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Lendo: A vida quase se cumpriu.

A vida quase se cumpriu.

A vida quase se cumpriu.


E o Povo saiu à rua! Esta é talvez a imagem mais significativa do 25 de Abril. Desobedecendo ao comunicado dos capitães de Abril, as pessoas tomaram as ruas e irromperam na história. O golpe militar que depunha a mais longa ditadura fascista europeia, esganada pela guerra colonial, proporcionaria ao povo, nos meses seguintes, as suas mais ousadas formas de participação. A narrativa histórica enaltece a memória heroicizada de datas e personagens que nos conduziram à democracia de hoje. Mas, entre 1974 e 1975, teve lugar o inesperado. Pelas mãos das pessoas, os lugares de trabalho, as casas que faltavam, os campos que cultivavam eram por elas tomados. Ora, cumpria controlar tal energia inorgânica – assim é representado, nos nossos dias, esse temor. Enfileiraram-se partidos, lideranças e ordenanças, e sentenciou-se aos derrotados a obrigação moralizada de tudo esquecer. É imperioso que não o façamos.

 

Esquecem assim ingloriamente os intelectuais que esses dois anos terão sido para muitos (para eles próprios, mas sobretudo para uns milhões de trabalhadores da cidade e do campo, de “deserdados”, de explorados, de moradores de bairros de lata, de velhos e novos, homens e mulheres) os dois únicos anos da sua vida — até ver — em que agiram, comunicaram, participaram, decidiram, enfim intensamente viveram. Estariam eles materialmente melhor se não tem havido esses excessos e desvarios? Tudo leva a crer que não.
(João Martins Pereira, No Reino dos Falsos Avestruzes, Um Olhar sobre a Política, A Regra do Jogo, 1983)

 

Ao aproximarmo-nos da data redonda do 50.º aniversário do 25 de Abril, para quem não viveu estes momentos com idade para os entender, ou para quem não os viveu de todo, é importante uma viagem que percorra as geografias, os momentos e as memórias que o discurso oficial costuma deixar de lado, às vezes com menosprezo ou até ódio, outras com a condescendência de quem reduz essas vivências aos «dias loucos» do PREC – Período Revolucionário Em Curso. Uma «loucura» presente no quotidiano, uma «aberração passageira», como diz Jorge Valadas, que o 25 de Abril proporcionara e que urgia serenar e derrotar, através da vitória da democracia representativa que, assim acentuam as efemérides, cumpre celebrar em exclusivo meio século depois.

Desafiámos para uma conversa várias pessoas que, como nos diz Eduarda Dionísio, uma delas, tinham, nesse tempo, esquecido «deliberadamente» os seus mais habituais «centros de interesse», por lhes parecer que «era noutro lado que “as coisas” eram urgentes, poderiam transformar-se mesmo, e muito – “coisas” que mexiam com toda a gente». Um tempo que, nas suas palavras, teve início «mais em Maio de 74 do que em Março de 75, início “oficial” do PREC», e um final decretado com o 25 de Novembro. Recuemos a essa memória, levados pelo espírito já antes expresso em títulos de obras fundamentais: de que, então, O Futuro Era Agora (org. de Francisco Martins Rodrigues, Dinossauro, 1994) ou na pergunta – inicial e final – pel’A Revolução Impossível? (Phil Mailer, reedição Antígona, 2018).

Viver fora das ideologias

Na troca de questões, lançadas sobretudo por email, a primeira denunciou, eventualmente, uma armadilha de análise nossa, à luz de conceitos que não são aplicáveis a preto e branco. Viver-se-ia, então, uma reforma ou uma revolução? Estaria a noção da revolução social presente nesses momentos de sublevação social?

João Bernardo, ensaísta político com uma ampla obra crítica publicada no Brasil e em Portugal, vindo, nessa altura, de uma pequena organização clandestina marxista-leninista, rompia, em 1973, com o maoismo e o leninismo e, numa orientação de carácter marxista libertária, fundava, juntamente com João Crisóstomo e Rita Delgado, o Jornal Combate, que, até 1978, deu voz aos relatos das lutas, transcritas na íntegra, a partir das comissões de trabalhadores, comissões de moradores, etc. A falar-nos do Brasil, onde reside desde 1984, recorda como «o primeiro sinal de tudo foi a desagregação do regime salazarista. Desagregaram-se as estruturas locais e os militares não tinham a capacidade para administrar o país, pelo que a população progressivamente foi tomando as coisas nas suas mãos, porque mais ninguém as tomou». Um vazio de Estado.

Para José Tavares, colaborador e editor de diversas publicações libertárias ao longo das últimas décadas, o 25 de Abril encontrou-o em Leiria a dias de completar 15 anos: «pese o aviso do MFA para que a população ficasse em casa a aguardar os acontecimentos, a meio da manhã de 25 de Abril de 1974 ocupámos o Liceu. O mesmo sucedeu em muitos estabelecimentos de ensino, em muitos locais de trabalho… Os capitães ainda não estavam vitoriosos. O Poder foi oferecido aos generais por Marcelo Caetano, para que não caísse na rua, por volta das 16 horas deste dia.». Faz notar que «não existiu nenhuma revolução social no sentido de mudar ou transformar a vida. O 25 de Abril não foi desencadeado por uma insurreição popular, como é costume nas revoluções. A oposição ao regime era formada por sectores políticos e intelectuais com alguma implantação, particularmente o PCP, mas não havia uma resistência popular permanente e organizada, talvez por isso se dizia que o “regime estava de pedra e cal”».

Como nos diz Jorge Valadas – que desertara em 1967 para Paris, onde viveu o Maio de 68 ao lado das correntes antiautoritárias, e que regressa a Portugal, tendo participado no Jornal Combate –, é «claro que, num primeiro tempo, não havia projecto nenhum de “reforma ou revolução”. Estávamos a viver algo fora das ideologias, da aplicação de um projecto político. Demolia-se um muro, mas não se sabia o que havia para além do muro. A noção de sublevação social estava evidentemente presente, porque se sabia que a insatisfação dos trabalhadores e da sociedade era imensa, mas não tínhamos a medida do que se poderia passar. Uma vez mais na história se confirmou que a dimensão espontânea de um forte movimento social pode, ou não, criar uma dinâmica que ultrapassa de imediato os projectos e os esquemas preparados pelas organizações. E é a partir do momento em que o acontecimento escapa aos planos que o impossível começa a parecer possível.»

