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Lendo: Casa Para Viver, ruas para lutar: uma luta onde muitas lutas convergem

Casa Para Viver, ruas para lutar: uma luta onde muitas lutas convergem

Casa Para Viver, ruas para lutar: uma luta onde muitas lutas convergem


A chamada questão da habitação tornou-se a mais intensa batalha da guerra que a especulação imobiliária e a mercantilização da habitação têm travado contra as comunidades que habitam as cidades. Embora os epicentros dessa guerra estejam em Lisboa e no Porto, o problema existe hoje em quase todas as cidades portuguesas. A incapacidade de ver suprida a necessidade básica que é ter uma habitação digna, a consequente deslocação de comunidades inteiras para fora dos seus bairros e da cidade onde viviam, a incapacidade de pagar prestações de créditos à habitação ou os inúmeros despejos que têm tido lugar, fazem parte dessa grande crise de habitação que toma de assalto, de forma sistémica, cada vez mais cidades. Esta crise torna-se ainda mais aguda porque se soma a uma crise de inflação através da qual aumentam os preços dos bens alimentares de primeira necessidade, da energia, do transporte, da saúde e à perda generalizada do poder de compra. E, como se não bastasse, grandes empresas da área da energia como a Galp, a EDP ou a REN ou bancos como a Caixa Geral de Depósitos, o Millenium ou o Santander, registam aumentos de lucros e começa a ganhar força a ideia de que são, justamente esses lucros, uma das razões para os valores da inflação.

O que se está a passar?



De acordo com um estudo publicado pelo jornal Público em fevereiro de 2023, onde é mapeada a taxa de esforço relativa à habitação nas freguesias portuguesas, quem receba o salário mínimo nacional de 760€ mensais e tencione alugar um T1 no concelho de Lisboa teria que aguentar taxas de esforço que oscilariam entre 50% e valores acima de 150%. Para essa pessoa (ou família), as freguesias mais próximas de Lisboa em que a taxa se situaria abaixo do valor de referência de 35% (aproximadamente um terço do rendimento) seria no Bombarral, a 72 quilómetros de Lisboa. Tendo em conta que, de acordo com o INE, famílias monoparentais representam cerca de 19% das estruturas familiares em Portugal e, dessas, 85.6% representam mães com filhos, existe uma alta probabilidade da situação descrita em cima ser aquela que enfrenta uma mulher solteira com dois filhos que trabalhe e necessite de viver na zona da grande Lisboa. Mas qual seria o panorama de um casal com dois filhos em que cada um receba 1000 euros e necessite de um T2 para viver? Nesse caso, estaríamos a falar de taxas de esforço de mais de 50% em qualquer freguesia de Lisboa o que os obrigaria a procurar habitação longe do centro. Quer isto dizer que a crise da habitação atinge hoje partes da população que nas últimas décadas tinham as suas necessidades de habitação garantidas e que agora retrocedem para uma situação de grande precariedade.

“Em comum, estes coletivos e estas lutas têm o facto de se auto-organizarem desde baixo com as comunidades (e não para as comunidades), com base na solidariedade e no apoio mútuo”

No entanto, há uma parte da população que sempre viveu nestas condições e para quem a crise tem sido permanente: populações migrantes, negras e comunidades ciganas que além do racismo têm dificuldades acrescidas em encontrar casa para arrendar, jovens que não conseguem sair da casa dos pais ou que a ela têm de voltar, pessoas idosas que se vêm obrigadas a abandonar casas ou bairros onde viveram uma vida inteira, mulheres com rendimentos baixos, pessoas presas que, por não terem onde morar, não podem beneficiar do acesso a precária ou saída antecipada, pessoas com identidades de género diversas, trabalhadores do sexo, pessoas que estão sob ameaça de despejo nas casas que tiveram de ocupar para viver, porque não podem mais pagar as prestações ao banco ou comunidades em bairros que estão em risco de demolição como é o caso do bairro do 2º Torrão na Trafaria, em Almada. De facto, o número de despejos em 2022 ultrapassou o número de 2019, antes da pandemia, e é expectável que este número aumente em 2023. O que isto nos mostra é que a crise da habitação já cá anda há vários anos.

