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Lendo: Entre o mar e a terra, o turismo não vale tudo

Entre o mar e a terra, o turismo não vale tudo

Entre o mar e a terra, o turismo não vale tudo


Em Peniche, a zona de Ferrel e Atouguia da Baleia é conhecida pelos naufrágios, pelas histórias de piratas e por um mar revolto que relembra as ondas agitadas de lutas que aqui se travaram, nos finais dos anos setenta, contra a construção de uma central nuclear. Estas lutas não pararam de se travar num lugar onde a natureza se sente e onde desde tempos imemoriais a pesca e a agricultura convivem. Hoje a região vê-se ameaçada por empreendimentos turísticos, preços exorbitantes e a desfiguração natural que ocorre com a perda de vivências e práticas. Fomos falar com algumas das envolvidas numa luta que se trava no litoral de Peniche.

Fernanda Oliveira é a presidente da Associação dos Agricultores de Ferrel, que nos diz «representar os agricultores de Ferrel na medida em que há coisas muito assustadoras e complicadas que nos preocupam em relação aos investimentos imobiliários que vêm por essa costa abaixo. Tendo nós um terreno muito grande junto à praia fomos em 2017, juntamente com outros agricultores, notificados que íamos ser expropriados dos nossos terrenos para a construção de um hotel dentro do Plano Diretor Municipal de Peniche».

Foi através do processo de revisão do PDM, deliberado em 2012 e posto em marcha a partir de 2018 sobre o mandato de Henrique Bertino, do Grupo Cidadãos Eleitores por Peniche (GCEPP) e reeleito para o segundo mandato em 2021 em acordo com o PS, que se veio a instalar a polémica em torno do reordenamento de Ferrel e Baleal. A designada Unidade de Execução do Baleal, enquadrada na UOPG 9 Baleal-Ferrel do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Alcobaça-Mafra (POOC, 2002), abrangendo a área urbana do Baleal, a frente urbana de Ferrel e as praias adjacentes.

O Programa de Execução à revisão do PDM de Peniche, elaborado em 2018 pelo Gabinete de Planeamento da Autarquia, propunha a requalificação da frente marítima, a criação de uma via nova, evitando o atravessamento de Ferrel e Casais do Baleal, a relocalização do estacionamento e a reclassificação dos usos de solo, culminando na possibilidade de edificação de um empreendimento turístico no topo do Baleal.

baleal

Ana, que assim chamamos por preferir manter o anonimato, empresária de Peniche e uma das proprietárias de terrenos no Baleal, recorda a reunião de 2017 onde «apresentaram um plano que se chama Unidade de Execução do Baleal projetada numa zona onde os terrenos estão paralelos e diretamente de frente ao mar. Já aí corta as franjas destes terrenos, desde 1974, uma estrada, a Avenida da Praia, onde toda a gente passa e que seria desativada neste projeto, pois vão fazer uma curva que corta os terrenos todos ao meio para construir outra estrada. A Avenida da Praia fica para uso do hotel. Já falei com um ou dois engenheiros que estão a trabalhar nestes projetos e dizem que se trata de um investimento de 500 milhões onde querem “dar a cinza das fazendas” por tuta e meia. Estas fazendas pela sua localização valem muito dinheiro. Usando estas estratégias eles alteram os terrenos e pagam menos».

Fernanda Oliveira tomara em reunião na Câmara Municipal conhecimento do plano para «um grande hotel que prevê construções para o nosso terreno», contrapondo indignada, que aos vários projetos, para o mesmo local, «sempre nos foi negado o desenvolvimento de qualquer ideia ou proposta de construção». «Nessa reunião em 2017 informaram-nos que o nosso terreno fazia parte do plano e seria expropriado. Percebemos então que não nos deixavam construir nada porque o nosso terreno já tinha sido adquirido, já não é nosso e já é de alguém sem ter sido comprado. Foi simplesmente expropriado por um grupo de pessoas que têm muito dinheiro, uma força muito grande que articula com a Câmara estas operações junto dos proprietários. Fica muito mais barato para eles ficarem à espera estes anos todos que desapareçam as pessoas que ocupam e usufruem dos terrenos, interessadas também elas em beneficiar dos mesmos que estão à beira-mar. Nós temos um terreno e queremos também desenvolvê-lo turisticamente, porque é que os imobiliários têm mais direitos do que eu?». Fernanda levou o caso já aos tribunais.