Para Mário Rui, actual editor da Barricada de Livros e, em 1974, um jovem de 19 anos que se descobre anarquista, essa perspectiva de se estar perante uma reforma ou uma revolução não existia, mesmo entre a juventude de espírito mais rebelde. «Penso que a noção de revolução social estava presente na cabeça das pessoas, embora na maioria de forma inconsciente, sem o saberem». O que lhe era certo é que «não gostava do fascismo, mas também não gostava do discurso autoritário das organizações juvenis maoistas e m-l’s [marxistas-leninistas] que já existiam nos liceus». Uma perspectiva que Júlio Henriques, outro dos desertores e politizados em França que regressa no 25 de Abril para colaborar no Combate, prosseguindo até hoje no ofício da escrita, da poesia, tradução e edição libertária, resume de forma mais teórica: «As forças que, de imediato, ficaram em liça exprimiam duas tensões centrais: reformas urgentes a operar no modo de governação estatal, uma, e, outra, a perspectiva duma revolução que poderia alterar os próprios alicerces da sociedade de classes».

Para César Figueiredo – na altura, jovem militante da organização marxista-leninista portuense Grito do Povo, mais tarde seduzido pelas ideias libertárias e uma das pessoas responsáveis pela existência da Livraria Gato Vadio – a questão da «revolução», enquanto sonho possível de mudança radical de paradigma de organização social e económica, não se colocou no início: «Tratou-se de um golpe militar motivado pela guerra colonial». E, a ter existido, durou pouco, já que, «logo a seguir, veio a chamada “estabilidade democrática”: acabar com os grupelhos m-l’s e criar partidos de grande estrutura democrática. O Dr. Soares dizia que agora o povo devia abandonar o tumulto e voltar para casa». Apesar disso, lembra: «eu tinha 20 anos em 74. Muitos dos companheiros eram gente de 40 (filhos do pós-guerra). Emprestavam inocência a tudo o que ouviam ou diziam. Havia, de facto, uma esperança».

É a partir do momento em que o acontecimento escapa aos planos que o impossível começa a parecer possível.

As autoridades estavam abaladas

O sonho parecia estar a realizar-se perante os olhos de quem vivia. «Que não se entenda que 74/75 foi, para mim e para os que comigo militavam, um somatório de vitórias e um paraíso que o 25 de Novembro desfez. Mas, durante algum tempo, tomaram-se decisões sem quase contar com o Poder. Ou seja: tomar decisões e pô-las em prática era uma e a mesma coisa. Víamos a realidade alterar-se a olho nu pelas nossas próprias mãos», diz-nos Eduarda Dionísio, professora no ensino secundário antes, durante e depois do 25 de Abril, escritora e dinamizadora de diversas outras actividades culturais, do ensino ao teatro e às letras, responsável máxima pelo nascimento da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio. Acrescenta: «rapidamente, cada um tomou em mãos a mudança da escola onde trabalhava, sem muito esperar por qualquer “orientação da política educacional”. Contando cada escola com as suas próprias forças. E, muito depressa, ousava-se vencer, para além de lutar. Em breve, os professores descobririam também o que até ali não tinha sido uma evidência: nas escolas havia estudantes e, para estes, também o 25 de Abril tinha chegado. E havia “funcionários administrativos” e “auxiliares” que, de um momento para o outro, já não eram designados por “pessoal menor”…» «As escolas já não eram como dantes. Alunos e professores mantinham relações muito mais igualitárias – o que não excluía o conflito. Era normal tratar-se na escola do que se passava fora dela. A fórmula das “assembleias” passou para muitas aulas. As autoridades estavam abaladas».

«Naqueles dois anos», diz-nos João Bernardo, «contrariamente a uma certa história que é feita nas universidades, os sindicatos eram inoperantes – excepto no caso dos bancários, que foram muito úteis ao Partido [comunista] para controlar as Unidades Colectivas de Produção no Alentejo e as fábricas importantes que estavam nas mãos dos trabalhadores. O resto não, o resto eram as Comissões de Trabalhadores, realmente democráticas e descentralizadas». Jorge Valadas relembra que havia «nos bairros e em algumas empresas ocupadas, grupos e colectivos informais de trabalhadores que, sem se guiarem por uma ideologia precisa, descobriam na prática da luta colectiva as suas possibilidades de mudar a vida».

Para Samuel Thirion, «o facto de o MFA falar de liberdade e de socialismo, que eram, ao fim e ao cabo, as palavras mais partilhadas, sem definir o seu conteúdo concreto permitiu que o imaginário colectivo se construísse à volta da ideia de uma sociedade igualitária na qual todos tinham o direito a uma vida digna». Este activista francês fora um dos muitos jovens estrangeiros atraídos pelos ares da revolução e um dos que por aqui se fixou, nunca abandonando os caminhos da cooperação e do desenvolvimento local das comunidades rurais. Quando chegou, o cenário foi «surpreendente», com um «ambiente revolucionário muito particular, na medida em que tudo se passava sem violência e com uma grande naturalidade; inclusivamente sobre aspectos de transformação social radical que, numa revolução mais “clássica”, teriam sido objecto de muitas oposições e conflitos. Assim, quase naturalmente, as pessoas criaram Comissões de Moradores, Comissões de Trabalhadores, houve ocupações de casas, de terras, dos média, etc. Era como se fosse normal que, de repente, tudo fosse possível e tudo devesse ser partilhado e resolvido directamente entre as pessoas, uma vez que já não havia razão para manter a propriedade privada e os grandes aparelhos. Lembro-me de pequenos agricultores que vinham trazer os seus tractores e camiões às cooperativas, porque já não viam a necessidade de manter esta propriedade para eles, uma vez que a cooperativa ia assegurar um meio de vida para todos. Havia até proprietários de casas vazias que achavam normal que pessoas sem casas as ocupassem, porque já estávamos em socialismo, sem necessidade de acumulação individual de bens materiais».