Na rua e em luta

É neste contexto que diversos coletivos, comunidades e indivíduos responderam à chamada da Aliança Europeia para a Ação pelo direito à habitação e à cidade (European Action Coalition for the right to housing and to the city) para a organização dos Dias de Ação pela Habitação 2023, (Housing Action Days 2023) entre 24 de março e 2 de abril. Março é também o mês em que se realiza, desde 1990, a MIPIM, feira de imobiliário internacional, na qual os poderes locais eleitos se deslocam para fazer negócio com os territórios que administram. Este ano, entre a lista de participantes portugueses, destaca-se a Câmara Municipal do Porto. Em Portugal, a jornada de luta tem o seu ponto alto na manifestação Casa Para Viver (www.casaparaviver.pt | @manifcasaparaviver) no dia 1 de abril em Lisboa e no Porto. No manifesto do protesto pode ler-se: “No contexto da explosão dos preços das rendas e do crédito, do aumento drástico do custo de vida, da alimentação, das contas de energia, da pobreza e da precariedade, as nossas vidas foram atiradas para uma crise permanente. Não conseguimos pagar as nossas rendas ou suportar os nossos empréstimos bancários. Quem pode morar nas cidades portuguesas, hoje? As rendas em Portugal aumentaram 40% nos últimos cinco anos. Os preços das casas subiram 19% desde o ano passado. Os bancos, que penhoram as nossas casas, duplicaram os seus lucros. Enquanto isto, seguem-se os despejos e as expulsões das nossas casas para longe das nossas comunidades, ao mesmo tempo que florescem os negócios em torno do turismo, do alojamento local e da especulação.”

O manifesto aponta ainda o dedo ao atual modelo económico, a que está sujeita a habitação: “A desigualdade social no acesso à habitação e a degradação das condições de vida não são inevitáveis leis da natureza. São o resultado de vivermos num sistema capitalista que tem como objetivo a maximização do lucro em vez de procurar garantir as necessidades básicas a todas as pessoas e, por isso, trata a habitação como um negócio e não como um direito básico. Neste sistema político e económico têm-se seguido anos e anos de desinvestimento público na habitação, juntamente com outras políticas concretas de quem nos governa: políticas como os ‘vistos gold’, os ‘residentes não permanentes’, ‘as medidas de atração dos nómadas digitais’, as isenções fiscais ao investimento imobiliário e à construção e reabilitação urbana de luxo, o controlo privado e não democrático do planeamento urbano e a diminuição do poder das e dos inquilinos com a liberalização através das rendas não controladas, a indiferença sobre os milhares de casas vazias existentes nas nossas cidades. Em suma, um problema de ausência de redistribuição e de justiça social.”

Justamente num momento em que a crise da habitação domina o espaço público mediático e se convocam diversas ações de protesto, inclusive a manifestação Casa para Viver, o governo de António Costa apresentou, em fevereiro, o novo pacote Mais Habitação onde espera resolver a questão da habitação com o aumento da oferta, a simplificação do licenciamento, a dinamização do mercado de arrendamento, o fim da concessão de novos vistos gold, a regulação das rendas em novos contratos e o apoio às famílias. Em comunicado de imprensa, a organização da manifestação desmonta algumas destas medidas: “Sem um sistema de regulação de rendas, será o orçamento público, já cronicamente débil devido ao desinvestimento e à dívida pública, a subsidiar a especulação e os lucros de proprietários. Além disso, persistem os incentivos fiscais à especulação e ao investimento externo no imobiliário. Os incentivos à construção não só resultarão num impacto ambiental desnecessário como estão desligados da realidade — Portugal já é um dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com mais casas construídas por cada mil habitantes e isso não impediu a crise de habitação que se instalou. A falta de coragem política adequada à crise de habitação é um sintoma das ligações que vários governantes possuem com o lobby imobiliário.” Sobre isto pode-se ainda ler no manifesto que “o negócio imobiliário e o governo defendem o aumento da construção como solução para o problema da habitação. É falso! A história mostra que não é o aumento da oferta privada e da construção – que contribui para a emissão de gases com efeito de estufa – que vai baixar os preços. Eis a realidade portuguesa em 2023: ao mesmo tempo que existem 730 mil casas vazias no país, há 2 milhões de pessoas em situação de pobreza e mais de 50% da população em risco de miséria.”

