma vez definido que é necessária uma acção rápida que garanta o repatriamento eficaz de pessoas para os seus países de origem, utilizando todos os meios possíveis, incluindo ameaças de corte no apoio ao desenvolvimento, promessas de acordos comerciais e uma política de vistos selectiva.

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #37, Março|Maio 2023.


Written by

Teófilo Fagundes

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