José Tavares matiza, por seu lado, que «as comissões de trabalhadores, de moradores, as ocupações de terras, a acção desenvolvida pelas “massas”, espontânea, foi provocada mais pela enorme desigualdade e injustiça entre classes, pela oportunidade histórica, por aumentos de salários e de condições de trabalho, e menos por uma revolução social. E sabemos o quanto estivemos ainda longe de uma real gestão directa dos trabalhadores, assim como de um controlo, e não Poder, popular, e em que medida foram manipuladas tais expressões. A “autogestão” disfarçou a fraqueza ou mesmo inexistência de uma revolução social. Esta só se pode realizar quando, por exemplo, as instituições estatais não conseguem de todo conter os conflitos. Ora, as ações “autogestionárias” e as ocupações de terras não afastaram a importância nem o peso do Estado, antes pelo contrário.»

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Trabalhadoras da Sogantal – fábrica de confeçōes do Montijo auto-gerida por operárias durante ano e meio depois do abandono da empresa pelos proprietários franceses – na manifestação contra os despedimentos (Lisboa, 1974).

Falar com toda a gente em qualquer parte

Tudo surpreendente também nas ruas, nos cafés. Na memória de João Bernardo ecoa o espanto da «possibilidade de abordares as outras pessoas. Hoje, se vais na rua e começas a falar sobre alguma coisa que está a acontecer, vão certamente achar que estás maluco, receosos, dão uns passos para o lado. Na época, não. As pessoas estavam muito mais abertas à intercomunicação. Isso é o que eu retenho. No metro, ouvindo as conversas: “então como é que foi o teu dia hoje, como foi a assembleia?”… era no fundo tudo idêntico, a carruagem cheia com quem vinha do trabalho, o casal de namorados, mas, ao mesmo tempo, era tudo diferente… a conversarem sobre a Comissão de Trabalhadores».

«Já não se falava em surdina», lembra César Figueiredo. «No café, falava-se para a mesa do lado. Era o debate espontâneo, quase assembleário. No Bairro do Leal [Porto] senti grande simpatia entre vizinhos a conversarem à porta da mercearia as novas da assembleia anterior». A grande novidade social da madrugada a seguir ao 25 de Abril foi, para tanta e tanta gente, o começarem a falar umas com as outras, entre iguais, em liberdade. «Nos últimos dias de Abril de 74, de repente, falava-se finalmente de tudo em voz alta. Ser “comunista” já não era crime. Antes do 1.º de Maio, já as sabedorias procuradas eram outras: as dos que tinham sido desde sempre “oposição”. A “autoridade” mudava de campo», recorda Eduarda Dionísio.

durante algum tempo, tomaram-se decisões sem quase contar com o Poder. Ou seja: tomar decisões e pô-las em prática era uma e a mesma coisa.

«Foi uma transformação profunda na sociedade portuguesa a todos os níveis, mas sobretudo o cultural e o comportamental. Foi um período de liberdade plena, com tudo o que isto implicou nas relações sociais. Tudo era possível. Foi como tirar a rolha a uma garrafa de champagne há muito tempo fechada. O líquido jorrou em catadupa. Toda uma nova forma de estar em sociedade, todo um conjunto de novos temas que entraram de rompante na vida das pessoas», diz Mário Rui Pinto. As pessoas passam a sentir-se com capacidade para dar o seu contributo e a achar que podem fazer «as coisas» mudar. «E de forma tão rápida que me espantou», diz João Bernardo. «Com uma grande avidez de conhecimento e de conhecimento histórico. Em poucos meses, em reuniões, não dos meios dos partidos que havia, mas as populares, dos trabalhadores comuns, eu ouvia as pessoas falarem da “II internacional” e de mais de não sei o quê… saídos de 48 anos de censura, de censura muitíssimo severa… como é que a população conseguiu, e não só em Lisboa, desde aqueles dias logo a seguir ao 25 de Abril e em poucos meses, não só discutir os problemas da empresa, da gestão da empresa, mas toda uma visão de sociedade nova e diferente, não sei… não sei como é que foi uma força tão rápida, mas foi».

De acordo com Júlio Henriques, «um dos reveladores de que está a surgir a possibilidade duma revolução social é o facto de as pessoas comuns se porem a dialogar abertamente umas com as outras, onde quer que seja; esse estranho facto de verdadeiramente comunicarem, criando a comunicação social que, fora desses momentos extraordinários, raramente existe. E num tal revelador sobressai a alegria, o júbilo, que uma tal descoberta suscita. A ruptura revolucionária, se ocorrer, vê-se na nova sociabilidade em criação. Na juventude do 25 de Abril, isso irrompeu com força, designadamente o desejo de relações comunitárias, de associações de iguais, desprovidas de chefes, capazes de se orientarem por si mesmas. Para mim, essa experiência foi um renascimento.

O peso do passado

há lugar, no entanto, para construir uma narrativa romantizada dum povo que «mudava tudo», porque houve coisas, demasiadas coisas, que não mudaram. Vivíamos, contextualiza Jorge Valadas, «na ruptura inesperada de um mundo que cheirava a bafio», pelo que «as novas relações sociais nascidas das lutas enfrentavam o peso do passado». Mesmo nos grandes centros urbanos, apesar da exaltação, João Bernardo retrata-nos «toda uma vida normal que continuava, os restaurantes, as cervejarias, só que estavam em autogestão. Não vejo que o 25 de Abril tivesse feito grandes modificações no comportamento das pessoas».

Já não se falava em surdina. No café, falava-se para a mesa do lado. Era o debate espontâneo, quase assembleário.

Em Janeiro de 1975, nove meses após o 25 de Abril, as mulheres que irromperam na rua num protesto organizado pelo grupo feminista Movimento de Libertação das Mulheres foram obrigadas a fugir. Foram insultadas, assediadas, agredidas e perseguidas. Joëlle Ghazarian, escritora poeta francesa e arménia que acorre a Portugal em 1974 e onde escolheu viver, dá-nos um outro retrato: «mesmo na altura em que o espírito de revolta estava presente, em 74, vi cenas como um negro a sair dum café, no centro de Lisboa, ser insultado por portugueses brancos que tentaram agredi-lo. Claro que nessa altura havia quem, como eu, interviesse. Mas não me parecia que a revolução social estivesse para chegar depressa, sobretudo mantendo-se atitudes básicas negativas, como, por exemplo, o racismo.»

Mapa 2023 março - manifestação MLM 1 (2)(1)

No dia 13 de Janeiro de 1975, no Parque Eduardo VII, em Lisboa, uma manisfestação organizada pelo Movimento de Libertação de Mulheres (MLM) que reivindicava o direito das mulheres a ocuparem o espaço público, contra os símbolos da opressão feminina e denuciando a vida doméstica, foi interrompida e boicotada por um grupo de homens.