Muitas lutas dentro da mesma luta



A manifestação Casa para Viver nasce de uma coordenação entre diversos movimentos, coletivos e comunidades. Mas só é possível ter lugar em 2023 porque nos últimos anos estes se têm organizado desde a base, de forma assembleária, horizontal e autónoma para levar a cabo processos de luta mas também organizar formas de solidariedade e resistência, prestação de apoio a indivíduos e comunidades em risco de despejo ou demolição das suas casas, que sofrem bullying dos proprietários, que estão a ser expulsos dos seus bairros ou que buscam informação sobre como se podem proteger nas suas relações com senhorios e proprietários.

Coletivos como a associação Habita! e o coletivo Stop Despejos, em Lisboa, ou o coletivo Habitação Hoje, no Porto, têm sido fundamentais para que uma crise de habitação perante a qual uma maioria da população se sente desempoderada se possa transformar numa reposta popular à especulação imobiliária, aos despejos e as demolições sem alternativa de habitação digna. Em comum, estes coletivos e estas lutas têm o facto de se auto-organizarem desde baixo com as comunidades (e não para as comunidades), com base na solidariedade e no apoio mútuo, praticando formas democráticas e assembleárias de decisão e a criação de espaços seguros e livres de violências para todos e todas. Inevitavelmente, estas práticas refletem-se também na organização da manifestação Casa para Viver: a ação organiza-se com os coletivos que estão presentes e é em assembleia, através da discussão e do consenso, que se decide os termos concretos em que a manifestação se vai desenvolver.

“A manifestação Casa para Viver será o momento em que diversas organizações, coletivos e lutas juntam forças e deixam de esperar pelos governos, e mudam a relação de forças e de poder para transformar a situação.”

No entanto, se a habitação é neste momento um problema transversal à sociedade, é de esperar que outras lutas, causas e movimentos se cruzem com esta luta. A luta pela habitação é também uma luta do movimento feminista porque são muitas vezes as mulheres que mais sofrem com a falta de uma casa digna, e em particular, mães em famílias monoparentais, desalojadas, ou vítimas de violência doméstica que perdem a sua morada, cuja guarda dos filhos é retirada pela CPCJ, num círculo vicioso e cumulativo de violência afetiva e psicológica. Cruza-se também com a questão energética e com o movimento pela justiça climática porque entre aqueles que têm casa existe uma grande parte que não consegue manter o conforto térmico das habitações, pagar as contas da eletricidade e gás, ou aceder a energias renováveis. Cruza-se com a luta contra o racismo pois muitas das comunidades que são alvo de demolições e despejos violentos, sem realojamento à vista, são comunidades racializadas como é o caso no Bairro 6 de Maio na Amadora, no Bairro do Talude em Loures, ou no Bairro do 2º Torrão na Trafaria. Cruza-se com tantas outras lutas e prova disso são os muitos coletivos, organizações e indivíduos que subscreveram já o manifesto (lista em atualização em www.casaparaviver.pt).

No dia 1 de abril, milhares de pessoas vão sair à rua em Lisboa, Porto e em outras cidades para responder à crise da habitação e construir uma solução para o seu problema comum. A manifestação Casa para Viver será o momento em que diversas organizações, coletivos e lutas juntam forças e deixam de esperar pelos governos, e mudam a relação de forças e de poder para transformar a situação. Mas, é também o momento de juntar lutas que, de uma forma ou outra, necessitam de ver resolvida a questão da habitação porque sem casa digna ninguém pode viver.

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #37, Março|Maio 2023.


Written by

Guilherme Luz

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