Relembra Ana, «nesta Execução do Baleal eles concentram 90% do PDM, tudo o que possam fazer no Baleal, em Ferrel, tudo ali concentrado naquele canto. Todos os outros proprietários desde Ferrel até à Atouguia, todo o concelho de Peniche, não podem fazer nada. Portanto achamos que isto é uma ilegalidade, o que a Câmara está a fazer.» Trata-se de «expropriar primeiro, fazendo passar uma estrada que dá direito ao uso do terreno, que, entretanto, está dentro de uma Unidade de Execução. Um planeamento feito só para a construção do Hotel, onde o teu terreno é uma peça de um plano. Ou entras no projeto com investimento, ou sais, passando o teu terreno a rústico, recebendo no final uma tuta e meia por ele. Podem também querer trocar por uma outra peça longe ou um apartamento que nunca será comparável ao que acabaste de perder. Há aqui pessoas que já aceitaram estas condições, que tinham terrenos pequenos que não têm entrada nem saída, por exemplo».

O grupo por detrás do empreendimento turístico, conforme as nossas interlocutoras, dá pelo nome de PCTV, já antes associadas à SIRUSA – Sociedade de Investimentos Rurais e Urbanos, Lda. e à PREDIBALEAL – Gestão e Investimento Imobiliário, S.A., e que ao longo dos anos foram tomando posse de vários terrenos no Baleal. «Em 1974, cortaram as franjas destes terrenos que dão para o mar ficando assim com o acesso à praia e à estrada, a tal Avenida do Mar. Os terrenos foram redesenhados pois para a aprovação do PDM basta 51% de posse de terreno e as escrituras são importantes para servir esse fim».

Fernanda Oliveira, equipara esta zona a Tróia «onde passa a estrada que dá acesso ao Resort e toda a zona é explorada por um único grupo, e onde qualquer dia podem até fechar o portão e o acesso. Nós achamos mesmo que querem fazer o mesmo aqui no Baleal. O mesmo fizeram já na Foz do Arelho, onde íamos em família assar o berbigão e que está hoje fechada por causa de construções parecidas e onde se vão apropriando de caminhos e lugares com tradições. E é isto que estes investidores conseguem fazer: acabar estas coisas históricas e tradicionais para o interesse privado. O que está a acontecer em Tróia, na Foz do Arelho e aqui mesmo é igual em todo o lado. As leis passam, os PDM’s planeiam e as câmaras aceitam, pois estão a ser beneficiadas à custa do roubo de terrenos privados. Não há justiça. Isto não é feito para o bem de todos.»

Enfrentando o modelo ao serviço exclusivo do turismo, estão os agricultores. Em causa estão «dezenas de famílias de pequenos produtores agrícolas que depositaram na agricultura todo o investimento de uma vida.