Também Samuel Thirion não esconde que «a única diferença herdada do passado, e que, de facto, era questionável, era a diferença de salário entre homens e mulheres». Um resquício do antigamente que se revela ainda mais sintomático por ocorrer num ambiente em que «um princípio essencial era o igualitarismo, nomeadamente nos salários. Todos ganhavam o mesmo salário. Eu próprio, por exemplo, como engenheiro agrónomo recém-formado, recebia o mesmo salário que todos os trabalhadores agrícolas.»

Ainda assim, Jorge Valadas, considera que, mesmo nesse âmbito, o 25 de Abril proporcionou um salto enorme em direcção ao futuro: «Que os posicionamentos feministas tenham tido dificuldade em impor-se, encontrando mesmo uma violenta oposição durante os anos de agitação, é um facto que não pode ser ignorado. Mas esta oposição significava já uma fragilização da dominação masculina.Um bom exemplo foi a contestação das relações de género, para utilizar um conceito de hoje, nas greves, nos movimentos, nas ocupações de empresas. Imagine-se o terramoto provocado por situações onde a maioria das assalariadas mulheres se mobilizaram para lutar, ocuparam empresas, tentaram mesmo reorganizá-las em formas de gestão colectiva ou de autogestão limitada. Lembro, em particular, o caso da fábrica têxtil Sogantal, onde as operárias tiveram um papel determinante, onde a maioria do enquadramento era formado por homens. E onde a ocupação da fábrica teve consequências radicais na modificação da mentalidade das operárias, com repercussões fortes nas suas vidas. Houve conflitos humanos dolorosos, divórcios e rupturas, violências».

Apartidarismo

Num instante, esta tendência «selvagem» de tomar o destino nas próprias mãos de forma colectiva deu origem ao termo «apartidário», um «conceito muito interessante, na medida em que se distingue claramente do apolitismo», nas palavras de Samuel Thirion, ou «uma invenção original do movimento social pós-25 de Abril que exprime a criatividade do movimento», nas de Jorge Valadas.

Júlio Henriques afirma: «o surgimento desse novo vocábulo no movimento ofensivo dos trabalhadores em luta, auto-organizado, exprimiu a dimensão qualitativa da conflitualidade em curso e a forte contradição que isso introduziu na dinâmica das confrontações: ao passo que o processo tendente à normalização política do país assentava na legitimação dos partidos, o declarado apartidarismo da auto-organização dos trabalhadores apontava para algo que punha em causa o autoritarismo ideológico constitutivo dos partidos, a sua pretensão hierárquica a dirigir os de baixo. Este conflito foi a expressão propriamente revolucionária do movimento autónomo dos trabalhadores no seu momento ascensional».

Samuel Thirion concorda: «esta espontaneidade rapidamente se confrontou com lógicas de poder, desenvolvidas principalmente pelos partidos políticos que entraram em competição para o controlo da gestão do Estado. O apartidarismo aparece, então, como uma defesa frente a esta lógica partidária competitiva na qual a maioria das pessoas não se reconheciam e que viam como uma ameaça para a organização local. Mais que isto o apartidarismo surgiu como uma cultura da organização directa que ainda existe em muitas iniciativas».

No entanto, Jorge Valadas alerta que «esta revindicação de “apartidarismo” continha algumas ambiguidades, na medida justamente em que era apoiada por organizações de tipo partidário, de índole maoista sobretudo, que se opunham ao PCP, que estavam em concorrência com este grande partido para ganhar o controle da massa dos trabalhadores. Tudo era confuso e impreciso. Tudo ia muito depressa… A expressão extraía o seu significado de um reforço notável das organizações de base que tinham surgido espontaneamente, sem palavras de ordem políticas ou sindicais, nos locais de trabalho e nos bairros: as comissões de trabalhadores e as comissões de moradores. No seio das quais o debate político era intenso e onde começavam a germinar questões fundamentais e novas sobre a possível gestão das empresas pelos trabalhadores, os modelos de “autogestão”. Debates que colidiam, se sobrepunham ou mesmo coexistiam com as reivindicações de nacionalização das empresas. As correntes apartidárias davam mais importância ao reforço do poder das organizações de base, mesmo se a presença no seu seio dos grupos de ideologia leninista limitava esta visão duma reorganização da sociedade de baixo para cima».

Na ruptura inesperada de um mundo que cheirava a bafio, as novas relações sociais nascidas das lutas enfrentavam o peso do passado.

Para além disso, ainda nas suas palavras, «um assunto relevante deve ser mencionado. Ele tem a ver com esta questão do “apartidarismo” e dos seus limites, das suas dificuldades em se afirmar plenamente. Trata-se da relação ambígua que o movimento social e as suas organizações estabeleceram desde o princípio com a instituição militar. Uma relação inerente à origem particular da revolta social. Havia uma relação de dependência para com os militares, que eram vistos como os aliados principais dos trabalhadores em luta. Este foi, a meu ver, o aspecto mais frágil da “revolução”. Esta ambiguidade continha já as sementes da derrota do movimento. A confiança numa instituição que é, por definição, uma instituição estatal, vertical, hierárquica e autoritária, só poderia ser suicidária. O estado de decomposição das forças armadas criou a ilusão de que os trabalhadores podiam contar com os militares para criar uma nova sociedade. Foi o sinal da sua fraqueza, da falta de confiança em si próprios. A delegação da força colectiva da luta numa instituição que, pouco a pouco, se recompunha como força anti-subversiva só podia anunciar uma derrota. Esta confiança esvaziou lentamente, progressivamente, o movimento social. A responsabilidade das organizações do leninismo clássico neste processo foi determinante. Estas organizações pensaram poder infiltrar as forças armadas e tomá-las do interior, num movimento de entrismo que teve o resultado oposto. Ao fim e ao cabo, foi a instituição militar que devorou os grupos vanguardistas e os seus militantes de base e os entregou algemados à repressão do Estado».

José Tavares sublinha como «o exército tentou convencer toda a gente, e sobretudo a ele próprio, que se tratava de um exército revolucionário. Um exército revolucionário que podia provocar uma transformação revolucionária foi um mito criado pela esquerda. Todos os teóricos de esquerda queriam “militares revolucionários”. O 25 de Novembro provou de maneira evidente que os militares só podiam ser, pela sua própria natureza e finalidade, culto de honra militar, obediência à hierarquia, competência técnica da morte, defensores da ordem capitalista, logo estatal, ocidental».

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Obras na sede do Movimento de Libertação de Mulheres (MLM), numa casa ocupada na Av. Alvares Cabral. Lisboa 1975.

Tiros de partidos

«Compreendi, sem dúvida, que se impunha lutar mais profundamente para mudar a sociedade, e que não eram os apartidários que iam vencer», diz-nos Joëlle Ghazarian.

De facto, lembra Mário Rui Pinto, «aos poucos, todo um conjunto de movimentações populares de carácter genuinamente libertário foi sendo absorvido pelos partidos, transformando as pessoas em meros peões no jogo do poder. A direita não conseguia entrar nas comissões de moradores ou de trabalhadores. Tinham medo, o medo estava do lado deles, ao contrário do que se passa agora. Os maiores obstáculos vinham do PCP e dos grupelhos maoistas e m-l’s, tipo UDP, MRPP, FEC-ML, etc. O PS estava completamente empenhado na luta pelo poder contra o PCP e contra a unicidade sindical da CGTP, mais do que em tentar controlar as movimentações populares. O PS percebeu que só teria capacidade de ganhar se deslocasse a luta política das ruas, das fábricas e dos campos para a Assembleia Nacional. Conseguiu».

Jorge Valadas afirma que «as organizações estruturadas e rígidas tiveram a capacidade de se investir rapidamente no movimento a partir do momento em que ele tomou dimensão social. O PCP, que tinha já acedido ao aparelho de Estado, onde controlava ministérios importantes como o do Trabalho e da Agricultura, estruturava a sua estratégia em função desta posição. Para ele, a energia do movimento popular devia servir para reforçar a força do partido no Estado. Do nosso ponto de vista, tratava-se, pelo contrário, de reforçar as organizações de base, nas empresas e nos bairros, nas ocupações de terras que começavam ao sul do Tejo. Havia que desenvolver a consciência colectiva dos trabalhadores, reforçar a confiança nas suas próprias forças, abrir perspectivas positivas de construção de uma sociedade nova. Os trabalhadores não deviam ser considerados como fazendo parte das condições objectivas, deviam tornar-se uma força subjectiva, serem actores consciente da História. Estas tendências eram minoritárias e, contra o nosso desejo, assim se mantiveram».

A revolução era isso: revoltas potentes individuais e/ou colectivas que tinham de se partilhar

Júlio Henriques considera que «os partidos políticos dominantes, nessa altura o PS e o PCP, não podiam admitir uma tal autonomia. Para existirem, tinham forçosamente de ser eles a decidir as tácticas e as estratégias. Ressalvando matizes e excepções (do MES, da LUAR, do PRP, de franjas da UDP ou do MRPP), o mesmo acontecia com as organizações de extrema-esquerda, quase todas viradas para aquilo a que chamavam a constituição do “verdadeiro partido comunista”. A hostilidade dos partidos de direita (que então se estavam a reconstituir) a qualquer possibilidade de auto-emancipação das “classes de baixo”, era mais do que óbvia e, por isso mesmo, pouco operativa; muito mais operativa foi a hostilidade dos partidos de esquerda, cuja acção demagógica se revelava mais eficaz para neutralizar ou anestesiar o processo da auto-emancipação. Nunca foi ocasional, por exemplo, o facto de em momentos de grande agitação social, em diversos países, o Ministério do Trabalho ser atribuído ao PC, no tempo em que a sua influência era grande».

«Eu estive ligado, desde 72, ao Grito do Povo», conta César Figueiredo, «um grupo muito activo com uma base social de apoio interessante: operários, pescadores de Matosinhos, … mas também um pequeno grupo de jovens aspirantes a serem os novos Lenin» e «as fricções entre o grupo eram muitas, porque todos se diziam herdeiros do velho PCP. Gastavam mais tempo no palavrório e no esquema organizativo do que a juntarem-se ao people fragilizado pelo capitalismo fascista. Os esquemas partidários levavam para dentro das estruturas mais ou menos auto-organizadas uma série de conflitos alheios àquilo que deveria ser o foco: organização dos processos de luta, ocupação, ataque aos despejos.» Joëlle Ghazarian chega a afirmar que «quem não concordasse com qualquer uma das organizações partidárias que tinham em vista a conquista do poder, e o dissesse claramente, corria o risco de ser agredido».

Eduarda Dionísio, na altura professora, trouxe-nos uma visão da escola, cujos ecos no presente não passarão despercebidos. «As pessoas tinham vivido em silêncio. Agora procuravam-se. Algumas tinham-se perdido de vista. Outras nunca se tinham visto. Outras conheciam-se mal. Só uma parte dos professores do PCP (e afins) estava organizada nos “Grupos de Estudos” antes do 25 de Abril. Era essa a “legitimidade” a que se agarravam. Iniciaram-se as grandes assembleias convocadas por uma autonomeada CIP (Comissão Instaladora Provisória) de um (ainda não) Sindicato, que começava torto e nunca havia de se endireitar. Hegemonizado pelo PCP, este Sindicato (que agia como se antes de ser já fosse) não contou evidentemente com os contributos de milhares de professores que, mais tarde ou mais cedo, dele se distanciaram. As escolas onde os ex-Grupos de Estudos não tinham implantação, ou onde dominavam concepções sindicais e políticas que se lhes opunham, foram pura e simplesmente postas à margem de um processo onde teriam evidentemente coisas a dizer e a fazer. A manipulação e o controle por parte da Direcção, das assembleias com milhares de presenças, desde cedo começaram a dar ao comum dos professores a sensação de “impotência” em tudo o que ao Sindicato dizia respeito: o que tinha valor em cada escola deixava de ter valor nos plenários de todas as escolas.O sindicalismo que a CIP prosseguia era o de ir controlando as bases e manobrando no topo, actuando como lobby junto de um Ministério, onde os militantes do PCP iam consolidando ou adquirindo posições.»

Mapa 2023 março - torre bela (2)

Em Abril de 1975, um greupo de cverca de mil trabalhadores ocuparama a herdade Torre Bela, na Azambuja, organizando-se numa cooperativa.