Mosaico Agrícola de Ferrel

As inquietações sobre o reordenamento do Baleal haviam motivado em setembro de 2020 uma marcha lenta que levou os tratores agrícolas da freguesia de Ferrel às ruas de Peniche. O presidente socialista da Junta de Freguesia, Pedro Barata, tem sido uma voz contestatária aos termos da revisão do PDM, conforme fora expresso numa Petição Pública que reclamava a rejeição ou a não aprovação da atual proposta de PDM para o Município de Peniche. Aí criticando-se uma proposta que «direciona o concelho totalmente para o turismo, [pois] apesar de o turismo ser um setor de extrema relevância o mesmo não pode encerrar em si o monopólio de todas as atividades». Posicionando-se contra «a retirada do atravessamento do trânsito dos centros das povoações, que iriam alterar completamente a dinâmica comercial e económica»; «a consagração de dezenas de terrenos em equipamentos e espaços verdes em grandes áreas sem qualquer contacto ou negociação com os proprietários» e, por via da Unidade de Execução no topo do Baleal, denunciando a «obrigação de dezenas de proprietários a ceder ao acordo “imposto” sob pena da desapropriação futura» em nome da instalação de um Hotel.» Mesmo admitindo «que tenha um hotel de qualidade superior, porém, a construção de hotéis de grandes dimensões não pode ser aceite. Não pode retirar a beleza natural que ainda temos. Esta construção não nos pode colocar nas mãos de um grupo económico estrangeiro, que vai aglutinar todo o comércio na envolvente e passados alguns anos ter um poder decisor ao nível do território pela empregabilidade em número e não em qualidade».

Enfrentando o modelo ao serviço exclusivo do turismo, estão os agricultores. Em causa, conforme o texto da Petição, estão «dezenas de famílias de pequenos produtores agrícolas que depositaram na agricultura todo o investimento de uma vida e onde as gerações mais jovens estão a apostar a sua emancipação através das estruturas de laboração que foram iniciadas pelos pais, avós e bisavós».

«Aquilo que acontece e está cada vez mais a acontecer em Peniche é a morte do pequeno comércio, do trabalho e das atividades típicas. O movimento em Peniche está a morrer. Como se sabe, quando não há pesca, que são 6 meses ao ano, não há mais nada e estas câmaras não investem ou permitem outras atividades para os habitantes ou que os habitantes proponham. Ferrel igual, uma vila que vivia sobretudo da agricultura e talvez se pense que os agricultores não são educados e não têm conhecimentos, que a agricultura não é uma atividade que se deva continuar e que se lhes pode impor outra coisa à revelia das pessoas. Os agricultores, no entanto, já estão em protestos e vão continuar», acentua Fernanda Oliveira.

balealPara a Presidente da Associação dos Agricultores de Ferrel há a somar «a par disto, também o Moinho Velho onde os terrenos nem sequer estão ainda parcelados e que será ainda mais benéfico para a Câmara e o PDM na medida em que as pessoas ainda terão menos capacidade de reivindicar e provar que os terrenos são seus… Outro problema parecido à zona do Moinho Velho é a costa que vem do Hotel Mariot até ao Baleal, desde a praia da Almagreira, passando a praia norte Baleal até à praia sul. Estes investimentos vêm já desde esta costa, que pertence a Óbidos, com a ajuda de arquitetos que estavam na Câmara de Óbidos e que já estão em Peniche a fazer um plano que vai englobar esta costa toda».

Mas a verdade é que «ainda há muitos agricultores até à Zona de Ferrel que ainda fazem agricultura há mais de 60 ou 70 anos». Se a zona do Moinho Velho «seguir o padrão de expropriação de Ferrel, aqueles terrenos todos que ainda não estão parcelados são uma peça gigante da costa que a Câmara não vai largar. Porquê? Porque os agricultores não vão dar milhões à Câmara. Já tentámos falar várias vezes com a Câmara pois precisamos que alguns daqueles terrenos, que já estão registados, sejam parcelados e demarcados pela Câmara, mas a Câmara não aceita nenhuma reunião!». Para Fernanda Oliveira os protestos «vão recomeçar de novo por causa da construção do hotel, prevejo que esta luta vai ser grande. No Moinho sobretudo. O terreno ainda não está parcelado e é um povo inteiro que está lá há mais de 70 anos, a Câmara não parcela aquela zona maravilhosa junto à areia pois já deve haver outros planos para ali. Estamos todos conscientes do perigo que corremos de nos ser imposto um plano ou um modo de vida.»

 


Texto de  Inês Xavier e  Filipe Nunes


Artigo publicado no JornalMapa, edição #37, Março|Maio 2023.


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