Para João Bernardo, «a acção dos partidos, por um lado, foi importante, porque difundiu ideias, por outro lado, foi muito negativa para as lutas. A primeira cobertura que nós fizemos, no Combate, no Alentejo, foi antes das ocupações de terras e as palavras de ordem do partido eram igualdade salarial, tratar o proletariado agrícola como o proletariado normal: horas de trabalho, um salário, etc. e não ocupações de terras. Isso não era falado nessa altura, em 1974. Quando a população ocupa as terras, faz aquilo em nome do partido, que, no Alentejo, era o Partido Comunista. Alguns lá tinham as bandeiras escondidas aqueles anos todos sei lá onde, e foi em nome do partido que eles ocuparam, mas não foi nenhuma decisão que o Cunhal tivesse dado. Hoje em dia, a história é contada de maneira diferente, mas, na altura, foi visível que era assim. O movimento foi de baixo e, depois, assimilado».

Reconhecendo que «a situação era muito diferente entre o Sul do país, por um lado, e o Norte e Centro, por outro», para Samuel Thirion, no Alentejo, «a luta entre os partidos, principalmente PCP e PS, foi o ponto de partida da destruição do movimento. Em vez de deixar as cooperativas crescerem de maneira autónoma, o controlo das cooperativas tornou-se uma questão partidária. A estratégia do PCP para ganhar presença no Alentejo foi a de se apoiar no desenvolvimento do sindicalismo e na promoção dos Contratos Colectivos de Trabalho através do Ministério do Trabalho, que o partido controlava nos primeiros governos provisórios, nomeadamente no ano de 1974. Quando aparecem as primeiras ocupações de terras, em Janeiro de 1975, o PCP organiza imediatamente um encontro nacional para reclamar uma reforma agrária e vai-se implementar na maioria das cooperativas formadas, apoiando-se nos sindicatos dos trabalhadores rurais que já controlava em toda a região. O objectivo do PS foi, então, destruir as cooperativas, o que os governos PS, a partir do 25 de Novembro, fizeram durante 10 anos»

O declarado apartidarismo da auto-organização dos trabalhadores apontava para algo que punha em causa o autoritarismo ideológico constitutivo dos partidos.

Coisas que marcam para a vida inteira

Mas a vida quase se cumpriu. Um pouco mais de vermelho, talvez, e o mundo ali estava, ao alcance de mão, pronto para ser transformado, virado de pernas para o ar, despido de exploração e infâmia, liberto de grilhetas e bafio. Um pouco mais de negro – quem sabe? – e ei-lo, o tempo, tão suspenso como a avançar a toda a velocidade, ali, ao virar da esquina, pronto para ser destruído e voltado a remontar. Quisemos saber se, ainda que por momentos, chegou a haver, na experiência pessoal dos nossos interlocutores, uma altura em que vislumbraram um mundo novo e um mudar de vida. Preferiram fazê-lo pelo relato de episódios simples que falam por si.

«Há um momento muito interessante de acção espontânea que evitou um despejo na Rua de Gonçalo Cristóvão» no Porto, conta-nos César Figueiredo. «Alguém passou pelo café Transturística e gritou: “vai haver um despejo na rua tal, número tal”… O pessoal levantou-se e foi barrar a possível investida da polícia e do representante do tribunal. Vi muita gente, mas não percebi que houvesse vontade de capitalizar em favor de grupo ou grupelho. Importante era evitar o despejo». Para ele, «o PREC foram as ocupações, a luta contra os sub-aluga, contra as brigadas dos despejos, os ataques ao Consulado de Espanha aquando da execução de etarras… Nesse dia, não vi partidos, vi uma população jovem em fúria a destruir tudo».

João Bernardo recorda «a população mandar parar o autocarro e dizer ao condutor: “este percurso que estão a fazer não nos interessa, interessa mais que passassem pela rua não sei quantas”. “Está bem, vou dizer lá na comissão de trabalhadores da Carris”, que mudou a ordenação do percurso que tinha sido proposta pela população do bairro». Outro caso que me vem à memória é o «de umas cuecas que estavam expostas numa montra em Lisboa por um preço inacreditável. As pessoas que passavam ficavam escandalizadas e entraram na loja: “como é que é possível, com uma população tão pobre e vocês a vender cuecas assim!?” Coisas que, hoje, nem sequer escandaliza as pessoas. Mas aquilo extravasava, extravasava e dava resultados. Porque, do outro lado, dos trabalhadores da loja, havia receptividade».

«Foram muitos os professores que não quiseram ter férias em 74», lembra Eduarda Dionísio. «Tomaram “revolucionariamente” para si as tarefas que anteriormente cabiam ao reitor e às secretárias – desde as matrículas à organização das turmas, passando pelos horários e pela organização da escola. Tratava-se de, quando o “Ano Lectivo n.º 1” da “Era da Revolução” se iniciasse, ter entre mãos uma escola nova. Mais do que no Ministério, foi sobretudo nas escolas que se iam dando as grandes transformações. Os professores estavam organizados em “grupos de trabalho” que proliferavam. Os “organigramas” – palavra nova – dos novos modelos de “gestão escolar” – conceito novo – sucediam-se e eram vivamente discutidos. Tratava-se de ter nas mãos a escola em que se trabalhava ou estudava – que se “habitava”, como se dizia então –, fazê-la acompanhar o movimento social, a “revolução”. Em Novembro e Dezembro de 74, toda – mas toda – a escola discutia propostas divulgadas por escrito e da autoria de cada sector, ou de grupos de alunos: as questões do saneamento, a avaliação, a gestão (com número igual de alunos e professores e com a participação de empregados), um regulamento interno».

Para Samuel Thirion, as suas vivências nas cooperativas da Reforma Agrária foram «uma experiência humana única onde a vida colectiva devia apreender-se na prática, confrontando-se por vezes com desafios grandes para resolver, como o alcoolismo, a violência doméstica, etc. Eram como escolas da vida. Muitos questionaram a democracia interna nas cooperativas. É verdade que havia pessoas com mais capacidade de gestão que outras. Nomeadamente os antigos seareiros tinham uma experiência que os trabalhadores agrícolas não tinham. Mas as repartições das tarefas em função das capacidades de cada um era um assunto que se resolvia de maneira natural e consensual sem que se constituíssem verdadeiras relações de dominação. O que mais me admirou nesta altura era a abertura das cooperativas a qualquer pessoa que procurava trabalho. Todos eram bem vindos, inclusivamente estrangeiros, e sempre se encontrava uma maneira de dar trabalho a todos».

Joëlle Ghazarian recorda: «em Lisboa, aquela imensa manifestação dos trabalhadores da Lisnave até à embaixada americana, onde fomos recebidos por militares armados. Deslumbrou-me a força moral e a ordem daquela longa manifestação, onde se destacavam os capacetes de cores diferentes dos operários. Para mim, a revolução era isso: revoltas potentes individuais e/ou colectivas que tinham de se partilhar. Nunca me foi fácil viver em comunidade, e aliás, ao meu redor, também não achei que fosse fácil para os outros. Mas aqueles que o faziam conseguiam estar juntos (e eu um pouco de vez em quando) e viver assim coisas novas, debates, partilha das tarefas masculinas e femininas, novas e diversas convivialidades. E isto são coisas que marcam para a vida inteira».

A narrativa oficial corresponde a uma visão da História que coloca o sistema representativo parlamentar como o objectivo último e não ultrapassável na História das sociedades. De certa maneira, é a afirmação de um fim da História, o estado supremo da política.

No que pode resumir estes testemunhos, Jorge Valadas não considerou que se tenha tratado de haver «um momento a partir do qual se sentiu que se poderia mudar de vida… Não era um “objectivo”, era um processo vivido no quotidiano. Foi no decorrer do próprio processo que a vida mudou. Começou-se a mudar de vida a partir do momento em que se lutou para mudar de vida! E é a partir do momento em que se luta que se torna consciente de que é possível mudar de vida. Era uma vivência individual, mas também colectiva. Eu não estava inserido na produção, na economia directa, não posso falar de uma experiência a esse nível. Mas partindo do que vi, do que vivi e do que aprendi da experiência alheia, penso que este “mudar de vida” foi a vida diferente que se viveu na luta».

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Manifestação em 1975 (Fotografia de Alexandre Alves Costa).

Ninguém se quer lembrar

O encontro da felicidade na gestão colectiva dos destinos da comunidade em que vivemos, toda essa intensidade, essa descoberta, essa invenção do caminho ao caminhar, onde ficou? Em que gaveta? Quem roubou a memória da auto-organização como resposta à ausência de poder? Quem não a quis guardar e passar às gerações que vieram depois? Quem quer manter a espontaneidade no escuro? Roubaram-nos o carvalhal ou fomos nós que o deixámos levar? E para que é que isso interessa?

Mesmo na redacção do Jornal MAPA, as memórias desses tempos chegaram já quando as pessoas, envolvidas em processos de luta muito posteriores aos de Abril de 1974, foram confrontadas com elas. Margarida Guerra, por exemplo, recorda que se cruzou com a sigla PREC apenas em 2001, em Setúbal: «tínhamos ocupado um pavilhão abandonado para fazer concertos e actividades numa parte central da cidade. O vizinho do lado, dono de uma casa senhorial antiga, cola à porta do tal pavilhão um papel que dizia “Mas o que é isto?! Voltámos aos tempos do PREC?!” Eu desconhecia a sigla, apesar de perceber pelo textinho (recriminador) que o senhor se estava a referir às ocupações do pós-25 de Abril». Para Sandra Faustino, o que a escola e a «família conservadora» lhe transmitiram foi que o PREC tinha sido «uma coisa (só) agrícola, do 25 de Abril e do PCP. Só descobri o que queria dizer a sigla muito depois, tal como tardei em perceber que a “reforma” agrária não tinha sido uma coisa “só” agrícola».

Para Jorge Valadas, «a desmemorização dos aspectos de auto-organização e de espontaneidade que marcaram o movimento social pós 25 de Abril pode ser abordada por dois prismas. Por um lado, a derrota do movimento social foi acompanhada por uma vitoria ideológica, como é sempre o caso na História. A narrativa dos vencedores tornou-se obviamente a “verdadeira”, a única narrativa, com variantes insignificantes. O movimento social passou a ser apresentado como um período agitado num processo que se quer “normal” de transição do regime autoritário de matriz fascista para um sistema de representação parlamentar. Uma aberração passageira num processo histórico normalizado. Um processo determinista onde não há espaço para contradições, para alternativas. O processo devia ser assim, só podia ser assim, o que se passou fora desta lógica normalizada passa por absurdo, fora do caminho “normal” da História. Como se sabe, esta narrativa oficial evoluiu mesmo depois para outra em que se explica que a passagem do regime salazarista para o regime representativo parlamentar já estava em curso, que, no fim de contas, a aberração do movimento popular só veio retardar o que já estava em curso. Ou seja, se o povo não se tivesse metido na História, a História ter-se-ia desenrolado de forma mais suave e normalizada. A integração do país na Europa, que veio a seguir, e o acesso da população às formas de modernidade mercantil fecharam o episódio. A narrativa oficial corresponde a uma visão da História que coloca o sistema representativo parlamentar como objectivo último e não ultrapassável na História das sociedades. De certa maneira, é a afirmação de um fim da História, o estado supremo da política».

O PS percebeu que só teria capacidade de ganhar se deslocasse a luta política das ruas, das fábricas e dos campos para a Assembleia Nacional. Conseguiu.

«Por outro lado», continua, «os alicerces desta desmemória não são só ideológicos, encontram-se na própria dinâmica da reprodução capitalista. No caso português, a modernização estrutural da economia pela integração europeia e a instalação de uma sociedade de consumo moderna foram factores determinantes para a desmemoriação. Nos centros comerciais não há espaço para a memória histórica. A ilusão do consumo é essencial para aceitar como verdade a ideia de que o capitalismo de representação parlamentar é o horizonte final. O regime salazarista tinha já feito um grande trabalho para apagar a memória histórica recente da sociedade portuguesa. A alienação da sociedade de consumo prosseguiu o processo. De facto, não é só a memória do movimento subversivo do 25 de Abril que foi apagada, quase toda a memória da sociedade, a sua história, foram destruídas. Os aspectos tradicionais da vida colectiva foram reduzidos a espectáculo folclórico, nas zonas rurais, nos bairros populares. Foram apagadas as experiências associativas, de auto-organização, ainda que limitada, que tinham atravessado os séculos. A força destruidora do consumo que apagou a memória do 25 de Abril foi tão forte que apagou também outros momentos e experiências da história social do país antes da fase moderna do capitalismo. As pessoas não sabem o que são, onde vivem, de onde vêm e como chegaram a este ponto da História. O que, obviamente, limita qualquer pensamento, qualquer projecto de futuro que não a reprodução da miséria do presente».

César Figueiredo concorda: «enquanto houver consumismo, as pessoas vão ficando entretidas e auto-anestesiadas. Basta trocar a capa do telemóvel, comer um pratinho de sushi, KFC ou Mac e tudo parece diferente. Basta passar uma tarde a ver montras no Norteshopping e o people sobe de nível de vida. O que me confunde é que esses mesmos não têm dinheiro para pagar a renda da casa nem a comida. Todos os dias um terror para o conseguir. Perder a memória: a abastança do agente da política profissional; a necessidade de esquecer o trauma de uma existência pobre; ocultaram os avós, filhos e netos: a memória perdeu-se». Depois temos «os sindicatos corporativos com os mesmos dirigentes há 20, 30, 40 anos. Fazem o mesmo que o Sr. Dr. Mário Soares: vão para casa que nós tratamos de tudo» enquanto os think tanks vão construindo novas práticas para manter a massa eunuca. Mandaram o PREC tomar PROZAC e deixar as instituições profissionais democráticas tratar do futuro da nação.»

Júlio Henriques também aproveita a máxima que afirma que «dos derrotados não reza a História», considerando que, «entre nós, o mais curioso é que esta dimensão da derrota não parece sequer figurar no léxico. É altamente significativo que “o 25 de Abril” signifique para a maioria da população “a vitória da democracia”. Obviamente, para a obtenção deste resultado foi feito um grande trabalho de sapa, um insistente labor ideológico de encobrimento, realizado ao longo dos anos nas mais diversas instâncias mediáticas. As versões que contam e inducam são as que podem passar na televisão, o crivo, o grande altar.»

O que se detecta é a surdina, a incapacidade mental de voltar a uma experiência que, no fim de contas acabou por ser traumática. João Bernardo recorda uma passagem de Gabriel García Márquez para um olhar mais subjectivo: na história «sobre um morticínio muito grande que teve lugar numa povoação, umas das que estava dada como morta regressa anos depois à terra: “eu sou daqueles que esteve no morticínio, consegui escapar”… e as pessoas: “mas que morticínio, não houve morticínio nenhum”… ninguém se queria lembrar.»

A desilusão talvez tenha dado origem nos vencidos a uma necessidade de silêncio, uma tentativa de esquecimento. Joëlle Ghazarian também acolhe essa ideia: «Provavelmente, ninguém gosta de se lembrar que foi vencido. Mas é pena, porque é grande o saber dos vencidos. Talvez tenham acreditado mesmo que um mundo novo era possível e, nesse caso, a desilusão dói, é melhor esquecer para não sofrer. É talvez por isso que eu ainda me lembro; não me importo de ser vencida, porque não há derrota para quem participou de corpo e alma, e mesmo sem esperança… Mas posso ter tristeza: de ver agora tantos jovens, e menos jovens, lobotomizados e isolados, sem a vitalidade que os portugueses tiveram realmente numa dada altura, tendo provado assim que não há nenhum fatalismo inato.»

A vida que se instala de novo

João Bernardo é mais pragmático e põe em causa que a ausência dessa memória seja sinal de derrota definitiva, preferindo acreditar que todo esse património existe numa forma – chamemos-lhe – larvar, à espera de mais um momento na História para se metamorfosear em mariposa. Há jovens a que hoje o 25 de Abril não diz nada, muito menos as experiências ou os caminhos que foram, na altura, derrotados. Para João Bernardo isso é tudo menos dramático: «Eu costumo fazer uma espécie de relógio para avaliar estas datas: comecei a militar em 1962. Tinha a distância de 50 anos para dois anos depois da implantação da república. Olhava para um conjunto de velhotes engraçados que se reuniam todos 5 de Outubro ao pé da estátua do António José de Almeida e mais nada (nos dias 5 de Outubro, os velhinhos republicanos iam lá colocar flores e o Salazar deixava): a República era uma coisa muito antiga que já lá estava, mas não nos dizia mais nada.» Por outro lado, alerta-nos que «não é pela pequena duração de um processo que nós podemos avaliar da sua importância, quer em termos físicos, como de física atómica, subatómica, em que podemos não visualizar uma fracção de segundo, mas, no entanto, elas podem estruturar toda a matéria, ou contribuir para estruturar toda a matéria. Pelo que temos que estudar os processos não só pela sua durabilidade. Havia a ideia de “mudar de vida”, sim. Isso era visível, não era a loucura de alguns, isso era uma opinião geral».

Não é só a memória do movimento subversivo do 25 de Abril que foi apagada, quase toda a memória da sociedade, a sua história, foram destruídas.

Chegamos ao dia de hoje e ao de amanhã. Jorge Valadas prossegue pelo mesmo fio: «não é impossível que estejamos hoje a chegar a um patamar para além do qual a instabilidade da vida se instale de novo. A História existe e continua o seu caminho contraditório, por vezes subterrâneo. E, cada vez que o sistema se desestabiliza, reaparece a memória social, as forças da História voltam a manifestar-se. Voltam a ser lembradas as capacidades de mudar a vida e o mundo. O desequilíbrio do capitalismo e das relações sociais é o terreno fértil da subversão possível do que se torna impossível viver. A criatividade e a energia de um movimento espontâneo e inesperado como o das mobilizações recentes dos trabalhadores da educação são uma primeira manifestação deste reaparecimento da História. Uma frase como «Lutar também é ensinar» traz a marca do espírito do 25 Abril. E uma ideia que faz apelo à capacidade e à necessidade de mudar a vida e o mundo pela acção consciente das pessoas. Assinala o começo das comemorações da revolução de Abril que desejamos.»

 


Texto da série “25 de Abril, outros 50 anos”.

Texto de  Filipe Nunes e  Teófilo Fagundes
Ilustraçōes de  Catarina Leal


Artigo publicado no JornalMapa, edição #37, Março|Maio 2023.


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Jornal Mapa

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